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domingo, 27 de dezembro de 2009

Quatro décadas: da mudança à incerteza - Intervenção na Academia das Ciências de Lisboa

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Por António Barreto

ERA UM PAÍS FECHADO. Um Estado autoritário. E um povo inculto. Era Portugal do início dos anos sessenta. Pequeno, pobre e periférico. País rural, quarenta por cento da população, mais do que qualquer outro na Europa ocidental. Uma alta natalidade estava na origem da população mais jovem do continente. Uma obscena mortalidade infantil (mais de oitenta por mil) e uma esperança de vida reduzida (sessenta anos para os homens e sessenta e cinco para as mulheres) denunciavam o atraso social e económico. Os horizontes eram fechados, a escola medíocre e insuficiente, a saúde pública quase inexistente, poucos os empregos industriais e a liberdade diminuta. A maior parte dos agregados domésticos não tinha acesso aos serviços públicos de água, de electricidade ou de saneamento. As infra-estruturas eram pobres e ineficazes, as deslocações eram difíceis. Os portugueses viajavam pouco dentro do seu próprio país. O número de analfabetos elevava-se a quarenta por cento da população. Legalmente oprimidas, as mulheres tinham pouco empregos (apenas quinze por cento da população activa), eram mantidas à margem do espaço colectivo e não tinham o mesmo estatuto de cidadania que os homens: viviam e morriam, em maioria, fechadas nas suas vidas domésticas. Era assim que viviam os portugueses há cinquenta anos.

À margem da Europa, o país vivia um relativo isolamento. Virado para o Atlântico e para África, onde possuía o último e imenso império colonial, os seus contactos com os países vizinhos eram reduzidos. Para as autoridades políticas, o isolamento era uma virtude. A tradição nacional, que valorizava o catolicismo e a ruralidade, era defendida e cultivada. A memória de um passado glorioso era o substituto de um futuro incerto. O oceano, fonte de memórias antigas, abria o país ao mundo. Mas a fronteira terrestre separava-o, mais do que aproximava, do único e grande vizinho, com o qual as relações não eram, quase nunca tinham sido, próximas, boas e amistosas. O Ultramar era o horizonte. Poderoso na ideologia e na retórica, mas afastado na geografia e na economia. A versão oficial proclamava uma sociedade multirracial, da Europa à Ásia. Mas, na verdade, a sociedade portuguesa era uma das mais homogéneas de todas as europeias. Os seus traços característicos punham em evidência uma grande unidade cultural, religiosa e étnica. Uma só língua dava forma a esta homogeneidade. Nas ruas das cidades, era raro, muito raro, cruzar um africano, um asiático ou qualquer outro estrangeiro. Além de tudo isto, o regime autoritário reforçava a ausência de pluralidade na sociedade portuguesa.

Sem vocação agrícola notável e sem recursos minerais (carvão, ferro, petróleo), a economia exibia as taxas de produtividade mais baixas da Europa. O nível de vida das populações era de uma pobreza certa. A permanente emigração para o Brasil e outros países da América Latina traduzia as dificuldades do desenvolvimento. Só em finais dos anos cinquenta e início dos sessenta é que a emigração para o Ultramar, Angola sobretudo, ganhou algum relevo. Curiosamente, aumentou durante os anos de guerra.

No final desta década de cinquenta, o regime corporativo ou do “Estado Novo” conhecia uma espécie de apogeu. O país tinha sido poupado à guerra e as reservas financeiras eram boas. Apesar da pobreza do povo, o Estado era relativamente rico. O governo acreditou que poderia, a partir de então, sem correr os riscos do capitalismo de livre iniciativa, prever e conduzir o crescimento económico. Apesar da ditadura de vinte anos, Portugal acabara de ser aceite pela comunidade internacional: a OTAN, a ONU e a EFTA receberam a adesão do país. O governo não tinha cedido, após o fim da guerra, aos direitos do homem, à democracia ou às liberdades públicas. Mau grado essas circunstâncias, podia agora sentar-se à mesa internacional, ao lado das democracias ocidentais e dos vencedores da segunda guerra. O facto era tanto mais notável quanto a Espanha não fora aceite na OTAN e não apresentou a sua candidatura à EFTA. É possível que, sem esta complacência ocidental e democrática, o regime não tivesse durado tanto, ainda mais vinte anos. Não o saberemos nunca. Mas é verdade que o clima internacional, a guerra fria e a cumplicidade amistosa de bom número de governos ocidentais contribuíram para a longevidade do regime.

Mas a História tem os seus caprichos. Nos últimos anos de cinquenta e primeiros de sessenta, uma série de acontecimentos vai mudar o panorama nacional. Novas forças começam a preparar-se para que o povo, as instituições e as empresas encetem uma longa e surpreendente jornada. A campanha eleitoral de 1958, durante a qual surgiu a figura do general Humberto Delgado, deu esperança aos opositores e ameaçou o governo. O início do Concílio Vaticano II inquietou os poderes estabelecidos e abriu novas vias aos católicos portugueses. Ou, em qualquer caso, inquietações e esperanças. A famosa “carta do Bispo do Porto” deixou o governo crispado e comoveu muitos católicos. A ponto de o Bispo, no regresso de uma viagem a Roma, ter sido impedido de regressar a Portugal. Os movimentos estudantis, muito activos, revelaram um embrião de classe média e uma nova audácia. O início das guerrilhas em Angola foi a prova maior. A conquista de Goa, pelos exércitos da União Indiana, em 1961, deixou o país e o seu chefe de governo em estado de choque. E nem sequer a violência indiana ou o terrorismo das primeiras acções independentistas foram motivos suficientes para conferir razão e solidez à causa do governo.

Ao mesmo tempo, a energia e a pressão económica da Europa em reconstrução estimularam uma emigração sem precedentes: mais de um milhão e meio de portugueses vão emigrar no decurso dos próximos anos. Já não vão para as Américas: é a Europa, especialmente a França, o novo destino. A integração europeia de Portugal começou então, com os cidadãos, antes do Estado. Ao mesmo tempo, o turismo fez vir ao país milhões de estrangeiros. Em conjunto, estas novas realidades, emigração e turismo, tiveram consequências indeléveis nas mentalidades e nos comportamentos. No mesmo sentido contribuiu, apesar do controlo do Estado, a televisão, criada em 1957. Nessa altura, a escola ainda não assumia uma cobertura completa do país e a escolaridade estava longe de ser universal. Quer isto dizer que a televisão se transformou no principal unificador cultural do país. Antes de os portugueses saberem todos ler e escrever, antes de terem adquirido hábitos de leitura, nomeadamente de jornais, já se tinham adaptado à televisão como meio de informação.

