quarta-feira, 18 de abril de 2012
quarta-feira, 11 de abril de 2012
terça-feira, 10 de abril de 2012
La Lys
Por Pedro Barroso
NÃO FAÇO uma ideia onde seja, nem que tamanho tenha o raio da terra.
Será sempre um nome, uma memória dividida, no seu sabor para mim.
Criança apenas, todos os dias nove de Abril, meu pai tinha a antipática rotina de me levar ao cemitério da aldeia, precisamente ao talhão dos combatentes da Grande Guerra. Em memória de meu avô.
E eu, contrariado, lá ia. Pela mão. Vestindo o meu fatinho de veludo azul.
Pequenino e tropeçando. Olhando de lado para aqueles mortos todos.
Um pesadelo garantido para meses a fio.
Não achava piada nenhuma àquilo, sinceramente. Tinha de se ter um ar sério.
Penteavam-me o cabelo de uma forma estúpida e o fato tinha costuras que arranhavam.
Logicamente. Aquilo era um castigo.
Mesmo que eu nada tivesse feito de errado, a cada dia nove de Abril, era sabido – visita cultural ao cemitério!
Restará acrescentar que se tratava de uma espécie de package de férias de Páscoa. Coisa que só viria a ser descoberta muito mais tarde, quando as pessoas arranjaram dinheiro e vocação para viajar.
Na realidade o meu pai fazia anos a dez, a sua mãe – e minha avó Emília – a onze. Porém, ao que parece, a data maior associada a meu avô não era, nunca seria, a data de seu aniversário, mas sim o dia nove de Abril. Data da Batalha de La Lys.
Dia em que – ao que se descobriria mais tarde, com grande orgulho da família – ele invadira, sozinho, com inaudita coragem, o poderoso exército alemão!
Eu explico.
Pobres homens de campo e gente humilde, mandámos para a guerra – convencidos que o velho prestígio guerreiro e conquistador lusitano de outrora, só por si, sobraria para amedrontar quaisquer inimigos – uns milhares de homens impreparados, mal armados, recrutados à pressa, meio esparvoados e sem saber ao que iam. Uma espingarda, um capacete e um cobertor …e ala, vamos para a Guerra! A pé.
Ora a guerra que lhes tinham contado era, com efeito, uma coisa distante. Uma história romanesca. Uma cruzada pelo bem e pela paz, a que urgia aderir, ao que parece, para mais completa glória da Nação.
Cheios de Afonsos Henriques e Aljubarrotas na memória, lá foram.
Aquilo eram favas contadas. Assim que chegassem lá os portugueses, o resto do pessoal acobardava-se todo e pronto. Fugiam. Estava resolvido.
Guerra?! Aquilo era coisa de jornais, para quem lesse.
Nada de grave. Romance. Uma autêntica passeata. Conversa de jornais e da rádio. Se já houvesse telefonia, porque, a bem dizer, a TSF convencional ainda nem balbuciava os primeiros sinais!...
Havia, isso sim, emissões em morse, que eram captadas e transmitidas aos centros militares por pessoal das Transmissões, e o caos no sector era geral.
Telexes descreviam, desse modo lento e precário, o evoluir das coisas.
Quantas vezes interceptados pela contra-informação inimiga e alterados para quebrar o moral do opositor, num mar de dúvidas e mentiras, em que todos os exércitos navegavam, sem solução alternativa, nem certezas.
Aliás, os próprios generais se apercebiam de que ganharia a Guerra nessa altura quem ganhasse a guerra das transmissões. A telegrafia sem fios dava os seus primeiros passos, ainda com vários sistemas, todos eles bem incompletos, apesar de Marconi já se revelar o melhor e mais activo a vender o seu invento e a lutar pela sua implementação.
Era necessário activar as toscas maquinetas receptoras, com a chamada luminária ou tríodo TM. E para transmitir era necessário, ou estar em alcance visual e fazer comunicação semafórica, ou passar fio até à zona desejada, para que o telégrafo pudesse trabalhar. E tornavam-se necessários, obviamente, postes suportadores pelo caminho, entre os pontos desejados para comunicação das notícias.
