quinta-feira, 24 de abril de 2014

GRALHAS SEM GRALHAS - Trinta e um



Por Antunes Ferreira
Trinta e um, contados a toque de sino, nem mais nem menos, trinta e um. Sem querer recordo o velho fado que Carlos Ramos celebrizou. Como este não há nenhum... Como esta só há em Roma, dizem os entendidos, com a correspondente prosápia. Deixemo-nos de trocadilhos que o tema é sério, sem nenhuma justificação; já dizia a minha avó Maria da Assumpção que graças a Deus, sempre; graças como Deus, nunca.

Mas, antes da explicação deste aparente enigma, tenho de acrescentar que não o é, bem pelo contrário. Passo a relatar a ocorrência, como diria um diligente soldado da GNR, após ter-se deslocado ao local da mesma. Nestas letras de viagens, perco-me, por vezes, em textos a latere que apenas servem para instiliar a confusão; que me perdoem os escasos leitores que ainda me aturam, quantificação que julgo pertinente face aos também escassos comentários depositados neste blogue.

Gozava, ou mais precisamente, gozavamos a Raquel e eu, o calor reinante na praia de Colvá, uns 38º, indo à água co Índico – não posso deixar de repeti-lo -  a 30º e convenientemente besuntados de creme  de protecão epidérmica grau 50, que o sol não é para brincadeiras. Escolheramos para base o restaurante Benny’s Place  já nosso conhecido de há dois  anos e que serve todas as qualidades de peixe acabado de  pescar: Kingfish, que aqui leva o nome de peixe-serra; redfish, tunafish, smal sharck, ou seja o cação,  lulas e pomfret, da família dos linguados. E, para juntar à oferta, caranguejo grandalhão, quase santola.

Reparei, entretanto, que no restaurante ao lado estava um empregado envergando... a camisola alternativa da selecção portuguesa, com o 7 e o Ronaldo nas costas; fiz-lhe sinal para que me autoriasse a fotografá-lo, e depois do sim dele, clic. Os pavilhões das comidas e bebidas seguem-se uns aos outros. São todos  com excelentes confecções, mas, helas, os sanitários são uma desgraça. Há dois dias começaram as obras para a construção de um edifício onde ficarão os toiletes para os banhistas.

Noto também que há um cartaz de publicidade a um vinho branco, indiano. E o slogan: eu Goa nunca bebo água, diz um cavalheiro em calção de banho, com uma garrafa de vinho numa mão e uma prancha de surf na outra. Curioso, por estas bandas ainda se bebe pouco vinho, mas o hábito faz o monge. Donde, ali está o convite para o sumo de uva convenientemente vinificado. Como há dois anos escrevi, Portuguese wine nothing. No comments.

Logo à entrada da praia existe um caneiro a céu aberto com duas pequenas pontres para o acesso ao areal. Lembrei-me do que existia, anos a fio, na Cruz Qubrada, antes do emissário. O cheiro é pouco intenso, mas é... cheiro. Atravessado o caneiro, há um cartaz que publicita todos os serviços que podem ser utilizado pelos banhistas. A este propósito, convém deixar aqui duas  curiosidades que não são novas, pois são práticas antigas, mas sempre me impressionaram.

A primeira: os indianos, e aqui também os goeses (distinção que é praticada por cá...) vão à praia vestidos e as senhoras  com os seus saris tomam banho assim. Vêm que nem sopas, à volta. A segunda: os russos e obviamente as russas, algumas bem bonitas com os seus biquinis reduzidos, já vi fios dentais, são aos magotes. Gastam menos do que inicialmente, queixam-se os locais, mas, mesmo assim, são fonte de receita muito apreciável. Os empregados e vendedores diversos, já dizem umas coisas em cirílico falado... E os anúncios e os menus dos restaurantes debitam-no tranquilamente.

Estava observando um parapente, cheio de tentação, mas também carregadinho de cagaço, quando me telefonou o Carminho Costa, já repetidas vezes mencionado. Falava de Mapuçá, sua terra, onde há dois anos vivemos num excelente apartamento de urbanização construída pelo antigo colega da Raquel no Liceu Nacional Afonso de Albuquerque, mais um. Vinha propor uma ida a Goa Velha para assistir a uma procissão muito especial; trinta e um andores, cada um com o seu santo. Está explicada a afirmação inicial.

Esclareça-se já uma confusão  que ataca os menos informados: Goa Velha não tem nada a ver com Velha Cidade, ou seja Old Goa . Esta última foi a primeira capital  do tempo dos Portugueses. Tem várias igrejas entre as quais a  catedral e a do Bom Jesus onde repousa o corpo do apóstolo das Índias, Francisco Javier, nascido espanhol, mas santificado como Português. Na sua urna de prata cravejada de pedras preciosas, já é uma múmia, aliás deteriorada pelo tempo. Incorrupto, sim, mas tanto não. No entanto continua a conglomerar os fiés e os... infiés. Para além dos católicos, podem ver-se hindus, maometanos e até judeus em fila junto ao túmulo. Uma mini Babel, pois as línguas utilizadas são mais que muitas.