Na economia, preparava-se uma nova era. A adesão à EFTA teve efeitos imediatos: a abertura comercial permitiu um formidável crescimento industrial. Os investimentos estrangeiros apareceram e novas empresas viradas para a exportação instalaram-se por todo o país. Criaram-se novos hábitos. Uma nova organização do trabalho, uma produtividade elevada e salários superiores eram agora possíveis. Em muitas áreas rurais, foi esta a altura da revolução industrial. Tanto para a manufactura, como mesmo para certo tipo de agricultura, abriam-se novas oportunidades. Cerca de 1974, o país conhecia o pleno emprego, para o que contribuíram a industrialização, a guerra colonial e a emigração. Pela primeira vez, havia emprego abundante para as mulheres. Vinte anos mais tarde, elas serão metade da população activa.

Toda a sociedade estava em mudança. Por efeito de várias forças, incluindo a guerra do Ultramar que ocupava, anualmente, bem mais de cem mil soldados. As consequências deste esforço foram devastadoras. Tanto social, como económica e politicamente. A guerra esgotava os recursos e os espíritos. Por causa da guerra, as hipóteses de democracia eram menores. Por causa da guerra, jovens partiam para o estrangeiro. Mas, paradoxalmente, a guerra tinha outros efeitos. Por um lado, provocou a mistura, o “brassage” das populações, até então fechadas nas suas regiões e nas suas comunidades rurais. Por outro, estimulou a democratização dos costumes: a hierarquia militar e a camaradagem reinam na guerra e no regimento onde as divisões sociais se esbatem. A mudança surgia por todo o lado. Só a política parecia resistir. Apesar de se terem desenhado alguns conflitos dentro das esferas do poder, os responsáveis políticos estavam convencidos de que era possível resistir e fazer frente à nova sociedade que nascia sob os seus pés e diante dos seus olhos. Sem as colónias, dizia-se, o regime acabaria e Portugal não sobreviria. A primeira parte da previsão seria talvez verdade, como se verificou. A segunda era evidentemente retórica. Portugal mudaria com certeza. Autista, a elite política preparava o seu túmulo e seria varrida de cena em 1974. Mas a revolução e a contra-revolução que se seguiram e conduziram à fundação do primeiro regime democrático português, foram sobretudo o resultado das mudanças sociais que as precederam.

Aparentemente, a revolução de 1974 teve como causa a recusa dos soldados de prosseguirem uma guerra sem solução à vista. A descolonização que se seguiu foi feita à pressa e desajeitadamente, num processo que não deixa razões para orgulho. Em casa, o movimento político transformou-se rapidamente em revolução. Democrática para uns, socialista para outros. Na verdade, como todas as revoluções, foi ambígua. Depois de um ano de vitórias radicais (com nacionalizações de empresas e sectores produtivos, ocupações de casas e terras, expropriações sem compensação, prisões arbitrárias e controlo estatal da imprensa e da televisão), os moderados levaram a melhor e, como quase sempre depois de acontecimentos deste alcance, ganharam as eleições. Militares e partidos de extrema-esquerda são afastados do governo. Entre 1976 e 1982, as instituições do poder político ficam civis e legítimas. Uma espécie de normalização democrática corre o seu curso. Começaram as reprivatizações. A pluralidade de partidos, da imprensa e de opiniões é restaurada, ou antes, estabelecida.

Apesar do êxito deste processo, Portugal perdeu tempo. Precioso, segundo o que sabemos hoje. Com a guerra que se eternizava, o regime autoritário que se arrastava, uma revolução que perturbou e uma contra-revolução que se improvisou, o país perdeu tempo, energias e recursos, assim como criou conflitos e abriu feridas. Que perturbaram ou atrasaram a evolução futura. Conhecemos hoje, da península Ibérica à Europa central e de Leste, experiências pacíficas de transição rápida, tão surpreendentes quanto a portuguesa, que demonstram como, com outros tipos de mudança radical, se ganhou tempo e energia, em vez de perder.

É possível, no entanto, que, de todo este processo, não tenham sobrado, para além da evidente crispação da vida política que dura até hoje, sequelas irreversíveis. O crescimento económico, o regime democrático inexperiente mas funcional e a integração europeia ajudaram a esta espécie de reconstrução necessária depois das vicissitudes políticas. A ponto de se poder falar, hoje, pela primeira vez em dois séculos, de uma espécie de “consenso constitucional”. Apesar das divergências e dos conflitos, mau grado a crispação, o essencial parece ser aceite pela maioria. Ninguém fica de fora: não há exilados, deportados ou refugiados; não existe o delito de opinião, não há presos políticos nem censura. Monárquicos e republicanos, católicos e ateus, capitalistas e socialistas, judeus e muçulmanos, todos coexistem. “Coisa pequena”, dirão alguns. Talvez. Mas, em Portugal, acontece pela primeira vez.

Até ao fim dos anos 1990, vários ciclos caracterizam a vida colectiva dos portugueses. Aqueles foram percorridos a uma grande velocidade. Em primeiro lugar, o crescimento económico. Segundo, a transição demográfica. Terceiro, a fundação do Estado democrático. Finalmente, a integração europeia. Não obstante as dificuldades e a sucessão de crises que levaram o país à beira de desastres maiores, estas diversas etapas foram completadas com uma certa euforia. Nesse período, o espírito do tempo foi feito de muitos e contraditórios sentimentos. O de libertação e de paz, depois de uma guerra e de uma ditadura. O de abertura a espaços e horizontes ilimitados. O do consumo e do conforto material acrescido. O das benfeitorias de um Estado de protecção universal e igualitário. O do acesso generalizado à escola e à cultura. O da modernidade longamente adiada. O do crescimento das aspirações sem entraves. Os portugueses passaram a sonhar menos com glórias do passado e a pensar mais, com realismo relativo, no presente. Na verdade, o balanço de três décadas vividas a passo estugado é impressionante.

Em trinta ou quarenta anos, a mudança foi vasta e profunda. Um país tradicionalmente patriarcal e “machista” cedeu diante da nova igualdade entre sexos. As mulheres são finalmente integradas na vida pública, no trabalho e na escola. Estão ainda longe de chegar aos cargos mais altos da política e da grande empresa económica e financeira, mas já fazem parte, sendo por vezes maioritárias, da Administração Pública e das Universidades. Ainda não obtiveram a igualdade de salários na empresa privada, mas aquela já vigora na administração. O seu estatuto social e político é talvez equivalente ao das mulheres europeias, mas foi conseguido num curto espaço de tempo. Foi esta, com certeza, uma das principais revoluções silenciosas do Portugal contemporâneo.

Ainda neste período, a população mais jovem da Europa, com uma alta natalidade e uma baixa proporção de idosos, envelheceu rapidamente e regista hoje muito baixas natalidade e fecundidade, fenómeno que, estranhamente, parece não preocupar, nem sequer ocupar as atenções dos responsáveis ou das elites. No decurso desta transição demográfica, graças ao desenvolvimento da saúde pública e dos costumes, a mortalidade infantil recuou para níveis surpreendentes: a sua taxa é hoje uma das mais baixas do mundo. Paralelamente, as famílias reduziram-se e estão limitadas a duas gerações e a menos de três pessoas em média. O número de pessoas vivendo sozinhas cresce. Aumenta rapidamente o número de idosos a viver em instituições especializadas. A permissividade de costumes está na origem da diversidade de famílias: casamentos serôdios, filhos “fora do casamento”, divórcios, segundos e terceiros casamentos e uniões de facto são numerosos. Estas são tendências previsíveis e semelhantes às que se verificam noutros países. O que surpreende é a rapidez da transição, assim como o seu carácter tardio.