Postes cavados no terreno minado. E tudo ainda transmitido à manivelada.
Deste modo, do que chegava, do que se recebia e da sua controversa utilidade, sobrava uma imensa desconfiança de que o inimigo já tivesse ouvido a conversa toda; ou que o morse do parceiro fosse mais rápido que o do nosso operador.
Ou, enfim, que os carregadores de postes fizessem uma greve de zelo.
Era, com efeito, difícil a colocação – ainda por cima sob fogo inimigo – dos paus pesadíssimos que haviam de endireitar-se enfiados em covas imensas, cavadas a braço mal alimentado, por homens com uma coragem sem espingarda, apenas armados de cordas e fios e pás de valar.
Tudo isto, enquanto, supostamente, os companheiros os protegiam da sua invulgarmente braçal e pouco lembrada maneira de participar na guerra. Mas tão importante e fulcral.
Pobre guerra, com efeito, a destes moços; heróis – sem lhes reconhecerem qualquer heroísmo – de picaretas e pás na mão, num dia a dia estúpido, esgotante e perigosamente igual.
Conclua-se, já agora, que a cada dia se avançava um pouco na descoberta de novos processos de tornar todo o processo de transmissão mais veloz e aperfeiçoado. Mas só no fim do conflito a TSF, pela primeira vez convertida em radiotelefonia, transmitiria a voz humana, num milagre sonhado há muito tempo por Marconi.
Demasiado tarde para estes heróis do código morse e do pau de fio às costas.
Sabia-se assim, mais ou menos, o que a informação permitia que se soubesse – que era pouco. E compreendia-se de tudo aquilo ainda menos que pouco, para não dizer nada.
Ora bem. A função de meu avô era montar fio.
Pobre herói de braço forte e corpulento, ribatejano rotundo e avantajado. O pessoal da sua especialidade andava em grupo, mas a fome com que os portugueses andavam, fazia com que os percursos nem sempre fosse os mais directos.
E lá haveria uma quinta que ficava sem galinhas, a outra sem uns ovos, outra ainda sem alguma fruta...
Se o inimigo atacava, havia que recolher. De novo se fariam ao campo, mais tarde, na esperança de não terem maus encontros. Outra vez cavar buracos e passar fio. Outra vez a fome, o abandono, o frio, a miséria, uma desorganização total.
Para onde é agora? Por onde? E como chegamos lá?
A cadeia de comando caótica, por sua vez, distante, dispersa, raras vezes concordante, debaixo de fogo. Também eles sem saber… Gente de várias nações sem se entender. Enfim, facilmente se imagina e se calcula a confusão…
Acontece que o meu avô era um homem destemido, desbragado, positivo. Com um copito era capaz de tudo até de trepar pau nas fuças do inimigo.
E um belo dia, ao que parece, o nevoeiro fez-lhe uma partida.
Ficou lá no alto do pau, sozinho e começou a chamar pelos camaradas mas em vão. O pessoal tinha todo largado o material e fugido, sabe-se lá para onde.
Que se passaria?- pensou ele, já aflito.
Entretanto, um barulho cavo e surdo se ouvia cada vez mais perto. O exército inimigo avançava, passo a passo, destruidor e temível.
E quando pensou em descer do pau, era demasiado tarde. Eles aí estavam!
O meu avô ficou transido e rezou à virgem, aos santos todos. Encomendou a alma sete vezes a Deus e preparou-se para levar um tiro, talvez muitos, e cair como um tordo apanhado em galho de árvore.
Mas o nevoeiro denso da velha Flandres, dessa vez, ia ser seu amigo.
Ninguém o viu!
