Por Antunes
Ferreira
Deu borem dis
dium.
Ou seja, bom dia, em concani.
NA MINHA casa ouve-se o mar, as ondas marulhando a uns duzentos
metros, ou seja quase aqui à porta. No quintal mesmo ao lado cresce um coqueiro
– olha que novidade – uma árvore que dá pão, uma pãozeira, portanto, uma
mangueira e muitas buganvílias. Nuns trezentos metros da minha rua, caso
curioso, existem três cabeleireiros, um dos quais unissexo, dois restaurantes,
um bar, três ourives, duas agências bancárias, um consultório médico e uma
farmácia. Só falta a loja do caju. Mas, não se pode ter tudo. Para todos os
gostos, enfim. Frutas pão e mangas ainda não estão prontas como aqui se diz, em
vez de maduras que nós usamos em Portugal.
A propósito, abro aqui uma parentética para dar conta de episódio
ocorrido em Luanda, quando estávamos por lá. A Raquel tinha tido os partos do
Miguel e do Paulo em Lisboa, na clínica de São Miguel, sob o cuidado atento do
Prof. Castro Caldas e o acompanhamento posterior pelo primo e padrinho de
casamento, Prof. Mário Cordeiro, aliás primo da minha consorte e pediatra de
mão cheira. Recordo que fora, em casa dele que tinha descoberto a miúda que
viera de Goa alegadamente para estudar na Faculdade de Ciências: Mas, creio que
me caçar e depois casar.
Então, na capital angolana onde tínhamos produzido o terceiro
descendente ou terceira, na altura não havia ecografias, e quase findos os nove
meses habituais, fomos no carrito que comprara, um pequenino Mitsubichi Colt
(anos de colonialismo já me tinham permitido entrar pelo desvario…) à Casa de
Saúde do SNECIPA onde o/a rebento/a viria ao Mundo. Enquanto a mina consorte –
tinha casado comigo, daí o nome – subia ao primeiro andar para mirar a
enfermaria, eu ficara no minúsculo boguinhas acompanhado dos dois primeiros
infantes: o Miguel com cinco anos e o Paulo com três.
O primogénito era desde sempre o mais crédulo e ingénuo, o seguinte
caracterizava-se pela esperteza um tanto saloia, mandando bocas aqui e ali e
contestando quase sempre as normas maternas e paternas. E foi o Miguel que me
perguntou, ó Pai, onde foi a mãe?, ao que respondi (estávamos ainda nos anos
sessenta) que a mãe tinha ido ao local onde iria buscar o mano. Silêncio.
Desceu a Raquel com umas trombas elefantinas. É mau? Perguntei-lhe. É péssimo.
Nisto, o Miguel, ó mãe então o mano? E o Paul, galharda e convictamente, não
vês que ele ainda não estava pronto!!! Fecho o parêntesis.
Voltando à minha rua; é por ela que se chega à praia de Miramar, daí
os murmúrios do Índico. Passa-se pelo
colégio Dhempé, antes Dempó, uma enorme instituição mandada construir pelo
magnata do mesmo nome. Rapazes e raparigas de todas as classes, desde a
primária até aos cursos superiores são fotocópias de todos os estudantes do
orbe terráqueo; a mochila é fundamental. E os namoricos vão aumentando, ao
invés do que se passava no antigamente.
No fundo da rua – aqui é road em vez de street – está plantado um
templo hindu, moderno, onde para as pessoas entrarem têm de se descalçar. O
mesmo acontece nos consultórios de médicos hindus, escritórios de advogados e
outros. Fui ao estaminé do Dr. Ashish Surlenkar onde ouvi uma estória para dar
que pensar, eu conto, o clínico é uns anos mais velho do que a Raquel e
conversou com[HAF1] igo num Português escorreito.