Herdeiro aparente de uma só cultura, Portugal era um país homogéneo onde se falava apenas uma língua, se rezava a um só Deus, se obedecia a um patrão, seguia um partido ou pertencia a uma etnia. Este país já quase não existe, está em transformação acelerada. A pluralidade de pessoas e culturas é visível nas ruas e nos espaços colectivos. Mais uma vez, é como alhures na Europa, mas, para os portugueses, é uma novidade absoluta e uma realidade construída de fresca data. Da mesma maneira, um poder opressivo, piramidal, vertical, unitário e fortemente centralizado fragmenta-se e divide-se: hoje existe uma diversidade de centros de poder, nacionais e locais, políticos e económicos, sociais e culturais.

Um fornecedor tradicional de mão-de-obra para as Américas e África e, mais recentemente, para a Europa, transformou-se, desde os anos noventa, num país de acolhimento de centenas de milhares de imigrantes de África, do Brasil e da Europa central e de Leste. Esta é uma viragem absoluta e uma ruptura fundamental com o Portugal tradicional. Depois de séculos de emigração, eis que o país é também acolhimento. Antes dos imigrantes, já o país tinha recebido, num só ano, cerca de 600.000 ditos “retornados”, naquele que foi talvez o maior e mais rápido movimento de população, em tempos de paz, da história da Europa. A relativamente fácil e pacífica integração desta população constitui ainda hoje um feito ímpar e pouco estudado.

O crescimento industrial e de serviços foi, durante vinte a trinta anos, muito significativo e semelhante ao dos “tigres asiáticos”. Entre 1960 e 1990, Portugal registou um crescimento superior a todos os países europeus. Taxas anuais da ordem dos 7% ou 8% eram possíveis. Crescimentos industriais anuais superiores a 15% verificaram-se neste país, onde, aliás, caso único na Europa, a população activa industrial nunca foi maioritária. Com efeito, a população do sector dos serviços passou directamente do terceiro para o primeiro lugar.

Uma sociedade que deixava os mais fracos, os idosos, os pobres e os doentes ao cuidado da sorte, da caridade, do gesto privado e das igrejas conseguiu organizar, em muito pouco tempo, um Estado de protecção, um Estado Providência. Este, embora pobre, é universal e não discrimina. Em 1960, a Segurança Social apoiava cerca de 120.000 pensionistas. Estes são hoje perto de dois milhões e meio, o que não deixa de criar problemas muito sérios, dada a pressão demográfica e financeira exercida sobre o sistema. Com efeito, só 1,7 trabalhadores activos suportam um pensionista, o que é o mais baixo rácio de toda a Europa.

Uma sociedade onde o “caciquismo”, a “cunha”, o favor cúmplice, o nome de família e os “conhecimentos” tinham, ainda recentemente, toda a importância, começa a conhecer um volte face. Não que o mérito tenha já, de um dia para o outro, ganho o predomínio. Mas percebem-se os sinais de começo de uma nova ordem, de novos costumes. A igualdade perante a lei é reconhecida. O mérito e a avaliação técnica independente começam a ser praticados. O reconhecimento do primado do cidadão e de seus direitos foi um passo importante. Cada vez mais, pensa-se que os conflitos possam ser resolvidos em tribunal ou, pelo menos, com recurso ao Direito. Todos os domínios da vida, da família à herança, do comércio ao trabalho, são abrangidos pelo novo entendimento da força da lei e do Direito. Os cidadãos tomam consciência dos seus direitos. A procura de Justiça cresce. Os empresários e os trabalhadores, assim como os proprietários, os inquilinos e os agricultores assinam contratos escritos e formais. Estamos ainda longe de uma sociedade meritocrática, mas os símbolos e as formas começam a ser visíveis.

Uma população pobre, realmente pobre, mal alimentada, frequentemente doente, mal alojada e sem acesso aos serviços públicos básicos, conheceu finalmente trinta anos de melhoramento constante do seu bem-estar. Mais de dois terços das famílias vivem hoje em casas de que são proprietárias. A quase totalidade é servida de água, gás e electricidade, usufruindo de cozinha, de uma qualquer forma de aquecimento e de água quente. Tudo isso está longe, muito longe dos menos de um terço dos agregados familiares que tinham esses benefícios. Entre os anos setenta e oitenta, o primado foi para os grandes equipamentos colectivos, as redes de esgotos, de electricidade, de gás e de água. Depois, com os anos noventa, chegou o tempo dos electrodomésticos: telefone, televisão, frigorífico, automóvel e outros. Gradualmente, a estrutura de despesa e de consumo dos agregados mudava também. A alimentação e a renda de casa representam uma muito menor proporção, enquanto as deslocações, a roupa, a educação e a cultura aumentam a sua parte.

Desde a década de ouro, na economia, dos anos sessenta a setenta, os portugueses viveram vinte a trinta anos de progresso permanente. É verdade que fizeram a experiência de várias crises, na política ou na economia. Mas nada interrompeu, de modo profundo, um melhoramento real do bem-estar. A esperança era mais do que um sentimento: era uma certeza. O presente parecia bom, o futuro ainda melhor. No entanto, por volta dos finais dos anos noventa, a euforia começou a ser posta em causa. A incerteza apareceu. Seguida de perto pela dúvida e a inquietação. O que parecia ter sido adquirido já o não era. O progresso já não era constante e linear. Depois de ter conhecido as delícias do crescimento e do conforto, os portugueses compreenderam que nada é definitivo. A democracia não era, afinal de contas, igual a educação, emprego ou eficiência da Administração Pública. A Europa não era a garantia do bem-estar e da segurança. O país começou a ver as suas taxas de crescimento abrandar e ficar aquém das médias europeias. Não era uma tragédia, mas, sofrendo de uma espécie de obsessão comparativa, com os outros países da Europa, descobriu-se que, desde o início dos anos 2000, o endividamento nacional aumentava muito rapidamente. Gastava-se muito mais do que se tinha e produzia. No conjunto, Estado, empresas, bancos e famílias devem mais de cem por cento do produto nacional. Este estado de coisas fica a dever-se ao crescimento rápido, a bastante demagogia política e ao consumo público e privado quase sem limites. Mas também a um défice comercial permanente. A parte dos recursos naturais e dos bens manufacturados ronda um terço da produção nacional, o que é sinal alarmante, sobretudo num país cujos serviços são pouco competitivos. A insuficiência de recursos tornou-se evidente: além da pobreza natural, faltava inteligência profissional, organização e capital.