O exército alemão passou, passou, passou, demorou horas a passar… e o herói lá se mantinha suspenso. Com o coração a bater mais que as máquinas de guerra cá em baixo, o peito num estertor, as pernas já sem sentir nada, as mãos em desespero agarradas ao pau de fio, o corpo dormente do arnês. O frio e o nevoeiro a enregelarem os ossos e a alma. A espera da morte a qualquer momento. Na vaga incerteza de uma improvável sorte que o salvasse.
Não os via. A neblina era espessa como leite. Pressentia-os.
Pareciam falar uma lingua estranhíssima, arranhada e gutural. E soavam mais jovens que supunha. Rapazitos seriam, gritando muito uns com os outros. Infantaria. Um barulho ensurdecedor de granadas explodindo e de gritos por todo o lado.
Por um momento, pararam junto ao poste. Discutiam-lhe, decerto, a sorte. Mas os fios largados pelo chão denunciavam que não tinha nunca chegado a ser útil e tornavam-no manifestamente inofensivo. Era inútil perder tempo a derrubar aquilo pois não servia para nada ao inimigo. Era apenas um pau levantado no chão. À cautela atiraram uma rajada para o alto oculto no densíssimo nevoeiro.
O pobre Manel aí, confessemos, teve sorte. Nada lhe acertou. As balas rasaram-lhe o corpo, mais nada. E mordeu-se todo com medo de morrer. Mas para sua muita sorte os inimigos desistiram. Todo o material largado no chão – fio, pás, enxadas…- indicava a fuga. E havia que avançar, avançar sempre.
- Weiter gehen!
Isso mesmo. Adiante.
E lá seguiram.
Depois vieram os carros, e o chão tremia debaixo dos seus pés. Perdão. O chão tremia, mas ele já só mal o podia sentir agarrado ao grosso madeiro, que vibrava a cada rodado que passava. Porque os pés, suspensos e frios, já tinham congelado na espera.
Demoraram uma hora a passar. Ou mais. Seriam duas. Ele nunca soube.
Depois, devagar, os gritos e estampidos foram-se perdendo na distância.
Seria possível? Depois de deixar passsar uma margem de segurança sem ouvir mais nada, o seu coração ouvia-se mais alto que o silêncio.
O nevoeiro não levantava. A cinco metros já ninguém via nada. Os postes tinham dez ou mais. Ele próprio não via o chão.
Deu ainda mais uma e outra margem de segurança. A tremer todo, lá se arriscou a descer. Devagar, espreitando sempre.
O exército alemão passara.
Havia no ar um cheiro imenso a pólvora e a morte.
Estava completamente só.
Exausto. Borrado de medo. Enregelado. Faminto. A tremer. Mas vivo.
Acontece que na aldeia nada se sabia. E se, de vez em quando, aparecia uma carta, normalmente, para desgraça da família, eram sempre más notícias. Assim, calhou, em certo dia, a minha avó receber do Ministério do Exército – ou da Guerra, como então se chamava – a sibilina e curva notícia.
O seu marido fora dado como desaparecido em combate.
O choque foi brutal. Chorou-se a morte e receou-se pela vida futura. O pai e o sustento iam faltar. Como sobreviver, pobre mulher, com dois filhos para sustentar?
Pos-se luto e carpiram-se noites de uma tristeza profunda. Uma mágoa, assim, sem ter corpo para funeral é uma mágoa especialmente funda, estúpida e perplexa. Não se percebe como terminou tudo e, no entanto, tudo terminou.
Lá longe, sem se saber como, nem porquê.
Aliás há um eufemismo imenso na terminologia militar, quando trata da morte de seus filhos. Se não há corpo, o que se regista estatisticamente é um desaparecimento. Não conta como morte. É uma sensação esquisita.
- Que é feito de teu pai? … De teu irmão? De teu filho? Morreu?
- Não sei. Desapareceu.
Estranha e violenta resposta, a que teriam de ensinar aos filhos.
Junto de um amigo sargento que conhecia um capitão em Lisboa, toda a família tentou indagar novas do pobre Manuel Miguel. Nada. Tinha sido apanhado num ataque. Esmagado pela frente inimiga. Desaparecido.
