QUANDO, POR FIM, chegou a altura de passar a escrito as peripécias que acabaram de ler, peguei no meu computador portátil, procurei um banco numa boa sombra de um jardim sossegado e, inspirado pelo canto dos passarinhos e pelo grasnar dos patos, comecei a trabalhar, entusiasmado.
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Ora, a certa altura, apercebi-me de que uma velhinha, tão pequenina quanto espevitada, se sentava ao meu lado, começando de imediato a espreitar e a bisbilhotar o que eu estava a escrever; e o facto de o monitor ser de matriz activa permitia que ela, mesmo de um ângulo desfavorável, pudesse ver tudo à sua vontade.
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«Que diabo!» – pensei eu – «Como é que ela se pode interessar por um assunto destes, em que quase só se fala de bits e de bytes?!».
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Porém, como não quis ser malcriado, não comentei nem resmunguei e fiz os possíveis por me concentrar no trabalho que tinha de fazer.
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No entanto, apesar dos meus melhores esforços nesse sentido, o certo é que, devido ao nervoso miudinho que se tornara incontrolável, começaram a aparecer mais erros do que o habitual. Felizmente, o corrector ortográfico que eu havia instalado ia corrigindo tudo automaticamente, pelo que a grafia errada apenas se mantinha visível no monitor durante uma curta fracção de segundo.
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Mesmo assim, o diabo da velhinha era terrivelmente perspicaz, pelo que comecei a ver que, a breve trecho, ela produzia surdas interjeições de desagrado quando eu me enganava!
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Era apenas um «Tch...! Tch...!» – seco, mas sumamente irritante!
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A certa altura, não aguentando mais, decidi-me a fechar ostensivamente o computador e a sair dali, não escondendo o meu desagrado pela situação. E foi nessa altura, quando lhe ia deitar um olhar raivoso à laia de despedida, que sucedeu o mais incrível:
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Apesar dos muitos anos decorridos, descobri então que a senhora era, nem mais nem menos do que a D. Judite, a minha antiga professora de escola primária, e que me reconhecera!
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- Seu maroto... – comentou ela, sorrindo – Estás muito crescido!
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Vieram-me as lágrimas aos olhos e fiquei sem palavras!
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- Tenho estado a ver-te a escrever... – prosseguiu – Sabes? Merecias 20!
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«Coitadinha...» – pensei eu – «Mal ela sabe que era o corrector automático do processador de texto a trabalhar!»
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Mas uma surpresa maior veio logo a seguir:
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- Jeremias, grande maroteco... Julgas então que eu não conheço o Word e essa função do auto-correct, hem?!
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Fiquei banzado! E ainda eu não tinha fechado a boca de espanto quando ela concluiu, ao mesmo tempo que me dava dois beijinhos de despedida:
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- Vai-te lá embora, que tu bem merecias 20... reguadas!
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(*) - Capítulo XIV, com que termina o livro «Jeremias dá uma mãozinha», de CMR, Ed. Plátano, 2006.
Para receber uma versão de distribuição restrita, enviar um e-mail para medina.ribeiro@netcabo.pt escrevendo, em 'assunto', o título do livro.
4 comentários:
É mesmo de mestra! Idoso não deveria ser visto como sinónimo de ignorante ....se tivermos em atenção que os idosos de antigamente eram sinónimos de sábios ....
Tem toda a razão!
Assim, e no seguimento deste seu comentário, muito em breve, no Sorumbático, farei um 'passatempo com prémio' em que será oferecido o livro «A Ciber@vó», de Joviana Benedito.
Quer fazer de júri?
Okey!
Rosa Silvestre,
Envie-me então o seu endereço de e-mail para
medina.ribeiro@netcabo.pt
para eu a poder contactar quando chegar a altura de organizar o passatempo.
Talvez seja só na semana que vem, pois neste momento estão a decorrer 2 (com o Travessa do Ferreira), e se calhar amanhã há o "Acontece..." das terças.
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