A própria vida política tornou-se fonte de inquietação. A aparente estabilidade era, afinal, frágil. Um número excessivo de ministros (mais de vinte e cinco...) nalguns postos chave (Educação, Saúde, Obras Públicas, Finanças...), em trinta anos, mostra uma das razões pelas quais as políticas públicas não foram constantes, a ponto de darem frutos. Sinais de corrupção apareceram com insistência. Em dez anos, dois Primeiros-ministros abandonaram as suas funções e um foi demitido. Por duas vezes, realizaram-se eleições antecipadas. Por duas vezes, o Parlamento foi dissolvido, uma delas contra a vontade da maioria dos deputados. Uma legislatura completa, de quatro anos (de 2005 a 2009), não bastou para criar o sentimento de estabilidade. Até porque foi seguida, há poucos dias, de um Parlamento e de um governo sem maioria.

A explosão das classes médias, em plena expansão da sociedade de consumo, foi acompanhada do crescimento das desigualdades sociais e económicas. Não houve, é certo, aumento dos excluídos, mas a distância entre os mais ricos e os mais pobres é maior. Sabe-se que o progresso económico, assim como o da educação e da formação profissional, podem, numa primeira fase, reforçar as desigualdades. Foi o que aconteceu em Portugal. Todas as classes sociais ganharam e viram aumentar o seu nível de vida, mas as diferenças entre elas são mais nítidas. Há, na tradição, na cultura, nas políticas públicas e nas estruturas sociais, factores que reforçam a desigualdade. Nesse sentido, a sociedade portuguesa é injusta.

O desemprego, que nunca atingiu em Portugal os valores da maior parte dos países europeus, recomeçou a crescer bem antes da grande crise de 2008/2009. As empresas portuguesas têm dificuldade em suportar a concorrência dos países asiáticos, tanto quanto a de países mais produtivos da Europa. A chegada, ao mercado interno europeu, dos países da Europa central e de Leste, deixou a economia portuguesa debaixo de uma pressão para a qual não estava preparada. Apesar dos esforços de vários governos, as finanças públicas não conseguem chegar a um equilíbrio sustentado. A instabilidade financeira ameaça os sistemas sociais públicos, cuja despesa é já superior, proporcionalmente, à da maior parte dos países europeus. Aquando da grande crise de 2008-2009, um elemento perturbador surgiu ainda: o Estado português, tal como tantos outros na Europa, demonstraram crescente incapacidade de prevenção e deficiente capacidade de reacção diante dos problemas modernos e as ameaças contemporâneas.
Depois de um crescimento extraordinário, a educação pública revelou uma qualidade medíocre: o abandono e o insucesso são os mais elevados do mundo ocidental; a formação cultural e técnica dos alunos deixa a desejar, como o demonstram as estatísticas internacionais. Em termos comparativos, as capacidades técnicas da mão-de-obra portuguesa são muito inferiores às dos países parceiros ou concorrentes. A produtividade dos trabalhadores portugueses encontra-se no fundo da escala. E as tentativas de reforma, feitas em sucessão, parecem não melhorar significativamente este estado de coisas, numa altura em que a ideia de aprendizagem, quase lúdica, se sobrepõe à de ensino, que desvaloriza. Num tempo em que a equívoca noção de competência adquire o primado sobre a de saber. Ou numa altura, enfim, em que se tenta reduzir a Universidade a um tecto, retirando-lhe o papel orientador da ciência e da investigação que devia ter.
Por sua vez, o sistema de saúde pública, o Serviço Nacional de Saúde, não mostra resultados em linha com o enorme esforço financeiro de que é responsável. Não parecem faltar médicos, enfermeiros, hospitais ou equipamentos, em paralelo com os nossos vizinhos: mas a organização dos serviços e o poder das corporações profissionais são tais que o tempo de espera médio e o desperdício de recursos, segundo o Tribunal de Contas, são enormes.
O sistema de Justiça, servido proporcionalmente por mais juízes, procuradores e advogados que em outros países europeus, está em crise séria desde há vários anos: os atrasos são excessivos, os custos são elevados e a confiança que os cidadãos depositam nos seus juízes e tribunais, encontra-se, segundo sondagens sustentadas, no mais baixo ponto.

A abertura económica à Europa e ao mundo, provável responsável por alguns dos êxitos mais notáveis das últimas décadas, está também na origem de ameaças de que se não tem tomado suficiente consciência. As empresas, pouco habituadas à mudança e à inovação, largamente dependentes do Estado ou de grupos internacionais, têm dificuldade em colocar as indústrias e os serviços à altura da concorrência internacional. Em certa medida, muitas recorrem ainda a um trunfo do passado: o custo reduzido da força de trabalho. Mas é agora tarde demais: outros, na Europa de Leste e na Ásia, fazem-no melhor.

É verdade que a indústria portuguesa está longe do que era há trinta anos. O têxtil já não é o primeiro sector de exportação e os recursos naturais já quase não pesam na balança. Agora, são as indústrias mecânicas, electrónicas e do automóvel que ocupam os primeiros lugares na produção e na exportação. É verdade. Mas a dependência do exterior e a fragilidade subsequente, nomeadamente em tempos de crise internacional, são sinais de fraqueza do sector no seu conjunto. A isso acrescenta-se o declínio das actividades do mar, da terra e da floresta. A euforia da industrialização tardia e da urbanização dos anos sessenta a oitenta relegou estes sectores para as margens das preocupações políticas e das orientações estratégicas nacionais.

A União Europeia, com as suas políticas comuns desenhadas para outros países e outros climas, estimulou no mesmo sentido. Deu-se uma espécie de troca: a indústria, as estradas, as comunicações e a energia contra o mar, a agricultura e a floresta. Os recursos europeus e nacionais foram canalizados para as primeiras, enquanto nos outros sectores, considerados pertencerem ao passado, o esforço foi sobretudo o de retirar activos. O país importa hoje mais de dois terços da sua alimentação e metade dos produtos do mar que consome. Em poucos anos, a população activa na agricultura e outros sectores primários passou de 40% a menos de 6% do total. Trata-se de uma mudança previsível, em acordo com as tendências das sociedades contemporâneas, mas que decorreu demasiado rapidamente sem deixar uma agricultura produtiva à altura das necessidades. O mundo rural português é hoje povoado de pessoas idosas ou simplesmente abandonado. Muito poucas explorações tiveram êxito na reconversão e na adaptação às exigências europeias e internacionais.

Paralelamente, uma urbanização demasiado rápida conduziu milhões de pessoas às áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Inevitavelmente, nestas condições e na ausência de um Estado com tradição e competência de ordenamento, este processo foi desordenado, mesmo caótico em muitos casos. Os principais problemas sociais contemporâneos encontram-se hoje nestas áreas urbanas. Não mais, como se dizia há três ou quatro décadas, no mundo rural atrasado e pobre, mas no universo urbano descuidado, onde, além do mais, morrem os centros urbanos históricos e se desvitaliza uma parte essencial da identidade nacional.