Mas afinal não eram todos eles desaparecidos em combate na sua maioria? Aquilo foi, relembre-se, a maior chacina humana sofrida pelo exército português depois de Alcácer Quibir!
Uma razia total. Um país inteiro de luto.
A mãe Anita nunca desistiu. Nunca quis acreditar.
Prometeu a Nossa Senhora ir todos os dias à Igreja Velha, nem que fosse entrar e sair, se o seu filho voltasse. E só Deus sabia como arriscava, pois o seu João Ralhão não era homem para brincadeiras e tampouco dado a assuntos clericais.
Enganou-o toda a vida com uma caixa de fósforos, sempre novinha, que trazia escondida, num bolso oculto duma das muitas saias que então se usavam.
Era o pretexto, se ele desse conta de sua falta. E ele sabia.
- Onde andaste, mulher dum raio? - perguntava ele furibundo.
- Olha, fui comprar fósforos, que já não tinha… – respondia ela prontamente.
Morreram os dois com uma semana de intervalo.
O coração do velho João não aguentou mais que esse tempo de saudades e morreu de fastio pelo Mundo e amor pela sua mulher.
História bonita e verdadeira de meu sangue, acontecida bem antes de mim.
Mas voltemos à história de seu filho, evoluindo, sem dicionário, em pátria alheia.
Passava o tempo.
O bom do Manuel, sem falar a língua e com medo dos ocupantes, arrastou-se semanas por França, numa vida furtiva, sem saber onde estava, nem ver parceiros.
Voltar para trás, nem pensar. Ia dar de caras com os alemães. Era a morte certa.
Aos poucos, vindos daqui e dali, alguns outros colegas, todos famintos e esfarrapados, começaram a juntar-se e, em dois meses, um grupo de insólitos soldados, cuja roupa rota e suja apenas muito longinquamente se assemelhava já a um uniforme militar, constituía um triste espectáculo de pobreza e mendicidade.
Alguns franceses, embora muito a medo, iam sustentando o pobre grupo de maltrapilhos. Por vezes trabalhavam pela comida em fazendas e quintas. Os olhos encovados e o aspecto denunciavam-nos a qualquer olhar mais atento.
Foi isso que aconteceu, largos meses depois, quando alguém foi avisar representantes do exército português de que andariam homens extraviados em tal parte.
Regressaram então aos respectivos Batalhões, que eram uma espécie de babilónia de línguas e culturas. Os portugueses que haviam sobrado de tamanha má sorte eram, apesar de tudo, os mais afortunados, de entre tantos milhares de pobres compatriotas que morreram, sem saber bem por que causa combatiam…
Eram sobreviventes estropiados, encolhidos, desorientados, doentes e feridos no corpo e na alma e que, finalmente, iam sendo, aos poucos, repatriados para casa.
A derrota na consciência, a fome no corpo e a morte na memória.
Quando chegou à terra, o meu avô estava magro como um cão vadio.
Era, por outro lado, um morto-vivo, com tudo o que a desagradável sensação lhe podia trazer.
- Oh Manel! Oh Homem! Mas então afinal tu não tinhas morrido?! – Diziam.
Mas a alegria de voltar foi tamanha que o morto-vivo em breve recuperou, com um tratamento intensivo à base de matanças de porco sucessivas, celebrações de vida, enchidos de boa curtimenta, tinto de Alcorochel, sopas de fressura e avantajadas migas.
O meu querido avô – Manuel Miguel Chora.
De quem herdei, ao que parece, as mãos, o vigor e a rotundidade.
…Promovido a cabo por serviços heróicos ao Exército Português na Grande Guerra de 1914-18!...
O tal herói que, um dia – sem querer, nem saber bem como... – “Invadiu” sozinho o exército inimigo, na célebre Batalha de La Lys, num dia 9 de Abril de que nunca perderei memória!
