quarta-feira, 12 de março de 2014

'Deu borem dis dium'



Por Antunes Ferreira
Deu borem dis dium. Ou seja, bom dia, em concani.

NA MINHA casa ouve-se o mar, as ondas marulhando a uns duzentos metros, ou seja quase aqui à porta. No quintal mesmo ao lado cresce um coqueiro – olha que novidade – uma árvore que dá pão, uma pãozeira, portanto, uma mangueira e muitas buganvílias. Nuns trezentos metros da minha rua, caso curioso, existem três cabeleireiros, um dos quais unissexo, dois restaurantes, um bar, três ourives, duas agências bancárias, um consultório médico e uma farmácia. Só falta a loja do caju. Mas, não se pode ter tudo. Para todos os gostos, enfim. Frutas pão e mangas ainda não estão prontas como aqui se diz, em vez de maduras que nós usamos em Portugal.
A propósito, abro aqui uma parentética para dar conta de episódio ocorrido em Luanda, quando estávamos por lá. A Raquel tinha tido os partos do Miguel e do Paulo em Lisboa, na clínica de São Miguel, sob o cuidado atento do Prof. Castro Caldas e o acompanhamento posterior pelo primo e padrinho de casamento, Prof. Mário Cordeiro, aliás primo da minha consorte e pediatra de mão cheira. Recordo que fora, em casa dele que tinha descoberto a miúda que viera de Goa alegadamente para estudar na Faculdade de Ciências: Mas, creio que me caçar e depois casar.
Então, na capital angolana onde tínhamos produzido o terceiro descendente ou terceira, na altura não havia ecografias, e quase findos os nove meses habituais, fomos no carrito que comprara, um pequenino Mitsubichi Colt (anos de colonialismo já me tinham permitido entrar pelo desvario…) à Casa de Saúde do SNECIPA onde o/a rebento/a viria ao Mundo. Enquanto a mina consorte – tinha casado comigo, daí o nome – subia ao primeiro andar para mirar a enfermaria, eu ficara no minúsculo boguinhas acompanhado dos dois primeiros infantes: o Miguel com cinco anos e o Paulo com três.
O primogénito era desde sempre o mais crédulo e ingénuo, o seguinte caracterizava-se pela esperteza um tanto saloia, mandando bocas aqui e ali e contestando quase sempre as normas maternas e paternas. E foi o Miguel que me perguntou, ó Pai, onde foi a mãe?, ao que respondi (estávamos ainda nos anos sessenta) que a mãe tinha ido ao local onde iria buscar o mano. Silêncio. Desceu a Raquel com umas trombas elefantinas. É mau? Perguntei-lhe. É péssimo. Nisto, o Miguel, ó mãe então o mano? E o Paul, galharda e convictamente, não vês que ele ainda não estava pronto!!! Fecho o parêntesis.
Voltando à minha rua; é por ela que se chega à praia de Miramar, daí os murmúrios do  Índico. Passa-se pelo colégio Dhempé, antes Dempó, uma enorme instituição mandada construir pelo magnata do mesmo nome. Rapazes e raparigas de todas as classes, desde a primária até aos cursos superiores são fotocópias de todos os estudantes do orbe terráqueo; a mochila é fundamental. E os namoricos vão aumentando, ao invés do que se passava no antigamente.
No fundo da rua – aqui é road em vez de street – está plantado um templo hindu, moderno, onde para as pessoas entrarem têm de se descalçar. O mesmo acontece nos consultórios de médicos hindus, escritórios de advogados e outros. Fui ao estaminé do Dr. Ashish Surlenkar onde ouvi uma estória para dar que pensar, eu conto, o clínico é uns anos mais velho do que a Raquel e conversou com[HAF1] igo num Português escorreito.
Tinha lá ido por via de um problemazito intestinal, nada de grave, e depois ficámos a conversar e fiquei sabendo que ele completara o curso na Escola Médica de Goa e pretendia depois ir para Lisboa fazer uma série de cadeiras para a equiparação, “quando aconteceu aquilo, a libertação , como aqui dizem…” Pasmei. Da boca de um hindu ouvir uma tal frase, 53 anos depois dos acontecimentos de Dezembro de 61, deixou-me espantado; mas calei-me e começámos a falar do Benfica, como bom sportinguista retorqui-lhe, rimo-nos – e não me cobrou  a consulta , aliás seria caríssima , 2,2 €…