É nestas aglomerações que o tráfico automóvel se transformou num problema maior. Os portugueses renderam-se ao automóvel, no que foram ajudados por uma política de construção de auto-estradas que mudou o país. As deslocações internas, tradicionalmente difíceis, podem hoje ser rápidas e simples num país “mais pequeno” onde todos estão perto uns dos outros. Mas o tempo perdido, todos os dias, nos movimentos pendulares, mostra que os ganhos em eficiência tiveram um preço elevado.

Na vida pública e política, a corrupção tornou-se entretanto um problema real. Ajudada pela democracia, assim como pela liberdade de imprensa, a informação sobre a corrupção está generalizada, se bem que quase nunca fundamentada e identificada. O dinheiro aparentemente fácil, as tentações de um mercado aberto e a inexistência de poderes de regulação eficazes ajudam. Os hábitos dos grandes grupos económicos que viveram sempre perto do Estado e o peso excessivo de uma Administração minuciosa criaram uma situação pouco confortável, agravada pela eventual colaboração de alguns políticos e eleitos. Pior: parece haver poucos meios de luta contra esta praga. A Justiça funciona mal e não está à altura. Há momentos em que se tem a sensação de que não existe antídoto para a actividade dos predadores do Estado e do bem público.

O crescimento rápido da população estrangeira, mais de 5% do total, é uma das grandes novidades da sociedade portuguesa. Africanos de Cabo Verde, de Angola e da Guiné, Brasileiros e Ucranianos formam os principais grupos de estrangeiros estabelecidos. Esta nova experiência, a coexistência com imigrantes dentro das nossas fronteiras, revelou-se, após duas ou três décadas, geralmente positiva. Isto é, estabeleceram-se relações cordiais, sem atritos ou conflitos excessivos, entre as várias comunidades. As condições sociais de alguns destes grupos, nomeadamente nas concentrações em bairros degradados de carácter étnico, não são as melhores e podem transformar-se em fonte de perturbações. Mas pode dizer-se que, até hoje, ocorreu uma espécie de integração natural. De qualquer modo, esta realidade, paralela ao movimento de emigrantes portugueses para o estrangeiro, obriga a sociedade e as autoridades a reflectir na inescapável natalidade e na dinâmica demográfica. São estes problemas invisíveis, que as populações evitam, mas que estão sempre presentes. Em geral, quando se tornam evidentes, é tarde de mais.

Os portugueses vivem muito melhor do que há trinta anos. A Europa, a globalização, o crescimento económico e a liberdade diminuíram os efeitos dos principais constrangimentos históricos: a pequena dimensão, a pobreza de recursos e a situação periférica. No entanto, apesar de transformados, ainda pesam. Ainda somos periféricos, pobres e de relativa pequena dimensão. E sobretudo incultos, que é uma forma de pobreza. Vivendo numa sociedade aberta, aspiram ao que conhecem, que é quase tudo, os mais altos níveis de consumo, segurança e conforto. Viajando, recebendo turistas e olhando para a televisão, os portugueses formam as suas aspirações, as ideias de bem-estar ao qual sentem ter o direito. Mas, sendo os mais pobres do grupo dos mais ricos, sabem que são, entre todos, os que estão mais afastados da possibilidade de satisfazer as suas expectativas.

Entre os anos sessenta e os noventa, os portugueses revelaram uma surpreendente plasticidade, quer dizer, uma enorme capacidade de adaptação a novas circunstâncias: a guerra e a paz, o autoritarismo e a democracia, a África e a Europa, a sociedade fechada e a aberta, a emigração e a imigração. Fizeram-no por vezes com energia dramática, correndo riscos, mas sempre souberam evitar o pior. Da ditadura, da guerra, da revolução e da contra-revolução sobram talvez recordações crispadas, mas não sequelas irreparáveis. Os sectores mais abertos à sociedade e ao mundo exterior, à comparação e à emulação, souberam ser flexíveis e empenharam-se numa via de renovação e reconversão. São os casos da banca, das telecomunicações, da grande distribuição, da hoteleira, de alguns serviços de turismo e de certas actividades ligadas à ciência e à cultura. Noutras, reina ainda um certo imobilismo e é mais difícil o desenvolvimento, como são exemplos a justiça, a educação e a Administração Pública, ao lado de sectores produtivos como os têxteis, a construção, a metalurgia e o agro-industrial. São em geral sectores fechados à exposição externa, à sociedade e à emulação. São sectores e sistemas organizados sobretudo com vista à satisfação dos interesses dos seus corpos instituídos aos quais os poderes democráticos não souberam impor uma lógica de serviço público ou um ânimo concorrencial.

A democracia, apenas nascida em 1974, ou antes, em 1976, era uma esperança maior. A Europa também, como horizonte capaz de substituir os antigos sonhos atlânticos e africanos. Temos democracia e temos Europa, pelo que se poderia falar de êxito. Mas eram também, com mais ou menos fantasia, o resumo e o símbolo de todas as esperanças e aspirações, do desenvolvimento à justiça, do conforto à educação e à cultura. Nisso, a democracia e a Europa foram também uma ilusão.

A Europa, em especial, mais concretamente a União Europeia, obriga-nos, obriga todos os povos, a uma reflexão essencial e permanente, o que está longe de acontecer. A Europa é talvez o mais forte motor de mudança que se conhece. Mudará tudo, da civilização material à cultura. Até à alma, poder-se-á dizer. Apesar desta enorme importância, o debate público, motivador de consciência, é quase inexistente. Nem em período de eleições, nem em tempos normais. Os Estados, os poderes públicos e os partidos políticos não querem partilhar com os cidadãos as suas reflexões sobre a Europa, sobre a realidade futura do Estado e da nação, nem sequer sobre as dificuldades do nosso país. A Europa não se discute. A Europa não discute. A Europa não quer ser discutida.