E por ser tudo verdade aqui se passa, embora tardio, o competente Auto.
Seu neto,
Pedro Barroso
NÃO FAÇO uma ideia onde seja, nem que tamanho tenha o raio da terra.
Será sempre um nome, uma memória dividida, no seu sabor para mim.
Criança apenas, todos os dias nove de Abril, meu pai tinha a antipática rotina de me levar ao cemitério da aldeia, precisamente ao talhão dos combatentes da Grande Guerra. Em memória de meu avô.
E eu, contrariado, lá ia. Pela mão. Vestindo o meu fatinho de veludo azul.
Pequenino e tropeçando. Olhando de lado para aqueles mortos todos.
Um pesadelo garantido para meses a fio.
Não achava piada nenhuma àquilo, sinceramente. Tinha de se ter um ar sério.
Penteavam-me o cabelo de uma forma estúpida e o fato tinha costuras que arranhavam.
Logicamente. Aquilo era um castigo.
Mesmo que eu nada tivesse feito de errado, a cada dia nove de Abril, era sabido – visita cultural ao cemitério!
Restará acrescentar que se tratava de uma espécie de package de férias de Páscoa. Coisa que só viria a ser descoberta muito mais tarde, quando as pessoas arranjaram dinheiro e vocação para viajar.
Na realidade o meu pai fazia anos a dez, a sua mãe – e minha avó Emília – a onze. Porém, ao que parece, a data maior associada a meu avô não era, nunca seria, a data de seu aniversário, mas sim o dia nove de Abril. Data da Batalha de La Lys.
Dia em que – ao que se descobriria mais tarde, com grande orgulho da família – ele invadira, sozinho, com inaudita coragem, o poderoso exército alemão!
Eu explico.
Pobres homens de campo e gente humilde, mandámos para a guerra – convencidos que o velho prestígio guerreiro e conquistador lusitano de outrora, só por si, sobraria para amedrontar quaisquer inimigos – uns milhares de homens impreparados, mal armados, recrutados à pressa, meio esparvoados e sem saber ao que iam. Uma espingarda, um capacete e um cobertor …e ala, vamos para a Guerra! A pé.
Ora a guerra que lhes tinham contado era, com efeito, uma coisa distante. Uma história romanesca. Uma cruzada pelo bem e pela paz, a que urgia aderir, ao que parece, para mais completa glória da Nação.
Cheios de Afonsos Henriques e Aljubarrotas na memória, lá foram.
Aquilo eram favas contadas. Assim que chegassem lá os portugueses, o resto do pessoal acobardava-se todo e pronto. Fugiam. Estava resolvido.
Guerra?! Aquilo era coisa de jornais, para quem lesse.
Nada de grave. Romance. Uma autêntica passeata. Conversa de jornais e da rádio. Se já houvesse telefonia, porque, a bem dizer, a TSF convencional ainda nem balbuciava os primeiros sinais!...
Havia, isso sim, emissões em morse, que eram captadas e transmitidas aos centros militares por pessoal das Transmissões, e o caos no sector era geral.
Telexes descreviam, desse modo lento e precário, o evoluir das coisas.
Quantas vezes interceptados pela contra-informação inimiga e alterados para quebrar o moral do opositor, num mar de dúvidas e mentiras, em que todos os exércitos navegavam, sem solução alternativa, nem certezas.
Aliás, os próprios generais se apercebiam de que ganharia a Guerra nessa altura quem ganhasse a guerra das transmissões. A telegrafia sem fios dava os seus primeiros passos, ainda com vários sistemas, todos eles bem incompletos, apesar de Marconi já se revelar o melhor e mais activo a vender o seu invento e a lutar pela sua implementação.
Era necessário activar as toscas maquinetas receptoras, com a chamada luminária ou tríodo TM. E para transmitir era necessário, ou estar em alcance visual e fazer comunicação semafórica, ou passar fio até à zona desejada, para que o telégrafo pudesse trabalhar. E tornavam-se necessários, obviamente, postes suportadores pelo caminho, entre os pontos desejados para comunicação das notícias.
