O Santosh é o empregado de mesa do restaurante George com mais pinta. Os outros são meros
comparsas e olham-no de soslaio. Já o conheço - e ele a mim
– há quase oito anos, começou então por dizer uns sins e uns nãos em Português
macarrónico, a que depois acrescentou o
clássico como está, o bom dia, o obrigado e (muito) pouco mais. Sempre que
entrávamos no estabelecimento e ele dava conta disso comunicava o facto ao
patrão e saía Amália Rodrigues ou o rancho folclórico de Santa Marta de
Portuzelo. Simpático.
No George - que fica na praça da Igreja - há
comida goesa de três estalos; atrevo-me a dizer que no domínio do caril, do
sarapatel, do balchão, dos croquetes é o melhor de cá. Sem
grandes espaventos, mas a publicidade que faz nos sacos de plástico é absolutamente verdadeira:
the best sea food always fresh. Este ano o Santosh alargou o seu vocabulário e
as frases em Português: Faz muita calor.
Quer gelo? Agora? Depois? Sorpatel muita bom. A lingua roasted está grande boa. Esperimenta os croquetes; nas sextas
há batatshop. E os liver da galinha também
está boa. Vou
oferecer-lhe, antes de voltar para Lisboa, um livrinho que já comprei e que
ensina umas coisas de português, inglês e concani. O rapaz merece. Só não sei
se sabe ler...
Curiosamente conheci a autora, a D. Silvette D’Sá
Mesquita e a sua filha Cheryl aqui mesmo no George. Tenho em minha casa em
Lisboa um exemplar que adquiri aqui há dois anos, mas o meu concani persiste em
ser uma lástima. Porém, já sei dizer sim ou seja ôi e não, que é ná. Kitlé poiça?, quanto custa? E cossó assai?, Como está? A preguiça,
aliás congénita, a falta de persistência no estudo, mas, sobretudo, falta de
prática ajudam a explicar o meu fracasso; mas também a Raquel não pesca nada,
esqueceu o que só usava para falar com as criadas. As classes, pois claro, à
mistura com as castas. No resto, era só o português. A prática mantém-se
ainda hoje. Faz-me comichão, mas passa-me. E já que vou falar em
militares cito o ditado calino-castrense sobre as escoriações: isso incha,
desincha e passa.
No primeiro andar (aqui em
Pangim e por toda a Goa há o costume dos melhores restaurantes serem nesse piso,
não sei porquê) a sala tem AC – não,não se trata de ser antes de Cristo – é ar
condicionado. Os preços são bem acessíveis, digo até baratos; um almoço para
nós dois e um Amigo fica por cerca de dez euros, ou menos. Há por esta capital
restaurantes mais caros e mais sofisticados. Desde o Motil Mahal, com um
porteiro de bigodaças, até ao Aroma, passando pelo Uper House, pelo Ritz e pelo
Sree Punjab. Mas, são sobretudo de cozinha indiana.
Já lá vão uns bons dias fomos
almoçar ao George já citado, com o Ivo Viegas e a sua Tina já regressados a
Lisboa, ou melhor a Queijas onde moram. Numas três mesas ao lado da nossa
falava-se português castiço, com alguns vocábulos mais vernáculos. Averiguei
quem eram os sujeitos e descobri, um tanto admirado, que tinham sido soldados
no tempo dos Portugueses e até ficaram prisioneiros. Grupo patusco, bem
disposto, em que se integrava também uma Senhora, esposa de um dos
ex-militares. Andavam à roda dos setentas anos, mas cheios de vitalidade e boa
disposição.
Conversa pra cá, conversa pra lá e deram-me os nomes e as moradas, bem como se
deixaram fotografar quando lhes disse quem era e que iria publicar a sua
caprichosa estória neste blogue. Enfim, tudo numa boa. O Santosh estava nas
suas sete quintas e transformara-se em grafonola despejando português safável,
antevendo bakshishes diversos e avultados. Explico: são gorjetas e têm origem
árabe, são usadas em todos os países muçulmanos. O império dos Shah dominou a
Índia e esta palavra é uma verdadeira herança.
Registei, portanto, os nomes dos
visitantes. Deles aqui ficam alguns. Joaquim Isidoro Santos, da Atalaia¸ João
Leocádio Gomes, Santo Antão do Tojal, Sabino Godinho Saturnino, Alpiarça,
António dos Santos Neto, Montemor-o-Velho. Eram oito, mas não apontei todos.
Fizeram-se umas saúdes com cerveja, uísque e gin; eu fiquei-me pela fresh lime
soda, a doutora Alice Nobre não me permite mais. Desgraças... Uns estiveram
presos no campo de prisioneiros de Pondá, outros em Alparqueiros. Mas
todos, apesar dos transes por que passaram, unânimes: Goa é uma terra bendita,
por isso aqui estão de viagem.
O Salazar ia-nos fodendo, mas
o maior político foi um Senhor chamado Nerhu que impediu que fossemos
trucidados. Ele, o Governador Geral general Vasalo e Silva e o patriarca D.
José Alvernaz. Não fossem eles e a coisa podia ter dado um banho de sangue pois
o Botas dissera até à última gota.
Mas, assim, safámo-nos, os indianos não nos trataram mal, os goeses foram
porreiraços, levavam-nos cigarros, comida picante e boa, sabão. Claro que não
eram todos, mas eram muitos, muitos – e muitas.
Por isso aqui vinham em romagem de saudade,
rever “as paisagens deste Paraíso”, reencontrar alguns velhotes amigos que
ainda falam português, beber uns copos de feni e de urraca, bebidas que
não encontram em Portugal.
E, quase em surdina face à satisfação deles fui perguntando o
que fariam se encontrassem os seus carcereiros. “Íamos tomar umas
bebidas, éramos todos militares, só que com fardas e armas diferentes...” E,
de lado, o Leocádio: “com as guerras só ganham os graúdos; os mais pequenos são
sempre quem paga as favas...”.
Era tempo de despedidas, nós
ficávamos eles seguiam viagem, uma peregrinação, “é tão bom voltarmos cá”. E,
chiça !, só mais tarde descobriria que as fotos que tirara aos viajantes estavam
mais tremidas do que se tivessem apanhado um susto. Uma merda impublicável.
Entrementes, o nosso Santosh ia empochando as bakshishes, satisfeito da vida,
um maná em rupias não cai do céu todos os dias. Homem bons os portugueses, vem mais e eu muito bem do dinheiro. Lá fora,
o calor aperta. A igreja branqueia no alto da sua escadaria. A malta da pesada,
ou seja o nosso grupo, na cerveja, no uísque e no gin tónico. E eu a fresh lime
soda. Porra! A vida está cheia de injustiças.
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