Sob o peso de uma identidade forte, os portugueses encontram-se hoje diante da necessidade de se comportar como toda a gente. De considerar que o seu país é como os outros. Os quarenta anos de ditadura não são mais desculpa nem pretexto. Os traços especiais que distinguiam Portugal, a pobreza, o atraso, o analfabetismo e a falta de liberdade, esbateram-se. Ser como os outros pode parecer um programa vil e triste, mas é, em última análise, uma grande ambição. Com uma certeza: apesar de igual aos outros, é o nosso.
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NOTA (CMR): este post é uma extensão do que está afixado no Jacarandá e no Sorumbático, onde eventuais comentários deverão ser afixados.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Migrações e Relações Internacionais

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Por António Barreto
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O TEMA SUGERE IMEDIATAMENTE uma pergunta: quais são os nexos, as causas, os efeitos e as implicações existentes entre as migrações e as relações internacionais? A minha resposta simples é a seguinte: podem ser de toda a espécie, de intensas a inexistentes. As migrações podem, ou não, influenciar as relações internacionais. Estas podem, ou não, ter consequências nas migrações. Uma observação da história revela a existência de várias relações, de causa e efeito, num ou noutro sentido. Relações internacionais, entre dois ou mais países, dentro de uma ou mais regiões, podem conduzir a migrações casuais ou permanentes, como podem não ter especial influência nesses movimentos de população. Países ou grupo de países com relações intensas, nomeadamente económicas, ou até políticas, podem ser também o ponto de partida ou de chegada de fluxos migratórios volumosos, como podem desconhecer esse movimento de população. Inversamente, migrações humanas entre vários países e diversas regiões podem forjar um certo tipo de relações internacionais, de cooperação, como podem estar na origem de outros tipos de relações internacionais, de conflito. Como também podem ter reduzida influência no modo como se constroem e praticam as relações entre Estados. Em poucas palavras, posso concluir que não existe regra ou lei que estabeleça efeitos ou características permanentes e necessárias entre as migrações e as relações internacionais. Esta, a resposta simples. Como veremos mais adiante, a resposta pode ser bem mais complexa.
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Todavia, antes de avançar, convém, em poucas palavras, definir os termos em causa, ou pelo menos definir o entendimento que deles tenho, para os efeitos desta exposição. Por relações internacionais entendo o modo como se organizam as relações entre Estados, ou entre grupos de Estados, sejam elas próximas ou distantes, de cooperação ou conflito. Por migração, quero referir-me a todos os movimentos de população entre dois ou mais países, com carácter de longa duração, permanente ou definitivo, independentemente dos motivos ou das circunstâncias que lhes estão na origem. Excluo as viagens de negócios, o turismo, o recreio e as estadias de curta duração com objectivos limitados e específicos, como o do estudo. São definições simples, mas úteis para o propósito. Tenhamos, no entanto, consciência de que estas “viagens”, que não incluo na definição de “migrações”, representam hoje a quantidade colossal de cerca de 500 milhões de pessoas que anualmente se deslocam de um país para outro. Vista do espaço, a Terra é um planeta habitado por uma população em permanente movimento!
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Vale a pena acrescentar algo à definição do termo de migração. Nos tempos modernos, falar de migrações significa quase sempre falar de migrações económicas. Isto é, fluxos de pessoas que abandonam um país para, de modo durável ou definitivo, se instalarem noutro país, a fim de aí trabalharem, residirem e viverem. Estas são, sem dúvida, as migrações mais conhecidas e as que atingem volumes mais relevantes. Constituem aliás um movimento de população que se transformou em traço estrutural da maior parte dos países. As últimas décadas criaram uma situação nova: a da possibilidade de emigrar de quase todos os países para uma grande variedade de outros. É certo que já houve grandes migrações no passado. Sem ir até aos tempos bíblicos, nem aos da colonização ou da escravatura, basta referir o século XIX, durante o qual milhões de europeus se deslocaram para os chamados novos continentes. Mas, enquanto na maior parte do século XX, muitos países se “fecharam”, no tempo actual, com a globalização, com os novos arranjos internacionais (como a União Europeia, por exemplo), com o turismo e com novas políticas de controlo de fronteiras, começámos a viver um ciclo de relativa abertura.
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A maior parte dos países do mundo não é estranha às migrações. Ou porque recebem trabalhadores estrangeiros, ou porque deles saem pessoas para trabalhar noutros horizontes. A maioria dos países vive com a migração como um facto natural e permanente. Não era assim há cinquenta anos. Ou, pelo menos, há cinquenta anos, o fenómeno tinha pouco significado. Isto, com excepção de alguns países ou Estados modernos, como os Estados Unidos da América, o Canadá, a Austrália, a Venezuela e o Brasil que se fizeram, desde os séculos XVIII e XIX, a partir dos migrantes que receberam (o que não exclui o facto de todos esses países terem antes populações autóctones). Para esses chamados novos países, ou novos mundos, a imigração é um factor genético da sua constituição.
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Mas as migrações económicas, tal como as conhecemos hoje, não incluem toda a realidade das migrações. Outros fenómenos estiveram na origem de grandes movimentos de população. A chamada descoberta, a colonização, a conquista, a reconquista, a deportação e a fuga traduzem-se em situações ou estão na origem de factos que podem ser equiparados às migrações. Repare-se, por exemplo, como os grandes impérios, tanto os ultramarinos como os continentais, se fizeram sempre graças também a movimentos de populações. O império romano, o otomano, o português, o germânico, o britânico e o russo organizaram-se a partir de grandes migrações ou exigiram grandes migrações para se estabelecerem. Conforme os casos, as migrações ficaram ligadas a guerras ou conquistas políticas, a administração pacífica ou a deslocações violentas de pessoas, a decisões voluntárias ou a movimentos compulsivos.
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Neste momento da minha exposição, sinto quase a necessidade de fazer uma espécie de declaração de interesses: tenho simpatia pelas migrações. Independentemente das suas circunstâncias (que podem ser dramáticas), das suas consequências (que podem ser trágicas), dos problemas que provocam (que são numerosos e complexos), considero que as migrações dão um valioso contributo para o desenvolvimento da humanidade e dos povos. Sei que das migrações podem resultar violência e preconceito, mas creio que são um insubstituível factor de aproximação dos povos. Sei que as migrações podem resultar de guerras e opressões, de genocídios e fomes, mas tenho a certeza de que já salvaram as vidas de milhões de pessoas. Sei que as migrações modernas resultam, as mais das vezes, de situações de carência e privação, mas também são o modo como as pessoas lutam contra esses mesmos fenómenos.
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Esta minha preferência não é apenas uma crença. Nem só uma opinião de carácter político ou moral. Sabe-se, cada vez mais e melhor, que as migrações trazem consigo crescimento económico e desenvolvimento; ajudam à renovação demográfica e à mistura de populações; e promovem a aproximação de culturas e a convivência entre diferentes. Na verdade, as migrações não são apenas pessoas em movimento. Com elas, viajam as ideias, os produtos, as culturas e as crenças.