Um governador do “Estado Português da Índia”, nos idos do antigamente próximo, um tal Bossa, quando foi confrontado pelos  devotos que pretendiam ir de autocarro até Velha  Cidade na festa da exposição do corpo, terá respondido “quem tem fé vai a pé”. Mas, no caso vertente  a cerimónia decorre em Goa Velha, uma vila que como o nome indica, é de provecta idade , dizendo-se que se trata de localidade mais velha do que  o período dos Portugueses. Não me foi possível confirmar a afirmação, mas também não senti grande preocupação com ela, pois não pretendia escrever História.



Tive a oportunidade de assistir a uma parte da celebração. Uma multidão e, para mais, numa sexta-feira. Porém a fé dos católicos goeses é enorme e, por isso todos os lugares em que um crente se poderia sentar, nem vê-los. Por isso, decidi alterar a frase do governador Bossa: quem tem fé fica em pé. Terminada a missa com sete sacerdotes a concelebrá-la, e ministrada a comunhão, que foi de dimensão também enorme, seguiu-se a procissão dos trinta e um andores, cada um saindo da igreja anunciado com uma sonora badalada.

Os santos sucediam-se e tive a oportunidade de registar que entre eles, e para além do inevitável São Francisco Xavier, alinhavam dois lusos, o andor da Raínha Santa Isabel com as rosas no regaço e o do Santo António com o menino Jesus ao colo. Informa-me o Carminho que antigamente eram cento e trinta os andores. Assim, já entendo que a procissão é chamada de todos os santos. A corte celestial, se não estavam todos, tinha a maioria suficiente para tal qualificação. Hoje, a diminuição é grande, ainda que não haja por aqui qualquer resquicio de austeridade.

A criançada abunda levada pelos progenitores e fiquei entusiasmado com a diversidade infantil. Uns seguem cuidadosamente as cerimónias, outros mais miúdos vão correndo com os pais ou as mães atrás deles, ainda para aqui Francisco, ainda te perdes. E outros ainda mais miúdos, vão ao colo e não resistindo ao cansaço uma menininha  adormece no ombro do papá. São anjinhos sem asas.

Passam os andores e por baixo deles os fiés vão passando também. Para que os eleitos do Senhor os abençoe e lhes dê sorte. As religiões têm sempre seguidores que misturam a crença com a tradição. De longe, mulheres hindus observam o evento com respeito e recolhimento. Se a humanidade visse o que se estava a passar, não haveria guerra, nem crimes, muito menos o mistério do voo 370 do boeing 777 da Malasia Airways.

terça-feira, 8 de abril de 2014

GRALHAS SEM GRALHAS

Por Antunes Ferreira
 
O Santosh é o empregado de mesa do restaurante George com mais pinta. Os outros são meros comparsas e olham-no de soslaio. Já o conheço  - e ele a mim – há quase  oito anos, começou então por dizer uns sins e uns nãos em Português macarrónico, a que depois acrescentou  o clássico como está, o bom dia, o obrigado e (muito) pouco mais. Sempre que entrávamos no estabelecimento e ele dava conta disso comunicava o facto ao patrão e saía Amália Rodrigues ou o rancho folclórico de Santa Marta de Portuzelo. Simpático.

No George - que fica na praça da Igreja - há comida goesa de três estalos; atrevo-me a dizer que no domínio do caril, do sarapatel, do balchão, dos croquetes é o melhor de cá. Sem grandes espaventos, mas a publicidade que faz nos sacos de plástico é absolutamente verdadeira: the best sea food always fresh. Este ano o Santosh alargou o seu vocabulário e as frases em Português: Faz muita calor. Quer gelo? Agora? Depois? Sorpatel muita bom. A lingua roasted está grande boa. Esperimenta os croquetes; nas sextas há batatshop. E os liver da galinha  também está boa. Vou oferecer-lhe, antes de voltar para Lisboa, um livrinho que já comprei e que ensina umas coisas de português, inglês e concani. O rapaz merece. Só não sei se sabe ler...

Curiosamente conheci a autora, a D. Silvette D’Sá Mesquita e a sua filha Cheryl aqui mesmo no George. Tenho em minha casa em Lisboa um exemplar que adquiri aqui há dois anos, mas o meu concani persiste em ser uma lástima. Porém, já sei dizer sim ou seja ôi e não, que é . Kitlé poiça?, quanto custa? E cossó assai?, Como está? A preguiça, aliás congénita, a falta de persistência no estudo, mas, sobretudo, falta de prática ajudam a explicar o meu fracasso; mas também a Raquel não pesca nada, esqueceu o que só usava para falar com as criadas. As classes, pois claro, à mistura com as castas. No resto, era só o português. A prática mantém-se ainda hoje. Faz-me comichão, mas passa-me. E já que vou falar em militares cito o ditado calino-castrense sobre as escoriações: isso incha, desincha e passa.