Postes cavados no terreno minado. E tudo ainda transmitido à manivelada.
Deste modo, do que chegava, do que se recebia e da sua controversa utilidade, sobrava uma imensa desconfiança de que o inimigo já tivesse ouvido a conversa toda; ou que o morse do parceiro fosse mais rápido que o do nosso operador.
Ou, enfim, que os carregadores de postes fizessem uma greve de zelo.
Era, com efeito, difícil a colocação – ainda por cima sob fogo inimigo – dos paus pesadíssimos que haviam de endireitar-se enfiados em covas imensas, cavadas a braço mal alimentado, por homens com uma coragem sem espingarda, apenas armados de cordas e fios e pás de valar.
Tudo isto, enquanto, supostamente, os companheiros os protegiam da sua invulgarmente braçal e pouco lembrada maneira de participar na guerra. Mas tão importante e fulcral.
Pobre guerra, com efeito, a destes moços; heróis – sem lhes reconhecerem qualquer heroísmo – de picaretas e pás na mão, num dia a dia estúpido, esgotante e perigosamente igual.
Conclua-se, já agora, que a cada dia se avançava um pouco na descoberta de novos processos de tornar todo o processo de transmissão mais veloz e aperfeiçoado. Mas só no fim do conflito a TSF, pela primeira vez convertida em radiotelefonia, transmitiria a voz humana, num milagre sonhado há muito tempo por Marconi.
Demasiado tarde para estes heróis do código morse e do pau de fio às costas.
Sabia-se assim, mais ou menos, o que a informação permitia que se soubesse – que era pouco. E compreendia-se de tudo aquilo ainda menos que pouco, para não dizer nada.
Ora bem. A função de meu avô era montar fio.
Pobre herói de braço forte e corpulento, ribatejano rotundo e avantajado. O pessoal da sua especialidade andava em grupo, mas a fome com que os portugueses andavam, fazia com que os percursos nem sempre fosse os mais directos.
E lá haveria uma quinta que ficava sem galinhas, a outra sem uns ovos, outra ainda sem alguma fruta...
Se o inimigo atacava, havia que recolher. De novo se fariam ao campo, mais tarde, na esperança de não terem maus encontros. Outra vez cavar buracos e passar fio. Outra vez a fome, o abandono, o frio, a miséria, uma desorganização total.
Para onde é agora? Por onde? E como chegamos lá?
A cadeia de comando caótica, por sua vez, distante, dispersa, raras vezes concordante, debaixo de fogo. Também eles sem saber… Gente de várias nações sem se entender. Enfim, facilmente se imagina e se calcula a confusão…
Acontece que o meu avô era um homem destemido, desbragado, positivo. Com um copito era capaz de tudo até de trepar pau nas fuças do inimigo.
E um belo dia, ao que parece, o nevoeiro fez-lhe uma partida.
Ficou lá no alto do pau, sozinho e começou a chamar pelos camaradas mas em vão. O pessoal tinha todo largado o material e fugido, sabe-se lá para onde.
Que se passaria?- pensou ele, já aflito.
Entretanto, um barulho cavo e surdo se ouvia cada vez mais perto. O exército inimigo avançava, passo a passo, destruidor e temível.
E quando pensou em descer do pau, era demasiado tarde. Eles aí estavam!
O meu avô ficou transido e rezou à virgem, aos santos todos. Encomendou a alma sete vezes a Deus e preparou-se para levar um tiro, talvez muitos, e cair como um tordo apanhado em galho de árvore.
Mas o nevoeiro denso da velha Flandres, dessa vez, ia ser seu amigo.
Ninguém o viu!
O exército alemão passou, passou, passou, demorou horas a passar… e o herói lá se mantinha suspenso. Com o coração a bater mais que as máquinas de guerra cá em baixo, o peito num estertor, as pernas já sem sentir nada, as mãos em desespero agarradas ao pau de fio, o corpo dormente do arnês. O frio e o nevoeiro a enregelarem os ossos e a alma. A espera da morte a qualquer momento. Na vaga incerteza de uma improvável sorte que o salvasse.