As mais actualizadas investigações arqueológicas, históricas, antropológicas e linguísticas vão revelando que o movimento e a mistura de populações, por vias pacíficas ou não, estão na origem de enormes progressos da humanidade. A agricultura, a indústria e o comércio desenvolveram-se mais e mais rapidamente naquelas áreas onde era fácil ou foi tornada fácil a movimentação de pessoas e a divulgação de técnicas. E não foram apenas os progressos económicos e materiais: também as culturas, a escrita, as ciências, a organização das sociedades, a administração pública, a saúde e a educação desenvolveram-se mais e melhor nos continentes propícios ao movimento e às migrações. São também cada vez em maior número os estudos de economistas e historiadores económicos que tendem a sublinhar, para o tempo contemporâneo, as grandes vantagens puramente económicas que resultam da imigração de trabalhadores estrangeiros.
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Como em tudo na vida, não há só a face brilhante das migrações. Há também o lado negro, o do sofrimento. Quando as migrações estão ligadas a actos de guerra, de opressão ou de conquista, acabam por acrescentar drama e tragédia ao que já era dor e conflito. Ou quando as migrações, por via das questões políticas, religiosas e sociais, acabam por desencadear perturbações maiores nas sociedades, também aí assistimos a esse reverso da medalha. Será necessário recordar exemplos? Só entre os mais recentes, pensemos na Palestina, no Uganda, na Libéria, no Sudão, nos restos da União Soviética, na Somália, no Zaire, em Angola... Mas não se pense que estas situações mais dramáticas pertencem a outros continentes. A Europa está directamente envolvida nelas. Ou porque também conheceu há bem pouco tempo movimentos desesperados de pessoas à procura de abrigo, paz e trabalho, como quando assistimos ao desmoronamento da federação jugoslava e vimos milhares de pessoas, em barcos irreais, à procura de bom porto. Ou porque uma parte importante dos que fogem, como os africanos da costa ocidental, dirigem-se para o Mediterrâneo e para os países europeus, onde aliás nem sempre chegam e donde, tantas vezes, são recambiados.
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É a altura de falar um pouco de nós. Portugal tem uma velha história de migração. Deixo de lado os tempos idos das migrações que fizeram o povo e a nação, ou das que levaram os portugueses aos outros continentes. Bastam-nos os séculos XIX e XX. Só o último século seria suficiente para demonstrar que Portugal conheceu quase todas as experiências possíveis de migração económica e social. Conhecemos bem a emigração para as colónias africanas e latino-americana e para a ex-colónia brasileira. Também vivemos a emigração para os chamados países novos de povoamento ou estabelecimento europeu, como os Estados Unidos, o Canadá, a Venezuela e a África do Sul. Foram estes os padrões migratórios até aos anos sessenta do século XX. Eram, em certo sentido, um factor estrutural da demografia portuguesa. A emigração era o recurso natural de muitas populações a fim resolver os seus problemas de carência económica. Desempenhou o papel de válvula de segurança, de fonte de rendimento para muitas famílias e de equilíbrio relativo nas contas externas. A emigração desses tempos ficou inscrita na história do país, na literatura e nas representações populares. A emigração dessa altura deixou, pelas segundas e terceiras gerações, uma diáspora portuguesa espalhada por vários continentes e que se avalia hoje a vários milhões de descendentes.
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A partir dos anos sessenta, uma mudança radical fez com que os fluxos migratórios quase abandonassem o Brasil e se virassem, maioritariamente, para a Europa. Esta precisava de trabalhadores, Portugal tinha-os em quantidade, sofrendo, ao mesmo tempo, de uma situação de atraso económico e de incipiente industrialização. O período que vai de 1960 a 1975 é o período de maior emigração da história portuguesa. Talvez um milhão e meio de trabalhadores foram viver alhures, nomeadamente em França. As consequências, para Portugal, foram notáveis. Atingiu-se o pleno emprego. Aumentaram os salários dos que aqui ficaram. As mulheres passaram a integrar a população activa com emprego. As famílias rurais ganharam mais uma fonte de rendimento. Muitos puderam finalmente construir a sua casa e aceder a um módico de conforto. As contas públicas alcançaram um equilíbrio de pagamentos bastante para compensar os défices comerciais. A população, directa ou indirectamente, conheceu outros mundos e preparou-se para uma abertura mental e material sem precedentes.
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Ao mesmo tempo, talvez pela primeira vez, a população decresceu em termos absolutos ao longo de vários anos, sem que tal se deva a guerras ou epidemias. Por si só, a emigração bastaria para mudar grande parte da sociedade portuguesa. Continuaram portugueses a partir para a América do Norte (sobretudo madeirenses e açorianos) e para África. Mas a segunda metade do século XX é sem dúvida o tempo da emigração europeia. O que traduz também a reorganização da economia e da política, tanto nacionais como internacionais. Esta emigração acompanhou as novas tendências das relações internacionais. Em certo sentido, precedeu essas novas tendências. Muito antes da integração europeia, da adesão formal de Portugal à Comunidade Europeia, já a população tinha procedido a essa integração. A integração europeia de Portugal começou por ser humana e social, só depois foi política e económica.
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Depois desse ciclo, Portugal regista novo facto inédito: o regresso, para uns, a chegada, para outros, de 500.000 a 600.000 portugueses de África. Foi acontecimento único na história recente da Europa. Em menos de dois anos, a população aumentou 6 a 7 por cento. O que poderia ter sido fonte de perturbações, de problemas e de conflitos muito sérios, acabou por se processar de modo geralmente pacífico (o que não quer dizer sem esforço, sem drama e sem dificuldades) e se transformar numa colossal renovação da população. Também neste caso, as relações internacionais marcaram e influenciaram as migrações.
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Logo a seguir, novos episódios inéditos na história do país: a chegada de emigrantes estrangeiros em grandes quantidades. A ponto de a demografia portuguesa ter mudado, agora com qualquer coisa como 6 ou 7 por cento de estrangeiros residentes. Primeiro, habitantes das mais recentes ex-colónias africanas, com relevo para Cabo Verde, Guiné e, menos, Angola. Depois, novidade também, a chegada de brasileiros, que aliás constituem hoje a principal comunidade de estrangeiros a residir em Portugal. A seguir, um surto de novos imigrantes dos países europeus, nomeadamente espanhóis, mas também ingleses e franceses. As actividades económicas, as ligações empresariais e a migração de terceira idade são responsáveis por esta situação. Em todos estes casos, estamos perante fluxos migratórios estreitamente relacionados com a história e a tradição, ou com a nova configuração internacional de Portugal, como país pertencendo à União Europeia.
