É uma sala
recheada de mobília indo-portuguesa, um aparador precioso, cadeirões
magníficos, uma espreguiçadeira desenhada pelo Senhor que me recebe e veste,
descontraído, calções e camisa de manga curta, É toda desmontável, esclarece,
com uns poucos parafusos, basta desenrosca-los e já está, mandei doze ou treze
para Portugal, vêm cá goeses de férias e pedem-me para as encomendar e enviar.
As recordações vogam por ali, reflectidas nos quadros que povoam as paredes.
Uma osga, plácida e imóvel, espera talvez mosquito para o pequeno-almoço.
Um brasão do
Estado Português da Índia também está pendurado numa delas. Ontem e hoje
misturam-se sem brigar com imagens de Santo António e Ganeshes; convivem. Com o
Holi a rapariga deixou-me a comida já feita, vou vivendo sozinho até que desça
à tumba. E não me aborreço, tenho sempre coisas para fazer, não posso estar
parado. Lá fora o barulho, os tambores, a gente pintada de várias cores, da
cara ao vestuário, sem esquecer o cabelo, brincando, berrando, pulando, é um
dia especial, o Carnaval hindu, meio pagão meio santo, enquanto a bebedeira não
toma conta dos foliões. É o Holi e está tudo dito.
Percival Noronha já fez
90 anos, confessa-o sorrindo, mas está de memória perfeita, explanação clara,
desfia anos como quem desfolha as pétalas do malmequer, bem-me- quer, finta o
tempo, sabe tudo, A Raquel é filha do director da Alfândega, o Carlos Melo, bom
homem, competente na Raia, tinha uma bela casa de família agora reconstruída
mas já não é que era. Conta as contas do rosário goês, conhece as famílias,
enfim, as suas desditas e por aí fora: é omnisciente e omnipresente, um deus
enraizado na terra. Ouço-o desbobinar a História e apenas lhe faço uma que
outra pergunta. Responde logo. Um espanto!
Quem me levou à casa
dele, nas Fontaínhas, a Alfama de Panjim, foi o Zito Menezes, médico
aposentado, sportinguista ferrenho, bué da fixe, de quem já falei noutras
ocasiões. Foi colega da Raquel durante os sete anos do Liceu Nacional Afonso de
Albuquerque e conhece perfeitamente Percival. Aliás, falou-lhe na semana
passada da nossa visita ao que ele acedeu, Gosto de receber pessoas, de falar
com elas e nós a ouvi-lo, a Raquel também alinhou na visita, quase não respiro
face ao que ouço e vejo.
O Senhor
desculpe-me, estou um tanto surdo, e puxa a orelha para ouvir melhor, o ruído
dos holiões é catastrófico, mas mesmo assim, vai relatando o que aconteceu no
tempo dos Portugueses e depois. Caso elucidativo que desmente a versão
criminosa posta a circular no tempo salazarento. Recordo a declaração do ministro
da Presidência Correia de Oliveira, aliás o Correio do Oliveira como então
dizíamos na galhofa. Segundo ele, tinham morrido três mil e mais umas centenas
de militares na defesa do solo sagrado da Roma do Oriente, a Pátria fora
miseravelmente atacada e conquistada pela invasão das tropas indianas do
pandita, o que era igual a bandita, bandido.
O Diário de
Notícias publicou em caixa a mentira do regime. E também referiu o
bombardeamento dos depósitos de combustíveis em Vasco da Gama, com incontáveis
baixas na população. Estava-se a 22 de Dezembro de 1961, eu começara a namorar
com a Raquel em 22 de Agosto e pude acompanhar os dias de angústia que ela
vivia. Os seus pais e cinco irmãos moravam ali. Podiam estar todos mortos, de
acordo com os noticiários falsos e os comentários pseudo-patrióticos que
circulavam.