Não os via. A neblina era espessa como leite. Pressentia-os.
Pareciam falar uma lingua estranhíssima, arranhada e gutural. E soavam mais jovens que supunha. Rapazitos seriam, gritando muito uns com os outros. Infantaria. Um barulho ensurdecedor de granadas explodindo e de gritos por todo o lado.
Por um momento, pararam junto ao poste. Discutiam-lhe, decerto, a sorte. Mas os fios largados pelo chão denunciavam que não tinha nunca chegado a ser útil e tornavam-no manifestamente inofensivo. Era inútil perder tempo a derrubar aquilo pois não servia para nada ao inimigo. Era apenas um pau levantado no chão. À cautela atiraram uma rajada para o alto oculto no densíssimo nevoeiro.
O pobre Manel aí, confessemos, teve sorte. Nada lhe acertou. As balas rasaram-lhe o corpo, mais nada. E mordeu-se todo com medo de morrer. Mas para sua muita sorte os inimigos desistiram. Todo o material largado no chão – fio, pás, enxadas…- indicava a fuga. E havia que avançar, avançar sempre.
- Weiter gehen!
Isso mesmo. Adiante.
E lá seguiram.
Depois vieram os carros, e o chão tremia debaixo dos seus pés. Perdão. O chão tremia, mas ele já só mal o podia sentir agarrado ao grosso madeiro, que vibrava a cada rodado que passava. Porque os pés, suspensos e frios, já tinham congelado na espera.
Demoraram uma hora a passar. Ou mais. Seriam duas. Ele nunca soube.
Depois, devagar, os gritos e estampidos foram-se perdendo na distância.
Seria possível? Depois de deixar passsar uma margem de segurança sem ouvir mais nada, o seu coração ouvia-se mais alto que o silêncio.
O nevoeiro não levantava. A cinco metros já ninguém via nada. Os postes tinham dez ou mais. Ele próprio não via o chão.
Deu ainda mais uma e outra margem de segurança. A tremer todo, lá se arriscou a descer. Devagar, espreitando sempre.
O exército alemão passara.
Havia no ar um cheiro imenso a pólvora e a morte.
Estava completamente só.
Exausto. Borrado de medo. Enregelado. Faminto. A tremer. Mas vivo.
Acontece que na aldeia nada se sabia. E se, de vez em quando, aparecia uma carta, normalmente, para desgraça da família, eram sempre más notícias. Assim, calhou, em certo dia, a minha avó receber do Ministério do Exército – ou da Guerra, como então se chamava – a sibilina e curva notícia.
O seu marido fora dado como desaparecido em combate.
O choque foi brutal. Chorou-se a morte e receou-se pela vida futura. O pai e o sustento iam faltar. Como sobreviver, pobre mulher, com dois filhos para sustentar?
Pos-se luto e carpiram-se noites de uma tristeza profunda. Uma mágoa, assim, sem ter corpo para funeral é uma mágoa especialmente funda, estúpida e perplexa. Não se percebe como terminou tudo e, no entanto, tudo terminou.
Lá longe, sem se saber como, nem porquê.
Aliás há um eufemismo imenso na terminologia militar, quando trata da morte de seus filhos. Se não há corpo, o que se regista estatisticamente é um desaparecimento. Não conta como morte. É uma sensação esquisita.
- Que é feito de teu pai? … De teu irmão? De teu filho? Morreu?
- Não sei. Desapareceu.
Estranha e violenta resposta, a que teriam de ensinar aos filhos.
Junto de um amigo sargento que conhecia um capitão em Lisboa, toda a família tentou indagar novas do pobre Manuel Miguel. Nada. Tinha sido apanhado num ataque. Esmagado pela frente inimiga. Desaparecido.