No primeiro andar (aqui em Pangim e por toda a Goa há o costume dos melhores restaurantes serem nesse piso, não sei porquê) a sala tem AC – não,não se trata de ser antes de Cristo – é ar condicionado. Os preços são bem acessíveis, digo até baratos; um almoço para nós dois e um Amigo fica por cerca de dez euros, ou menos. Há por esta capital restaurantes mais caros e mais sofisticados. Desde o Motil Mahal, com um porteiro de bigodaças, até ao Aroma, passando pelo Uper House, pelo Ritz e pelo Sree Punjab. Mas, são sobretudo de cozinha indiana.


Já lá vão uns bons dias fomos almoçar ao George já citado, com o Ivo Viegas e a sua Tina já regressados a Lisboa, ou melhor a Queijas onde moram. Numas três mesas ao lado da nossa falava-se português castiço, com alguns vocábulos mais vernáculos. Averiguei quem eram os sujeitos e descobri, um tanto admirado, que tinham sido soldados no tempo dos Portugueses e até ficaram prisioneiros. Grupo patusco, bem disposto, em que se integrava também uma Senhora, esposa de um dos ex-militares. Andavam à roda dos setentas anos, mas cheios de vitalidade e boa disposição.

Conversa pra cá, conversa pra lá e deram-me os nomes e as moradas, bem como se deixaram fotografar quando lhes disse quem era e que iria publicar a sua caprichosa estória neste blogue. Enfim, tudo numa boa. O Santosh estava nas suas sete quintas e transformara-se em grafonola despejando português safável, antevendo bakshishes diversos e avultados. Explico: são gorjetas e têm origem árabe, são usadas em todos os países muçulmanos. O império dos Shah dominou a Índia e esta palavra é uma verdadeira herança.

Registei, portanto, os nomes dos visitantes. Deles aqui ficam alguns. Joaquim Isidoro Santos, da Atalaia¸ João Leocádio Gomes, Santo Antão do Tojal, Sabino Godinho Saturnino, Alpiarça, António dos Santos Neto, Montemor-o-Velho. Eram oito, mas não apontei todos. Fizeram-se umas saúdes com cerveja, uísque e gin; eu fiquei-me pela fresh lime soda, a doutora Alice Nobre não me permite mais. Desgraças... Uns estiveram presos no campo de prisioneiros de Pondá, outros em Alparqueiros. Mas todos, apesar dos transes por que passaram, unânimes: Goa é uma terra bendita, por isso aqui estão de viagem.

O Salazar ia-nos fodendo, mas o maior político foi um Senhor chamado Nerhu que impediu que fossemos trucidados. Ele, o Governador Geral general Vasalo e Silva e o patriarca D. José Alvernaz. Não fossem eles e a coisa podia ter dado um banho de sangue pois o Botas dissera até à última gota. Mas, assim, safámo-nos, os indianos não nos trataram mal, os goeses foram porreiraços, levavam-nos cigarros, comida picante e boa, sabão. Claro que não eram todos, mas eram muitos, muitos – e muitas.

Por isso aqui vinham em romagem de saudade, rever “as paisagens deste Paraíso”, reencontrar alguns velhotes amigos que ainda falam português, beber uns copos de feni e de  urraca, bebidas que não encontram em Portugal. E, quase em surdina face à satisfação deles fui perguntando o que fariam se encontrassem os seus carcereiros. “Íamos tomar umas bebidas, éramos todos militares, só que com  fardas e armas diferentes...” E, de lado, o Leocádio: “com as guerras só ganham os graúdos; os mais pequenos são sempre quem paga as favas...”.

Era tempo de despedidas, nós ficávamos eles seguiam viagem, uma peregrinação, “é tão bom voltarmos cá”. E, chiça !, só mais tarde descobriria que as fotos que tirara aos viajantes estavam mais tremidas do que se tivessem apanhado um susto. Uma merda impublicável. Entrementes, o nosso Santosh ia empochando as bakshishes, satisfeito da vida, um maná em rupias não cai do céu todos os dias. Homem bons os portugueses, vem mais e eu muito bem do dinheiro. Lá fora, o calor aperta. A igreja branqueia no alto da sua escadaria. A malta da pesada, ou seja o nosso grupo, na cerveja, no uísque e no gin tónico. E eu a fresh lime soda. Porra! A vida está cheia de injustiças.