Foi então que me
lembrei de recorrer aos meus amigos e vizinhos no Bairro do Restelo, os Solano
de Almeida, cujo pai, comandante dos TAIP, Transportes Aéreos da Índia
Portuguesa, cometera o feito de descolar com o seu Douglas DC 4, da pista
bombardeada do aeroporto de Dabolim. Tinha demonstrado uma perícia, um
sangue-frio e um destemor realmente notáveis. Na casa dele e depois de eu ter
explicado ao que vinha, o piloto informou-me das mentiras que circulavam
em Portugal e que até conhecia os meus
futuros sogros, encontrando-se a família de perfeita saúde. Não gostava do
regime salazarento, sabia. Claro que a Raquel passou o Natal muito mais
sossegada. E eu também.
Agora e
aqui, Percival
limita-se a concordar: foi mesmo assim. Pergunto-me quem é este homem de
saberes imensos, cronista, viúvo, orador, combatente de muitas causas,
repositório vivo de noventa anos de História, completados em 22 de Junho do ano
passado? Recorro a notas biográficas publicadas no semanário “Goan” em inglês e
por mim adaptadas em
Português. Tenho de agradecer à publicação, de outro modo
teria de encher-me de paciência para seleccionar dados sobre ele, tantos são os
que existem. O que em férias seria de criticar e de eu ser considerado, pelo
menos, maluco…
“Percival não é um cronista do passado, ele é
o passado, Em 1961, quando a Índia recuperou Goa, ele era
funcionário, tendo chegado a Chefe do Gabinete de Informação, que reportava
directamente ao último Governador Português, Vassalo Silva, com quem viajou por
inúmeras vezes para Damão e Diu. A sua tranquila eficiência e capacidade de
elaborar e aplicar regras, fê-lo osubir na hierarquia sob o Governo indiano
tornando-se chefe do Protocolo Oficial no final dos anos setenta e, em seguida,
subsecretário de departamentos-chave - saúde, indústria, informação e turismo.
Realmente continua
a ter um talento especial, com raízes ancestrais nas aldeias de S. Matias em
Mala de onde veio sua mãe Aurora Vital e Noronha e Loutolim, a vila de seu pai Antonio José de
Noronha. Este partiu para o Uganda com Percival, então quase bebé, e
voltou em 1929, quando tinha sete anos;
deu entrada no Liceu para completar a sua escolaridade”.
Durante a nossa conversa apontou a herança de Goa que se
encontra em ruínas.
Posso dizer que Percival é a herança que ainda está de pé, e
sublinha que os arquivos de Goa estão a perder-se e em estado decadente, bem
como os edifícios antigos que não foram persevados. Mas, perante o seu saber e
a sua lucidez, ele continua a ser um arquivo permanente que acentua como Goa
desliza em plano inclinado e se torna uma sombra do seu passado.
Saio da casa de Percival no bairro das Fontaínhas
perfeitamente esmagado; alias, saímos os três, o Zito, a Raquel e eu. Descemos
os degraus que nos tinham levado ao primeiro andar e lá em cima Percival como
bom anfitrião despede-se, acenando cordialmente. Pede-me para voltar, tem um
livro para me oferecer. Claro que voltarei. Na parede do cimo do patamar da
escada tem uma roda de madeira também trabalhada. É a última informação que nos
dá, trata-se de uma peça que mandou fazer e é uma reprodução das que em pedra
fazem parte de templos hindus que são carros.
Cá fora os foliões hindus bem pintados continuam a carnavalar o Holi. Por toda a Goa este é um
dia especial e feriado, as lojas fecham e, singularmente apenas umas quantas de
hindus se mantêm abertas. No resto da Índia também. Nas Fontaínhas, bairro
castiço, onde os habitantes são particularmente católicos, de cultura e
tradições lusas, estes festejos vão durar todo o dia, parando apenas amanhã que
é dia de trabalho. Três moças, alias bem bonitas, perguntam-nos sorridentes se
nos deixamos pintar. Faço um gesto evasivo, mas respondo-lhes um não, também
sorrindo. Soltam gargalhadas cristalinas e berrantes como os saris que usam – e
afastam-se. Goa também é isto.