Do outro lado da marginal que une a capital a Miramar, há mais um restaurante, o Foodland (do Turismo de Goa) e também hotel, uma pastelaria, a Canapé, grupo   hoteleiro de grande dimensão que existe por todo o estado. É, por conseguinte, uma rua muito importante, onde os pregões das peixeiras, vendedoras de hortaliças, vendedores de baldes e outras alfaias de plástico, se misturam com a buzina da bicicleta do padeiro. Que, vejam lá, começou a entregar o pão à nossa porta quando viu a minha mulher com um pé elástico. Gentil, o homem. Gentil, o procedimento.
É, como já compreenderam, uma rua com pedigree. Embora com poucos passeios, o que em Goa é absolutamente natural, são os que sobrevivem às monções e nos quais é mais perigoso  peotonar do que na beira da road, vincando olimpicamente o destemor do cidadão e confiando na boa vontade e na falta de pontaria dos condutores. Estes, além disso, são verdadeiros malabaristas, funâmbulos num tráfego diabólico e ao som triunfal das buzinas de todas as espécies, tonalidades, decibéis et aliut. Há passadeiras, é certo; mas pouco falta para multar os temerosos que as tentem utilizar para atravessar uma qualquer road.
Porquê uma tal opção galharda e valente? Os suspeitos passeios, esses sim, são um perigo constante, armadilhados, traiçoeiros, esventrados. As monções têm as costas largas. As chuvas são permanentes, ou quase, de acordo com fontes fidedignas e presenciais e as alturas das águas atingem por vezes os 30/40 centímetros; donde os lancis são altíssimos, onde alpinistas conceituados teriam o maior êxito. E as sarjetas, entupidas até mais não, recusam-se honestamente a escoar o OH2 pluviométrico e sujo.
Fico a imaginar a saga trágico-marítima dos riquexós durante a estação chuvosa. Penso até que veículos tão prestimosos deverão nessas ocasiões possuir como equipamento adicional  - boias. Para flutuar, está visto; mas também de salvação. A propósito, no princípio da minha rua há uma praça desses triciclos pretos e amarelos, fabricados por uma tal Bajaj que deve ter resultados espampanantes, a julgar pela miríade de tais engenhocas rodoviárias que quais enxames se espalham por todo este imenso subcontinente, Goa incluída, como é óbvio. O CEO dessa frota já nos conhece e apenas chegamos, faz-nos sinal para aguardarmos do nosso lado, que o riquexó mais próximo atravessa a road e vem tomar-nos como passageiros.
E até já não é preciso acertar previamente o valor da corrida, prática costumeira: daqui a Pangim são setenta rupias. E se o digno condutor é goês e ouve que a passageira é também patrícia, de Raia, então, sessenta. Já estou convencido de que, perante esta prática deve haver uma maçonaria dos goeses. Mas, claro, não o digo, guardo a convicção no mais recôndito de mim e ando de riquexó a preço regional. Sou um pacló, um branco, bem o sei, mas a minha patroa é de Salcete no Sul, gente boa, e o condutor também é daqueles lados, quase vizinho. Não são como os de Bardez, deus os criou mas mal fez…
Na frente da minha casa (que é um apartamento porreiríssimo, como já disse) estão os Bobby Apartments, num segundo andar dos quais vive uma família de pai, mãe, filha (uns 13 anos) e filho (talvez uns dez). O chefe tem uma vespa, da marca Hero, indiana como o sari. Há-as aos montes, no caso presente os Gates, de todos os modelos, feitios, cores e sei lá que mais. Fazem parte da ciclópica família Motobike, incluindo-se nela motorizadas e motos. Ontem, vi-os sair, aperaltados – por certo iam a casamento, baptizado, quejandos. Os quatro na Hero. Já vi seis. Estes nossos vizinhos são comedidos.

Sem comentários: