sábado, 29 de março de 2014

GRALHAS SEM GRALHAS - O Senhor Sabe Tudo

Por Antunes Ferreira

É uma sala recheada de mobília indo-portuguesa, um aparador precioso, cadeirões magníficos, uma espreguiçadeira desenhada pelo Senhor que me recebe e veste, descontraído, calções e camisa de manga curta, É toda desmontável, esclarece, com uns poucos parafusos, basta desenrosca-los e já está, mandei doze ou treze para Portugal, vêm cá goeses de férias e pedem-me para as encomendar e enviar. As recordações vogam por ali, reflectidas nos quadros que povoam as paredes. Uma osga, plácida e imóvel, espera talvez mosquito para o pequeno-almoço.


Um brasão do Estado Português da Índia também está pendurado numa delas. Ontem e hoje misturam-se sem brigar com imagens de Santo António e Ganeshes; convivem. Com o Holi a rapariga deixou-me a comida já feita, vou vivendo sozinho até que desça à tumba. E não me aborreço, tenho sempre coisas para fazer, não posso estar parado. Lá fora o barulho, os tambores, a gente pintada de várias cores, da cara ao vestuário, sem esquecer o cabelo, brincando, berrando, pulando, é um dia especial, o Carnaval hindu, meio pagão meio santo, enquanto a bebedeira não toma conta dos foliões. É o Holi e está tudo dito.


Percival Noronha já fez 90 anos, confessa-o sorrindo, mas está de memória perfeita, explanação clara, desfia anos como quem desfolha as pétalas do malmequer, bem-me- quer, finta o tempo, sabe tudo, A Raquel é filha do director da Alfândega, o Carlos Melo, bom homem, competente na Raia, tinha uma bela casa de família agora reconstruída mas já não é que era. Conta as contas do rosário goês, conhece as famílias, enfim, as suas desditas e por aí fora: é omnisciente e omnipresente, um deus enraizado na terra. Ouço-o desbobinar a História e apenas lhe faço uma que outra pergunta. Responde logo. Um espanto!


Quem me levou à casa dele, nas Fontaínhas, a Alfama de Panjim, foi o Zito Menezes, médico aposentado, sportinguista ferrenho, bué da fixe, de quem já falei noutras ocasiões. Foi colega da Raquel durante os sete anos do Liceu Nacional Afonso de Albuquerque e conhece perfeitamente Percival. Aliás, falou-lhe na semana passada da nossa visita ao que ele acedeu, Gosto de receber pessoas, de falar com elas e nós a ouvi-lo, a Raquel também alinhou na visita, quase não respiro face ao que ouço e vejo.


O Senhor desculpe-me, estou um tanto surdo, e puxa a orelha para ouvir melhor, o ruído dos holiões é catastrófico, mas mesmo assim, vai relatando o que aconteceu no tempo dos Portugueses e depois. Caso elucidativo que desmente a versão criminosa posta a circular no tempo salazarento. Recordo a declaração do ministro da Presidência Correia de Oliveira, aliás o Correio do Oliveira como então dizíamos na galhofa. Segundo ele, tinham morrido três mil e mais umas centenas de militares na defesa do solo sagrado da Roma do Oriente, a Pátria fora miseravelmente atacada e conquistada pela invasão das tropas indianas do pandita, o que era igual a bandita, bandido.


O Diário de Notícias publicou em caixa a mentira do regime. E também referiu o bombardeamento dos depósitos de combustíveis em Vasco da Gama, com incontáveis baixas na população. Estava-se a 22 de Dezembro de 1961, eu começara a namorar com a Raquel em 22 de Agosto e pude acompanhar os dias de angústia que ela vivia. Os seus pais e cinco irmãos moravam ali. Podiam estar todos mortos, de acordo com os noticiários falsos e os comentários pseudo-patrióticos que circulavam.


Foi então que me lembrei de recorrer aos meus amigos e vizinhos no Bairro do Restelo, os Solano de Almeida, cujo pai, comandante dos TAIP, Transportes Aéreos da Índia Portuguesa, cometera o feito de descolar com o seu Douglas DC 4, da pista bombardeada do aeroporto de Dabolim. Tinha demonstrado uma perícia, um sangue-frio e um destemor realmente notáveis. Na casa dele e depois de eu ter explicado ao que vinha, o piloto informou-me das mentiras que circulavam em  Portugal e que até conhecia os meus futuros sogros, encontrando-se a família de perfeita saúde. Não gostava do regime salazarento, sabia. Claro que a Raquel passou o Natal muito mais sossegada. E eu também.


Agora e aqui, Percival  limita-se a concordar: foi mesmo assim. Pergunto-me quem é este homem de saberes imensos, cronista, viúvo, orador, combatente de muitas causas, repositório vivo de noventa anos de História, completados em 22 de Junho do ano passado? Recorro a notas biográficas publicadas no semanário “Goan” em inglês e por mim adaptadas em Português. Tenho de agradecer à publicação, de outro modo teria de encher-me de paciência para seleccionar dados sobre ele, tantos são os que existem. O que em férias seria de criticar e de eu ser considerado, pelo menos, maluco…


 “Percival não é um cronista do passado, ele é o passado, Em 1961, quando a Índia recuperou Goa, ele era funcionário, tendo chegado a Chefe do Gabinete de Informação, que reportava directamente ao último Governador Português, Vassalo Silva, com quem viajou por inúmeras vezes para Damão e Diu. A sua tranquila eficiência e capacidade de elaborar e aplicar regras, fê-lo osubir na hierarquia sob o Governo indiano tornando-se chefe do Protocolo Oficial no final dos anos setenta e, em seguida, subsecretário de departamentos-chave - saúde, indústria, informação e turismo.

 Realmente continua a ter um talento especial, com raízes ancestrais nas aldeias de S. Matias em Mala de onde veio sua mãe Aurora Vital e Noronha  e Loutolim, a vila de seu pai Antonio José de Noronha. Este partiu para o Uganda com Percival, então quase bebé, e voltou em 1929, quando  tinha sete anos; deu entrada no Liceu para completar a sua escolaridade”.

 Durante a nossa conversa apontou a herança de Goa que se encontra em ruínas. Posso dizer que Percival é a herança que ainda está de pé, e sublinha que os arquivos de Goa estão a perder-se e em estado decadente, bem como os edifícios antigos que não foram persevados. Mas, perante o seu saber e a sua lucidez, ele continua a ser um arquivo permanente que acentua como Goa desliza em plano inclinado e se torna uma sombra do seu passado.

 Saio da casa de Percival no bairro das Fontaínhas perfeitamente esmagado; alias, saímos os três, o Zito, a Raquel e eu. Descemos os degraus que nos tinham levado ao primeiro andar e lá em cima Percival como bom anfitrião despede-se, acenando cordialmente. Pede-me para voltar, tem um livro para me oferecer. Claro que voltarei. Na parede do cimo do patamar da escada tem uma roda de madeira também trabalhada. É a última informação que nos dá, trata-se de uma peça que mandou fazer e é uma reprodução das que em pedra fazem parte de templos hindus que são carros.

 Cá fora os foliões hindus bem pintados continuam a  carnavalar o Holi. Por toda a Goa este é um dia especial e feriado, as lojas fecham e, singularmente apenas umas quantas de hindus se mantêm abertas. No resto da Índia também. Nas Fontaínhas, bairro castiço, onde os habitantes são particularmente católicos, de cultura e tradições lusas, estes festejos vão durar todo o dia, parando apenas amanhã que é dia de trabalho. Três moças, alias bem bonitas, perguntam-nos sorridentes se nos deixamos pintar. Faço um gesto evasivo, mas respondo-lhes um não, também sorrindo. Soltam gargalhadas cristalinas e berrantes como os saris que usam – e afastam-se. Goa  também é   isto.