Tinha lá ido por via de um problemazito intestinal, nada de grave, e
depois ficámos a conversar e fiquei sabendo que ele completara o curso na
Escola Médica de Goa e pretendia depois ir para Lisboa fazer uma série de
cadeiras para a equiparação, “quando aconteceu aquilo, a libertação , como aqui
dizem…” Pasmei. Da boca de um hindu ouvir uma tal frase, 53 anos depois dos
acontecimentos de Dezembro de 61, deixou-me espantado; mas calei-me e começámos
a falar do Benfica, como bom sportinguista retorqui-lhe, rimo-nos – e não me
cobrou a consulta , aliás seria
caríssima , 2,2 €…
Do outro lado da marginal que une a capital a Miramar, há mais um
restaurante, o Foodland (do Turismo de Goa) e também hotel, uma pastelaria, a
Canapé, grupo hoteleiro de grande
dimensão que existe por todo o estado. É, por conseguinte, uma rua muito
importante, onde os pregões das peixeiras, vendedoras de hortaliças, vendedores
de baldes e outras alfaias de plástico, se misturam com a buzina da bicicleta
do padeiro. Que, vejam lá, começou a entregar o pão à nossa porta quando viu a
minha mulher com um pé elástico. Gentil, o homem. Gentil, o procedimento.
É, como já compreenderam, uma rua com pedigree. Embora com poucos
passeios, o que em Goa é absolutamente natural, são os que sobrevivem às
monções e nos quais é mais perigoso
peotonar do que na beira da road, vincando olimpicamente o destemor do
cidadão e confiando na boa vontade e na falta de pontaria dos condutores.
Estes, além disso, são verdadeiros malabaristas, funâmbulos num tráfego
diabólico e ao som triunfal das buzinas de todas as espécies, tonalidades,
decibéis et aliut. Há passadeiras, é certo; mas pouco falta para multar os
temerosos que as tentem utilizar para atravessar uma qualquer road.
Porquê uma tal opção galharda e valente? Os suspeitos passeios, esses
sim, são um perigo constante, armadilhados, traiçoeiros, esventrados. As
monções têm as costas largas. As chuvas são permanentes, ou quase, de acordo
com fontes fidedignas e presenciais e as alturas das águas atingem por vezes os
30/40 centímetros; donde os lancis são altíssimos, onde alpinistas conceituados
teriam o maior êxito. E as sarjetas, entupidas até mais não, recusam-se
honestamente a escoar o OH2 pluviométrico e sujo.
Fico a imaginar a saga trágico-marítima dos riquexós durante a estação
chuvosa. Penso até que veículos tão prestimosos deverão nessas ocasiões possuir
como equipamento adicional - boias. Para flutuar, está visto; mas também de salvação. A
propósito, no princípio da minha rua há uma praça desses triciclos pretos e
amarelos, fabricados por uma tal Bajaj que deve ter resultados espampanantes, a
julgar pela miríade de tais engenhocas rodoviárias que quais enxames se
espalham por todo este imenso subcontinente, Goa incluída, como é óbvio. O CEO
dessa frota já nos conhece e apenas chegamos, faz-nos sinal para aguardarmos do
nosso lado, que o riquexó mais próximo atravessa a road e vem tomar-nos como
passageiros.
E até já não é preciso acertar previamente o valor da corrida, prática
costumeira: daqui a Pangim são setenta rupias. E se o digno condutor é goês e
ouve que a passageira é também patrícia, de Raia, então, sessenta. Já estou
convencido de que, perante esta prática deve haver uma maçonaria dos goeses.
Mas, claro, não o digo, guardo a convicção no mais recôndito de mim e ando de
riquexó a preço regional. Sou um pacló, um branco, bem o sei, mas a minha
patroa é de Salcete no Sul, gente boa, e o condutor também é daqueles lados,
quase vizinho. Não são como os de Bardez, deus os criou mas mal fez…
Na frente da minha casa (que é um apartamento porreiríssimo, como já
disse) estão os Bobby Apartments, num segundo andar dos quais vive uma família
de pai, mãe, filha (uns 13 anos) e filho (talvez uns dez). O chefe tem uma
vespa, da marca Hero, indiana como o sari. Há-as aos montes, no caso presente
os Gates, de todos os modelos, feitios, cores e sei lá que mais. Fazem parte da
ciclópica família Motobike, incluindo-se nela motorizadas e motos. Ontem, vi-os
sair, aperaltados – por certo iam a casamento, baptizado, quejandos. Os quatro
na Hero. Já vi seis. Estes nossos vizinhos são comedidos.
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