Mas afinal não eram todos eles desaparecidos em combate na sua maioria? Aquilo foi, relembre-se, a maior chacina humana sofrida pelo exército português depois de Alcácer Quibir!
Uma razia total. Um país inteiro de luto.
A mãe Anita nunca desistiu. Nunca quis acreditar.
Prometeu a Nossa Senhora ir todos os dias à Igreja Velha, nem que fosse entrar e sair, se o seu filho voltasse. E só Deus sabia como arriscava, pois o seu João Ralhão não era homem para brincadeiras e tampouco dado a assuntos clericais.
Enganou-o toda a vida com uma caixa de fósforos, sempre novinha, que trazia escondida, num bolso oculto duma das muitas saias que então se usavam.
Era o pretexto, se ele desse conta de sua falta. E ele sabia.
- Onde andaste, mulher dum raio? - perguntava ele furibundo.
- Olha, fui comprar fósforos, que já não tinha… – respondia ela prontamente.
Morreram os dois com uma semana de intervalo.
O coração do velho João não aguentou mais que esse tempo de saudades e morreu de fastio pelo Mundo e amor pela sua mulher.
História bonita e verdadeira de meu sangue, acontecida bem antes de mim.
Mas voltemos à história de seu filho, evoluindo, sem dicionário, em pátria alheia.
Passava o tempo.
O bom do Manuel, sem falar a língua e com medo dos ocupantes, arrastou-se semanas por França, numa vida furtiva, sem saber onde estava, nem ver parceiros.
Voltar para trás, nem pensar. Ia dar de caras com os alemães. Era a morte certa.
Aos poucos, vindos daqui e dali, alguns outros colegas, todos famintos e esfarrapados, começaram a juntar-se e, em dois meses, um grupo de insólitos soldados, cuja roupa rota e suja apenas muito longinquamente se assemelhava já a um uniforme militar, constituía um triste espectáculo de pobreza e mendicidade.
Alguns franceses, embora muito a medo, iam sustentando o pobre grupo de maltrapilhos. Por vezes trabalhavam pela comida em fazendas e quintas. Os olhos encovados e o aspecto denunciavam-nos a qualquer olhar mais atento.
Foi isso que aconteceu, largos meses depois, quando alguém foi avisar representantes do exército português de que andariam homens extraviados em tal parte.
Regressaram então aos respectivos Batalhões, que eram uma espécie de babilónia de línguas e culturas. Os portugueses que haviam sobrado de tamanha má sorte eram, apesar de tudo, os mais afortunados, de entre tantos milhares de pobres compatriotas que morreram, sem saber bem por que causa combatiam…
Eram sobreviventes estropiados, encolhidos, desorientados, doentes e feridos no corpo e na alma e que, finalmente, iam sendo, aos poucos, repatriados para casa.
A derrota na consciência, a fome no corpo e a morte na memória.
Quando chegou à terra, o meu avô estava magro como um cão vadio.
Era, por outro lado, um morto-vivo, com tudo o que a desagradável sensação lhe podia trazer.
- Oh Manel! Oh Homem! Mas então afinal tu não tinhas morrido?! – Diziam.
Mas a alegria de voltar foi tamanha que o morto-vivo em breve recuperou, com um tratamento intensivo à base de matanças de porco sucessivas, celebrações de vida, enchidos de boa curtimenta, tinto de Alcorochel, sopas de fressura e avantajadas migas.
O meu querido avô – Manuel Miguel Chora.
De quem herdei, ao que parece, as mãos, o vigor e a rotundidade.
…Promovido a cabo por serviços heróicos ao Exército Português na Grande Guerra de 1914-18!...
O tal herói que, um dia – sem querer, nem saber bem como... – “Invadiu” sozinho o exército inimigo, na célebre Batalha de La Lys, num dia 9 de Abril de que nunca perderei memória!
E por ser tudo verdade aqui se passa, embora tardio, o competente Auto.
Seu neto,
Pedro Barroso
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