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Finalmente, de modo inesperado, em menos de uma década, mais de uma centena de milhares de oriundos da Europa de Leste, especialmente ucranianos, mas também moldavos, romenos e russos. Nunca, no princípio dos anos noventa, os melhores analistas, sociólogos, geógrafos ou demógrafos tinham sequer sonhado com essa eventualidade. De países longínquos e, para nós, estranhos, com os quais Portugal nunca tinha tido qualquer relação densa ou intensa, chegavam dezenas de milhares de trabalhadores que rapidamente se espalharam por todo o país. A contrariar os fenómenos anteriores, eis um caso de migrações que parecem, à primeira vista, independentes das relações internacionais. Evidentemente, se olharmos bem e quisermos mostrar como “isto anda tudo ligado”, será possível encontrar na pertença de Portugal à União Europeia e ao Espaço Schengen, assim como num comportamento deliberado da Alemanha, nossa parceira na União, as razões que explicam o caminho tomado pelos ucranianos, russos e moldavos. Mas isso já será um esforço intelectual excessivo. Esta chegada de migrantes a Portugal não tem, efectiva e imediatamente, relação com a história ou com a actividade internacional de Portugal. Poderá, eventualmente, assistir-se ao inverso: relações entre dois Estados que se estabelecem e desenvolvem com base em movimentos populacionais prévios. De qualquer maneira, não esqueçamos que estamos, no caso dos ucranianos, perante a segunda maior comunidade de estrangeiros, depois da brasileira e antes da cabo-verdiana. Pouco sabemos ainda sobre os seus projectos de vida. Querem ficar definitivamente entre nós? Fazem casa e educam os seus filhos em Portugal? Procuram, um dia, a naturalização? Ou, pelo contrário, consideram este apenas como um episódio de vida, uma migração temporária, e alimentam o plano de poupar para regressar mais tarde ao seu país, tal como, a propósito, tantos portugueses fizeram em França? É o que saberemos melhor dentro de uma ou duas décadas.
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Neste capítulo de imigração de estrangeiros, há ainda a mencionar, última em data e sem relações com a presença de Portugal em Macau, a chegada de alguns milhares de chineses. Numa década, sobretudo através do comércio, começou a criar-se uma já significativa comunidade chinesa, outro facto inédito na nossa sociedade.
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Mas esta rica história, na qual Portugal experimentou quase todos os tipos de migrações, não acaba aqui. Depois de, em meados da década de noventa, Portugal se ter transformado num país de imigração predominante, isto é, que recebia mais estrangeiros do que portugueses partiam, eis que, no início do século XXI, a emigração de portugueses para o estrangeiro, que nunca cessou completamente, parece retomar. Nos últimos anos, o número de emigrantes portugueses atingiu novamente valores elevados, com médias na ordem dos 30.000 por ano, sendo no entanto verdade que talvez haja mais emigrantes temporários ou sazonais do que permanentes. O destino, além da tradicional América do Norte, é ainda preferencialmente europeu, mas surgiram já novas alterações. Parece não ser a França o primeiro destino, nem a Alemanha, mas sim a Espanha, a Inglaterra e a Suíça. Os casos mais curiosos podem ser o da Espanha, outro facto novo na história, e o da Inglaterra, cuja comunidade portuguesa cresceu a um ritmo muito acelerado para atingir valores estimados próximos dos 400.000. Esta nova emigração, ou esta nova vaga de uma velha emigração para a Europa, não surge por causa da pertença de Portugal à União. Nem neste caso, nem no da Espanha ou da Suíça, tal como também não fora o da França dos anos sessenta. As razões fundamentais são, como no passado, as dificuldades económicas portuguesas, a procura de mão-de-obra naqueles países e a notável diferença de salários e oportunidades. É certo que a pertença à União ajuda (o que não é o caso da Suíça). Mas não foi esse facto que desencadeou o movimento migratório. Apenas o permitiu, dado que as leis e as directivas europeias facilitam a deslocação e o estabelecimento.
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E gostaria ainda de referir que, nestas novas migrações, um outro caso merece atenção: o da migração pendular, diária ou semanal, de trabalhadores portugueses para Espanha. São já milhares os que, das regiões fronteiriças, se dirigem regularmente para o seu emprego na Galiza ou na Estremadura. É incerto o futuro deste movimento de trabalhadores. Mas, tendo em conta a dinâmica económica dos dois países, é de prever que aumente e se desenvolva.
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Este é o resumo breve da história das migrações em Portugal. Teve efeitos felizes, como o da melhoria dos rendimentos e do bem-estar. Momentos infelizes, como o da separação das famílias. E teve episódios dolorosos, como o da viagem “a salto” ou o dos bairros da lata da região parisiense. Teve também situações insuportáveis, como as do trabalho clandestino e da multiplicação de ilegais em Portugal. Mas o balanço geral é o de um formidável contributo para a mudança social e para um relativo progresso. Em pouco mais de quarenta anos, cerca de dois milhões de portugueses saíram para o estrangeiro, quase um milhão e meio de pessoas vieram viver para cá. Temos de convir que foi muito. Em pouco tempo. Mais uma vez, esses fenómenos bastavam, por si próprios, para ter mudado a sociedade.
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Ao contrário do que se passava até aos anos sessenta, hoje, em Portugal, nas ruas das cidades e vilas, até nos campos, ouvem-se falar todas as línguas. Ucranianos pisam uvas nos lagares, russos arrancam cortiça no montado, cabo-verdianos trabalham na construção civil, moldavos servem em restaurantes, brasileiros atendem nos comércios e espanhóis tratam nos hospitais. Vêem-se pessoas com todas as cores de pele e vestidas de todos os feitos. Reza-se a todos os deuses. Comem-se e bebem-se todos os produtos de todo o mundo. Vêem-se filmes ou televisão e lêem-se jornais nas mais inesperadas línguas. Se acrescentarmos a isso as liberdades políticas e culturais, podemos concluir que a sociedade portuguesa é hoje aberta e plural. Para o que as migrações, tanto as partidas como as chegadas, foram determinantes. São causa e consequência do pluralismo. São causa e consequência da liberdade. É esta história que permite hoje esperar que os portugueses não tenham a memória curta e que defendam e pratiquem, para os estrangeiros que vivem connosco, políticas iguais àquelas que sempre quisemos que fossem as dos outros países para com os nossos concidadãos emigrados. Nem mais, nem menos.
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Deixemos Portugal e voltemos à Europa e ao mundo. As migrações, as suas causas e as suas consequências, constituem hoje um dos mais sérios e complexos problemas de todas as sociedades. Muito mais do que no passado, as relações internacionais estão condicionadas, em parte, pelas migrações, sejam as realizadas, sejam as previsíveis. A organização da União Europeia, por exemplo, é particularmente sensível a este ponto, como se verificou com a adesão de novos membros (Bulgária e Roménia), com a candidatura de outros (Turquia) e com as relações com terceiros (África do Norte). As relações dos Estados Unidos com os países latino-americanos estão igualmente marcadas pelo problema das migrações.
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Há, como se sabe, muita discussão sobre as políticas possíveis. Mas também há muita especulação, geralmente alarmista. Ainda há bem poucos anos se receavam, por toda a Europa, as enxurradas de imigrantes com origem na Europa central e de Leste, vindos dos novos membros da União ou dos países que se afastaram da antiga União Soviética ou da Comunidade de Estados Independentes. Eram frequentes as certezas sobre as consequências nefastas que se verificariam. Mas ninguém previa, por exemplo, que só a Grã-Bretanha seria capaz de, em poucos anos, absorver meio milhão de Europeus de Leste; que Portugal receberia cerca de 100.000 cidadãos das mesmas origens; e que valores de idêntica ordem proporcional se verificariam em Espanha, na Itália e em França.
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Apesar das histórias de sucesso, a opinião pública continua a pensar que as migrações trazem problemas. Por um lado, é verdade. Por outro, tal sentimento é exagerado. Perante qualquer notícia menos agradável ou diante de uma tendência económica negativa, como por exemplo o desemprego, logo se esquecem as inegáveis vantagens da imigração de estrangeiros, para rapidamente se lhes atribuírem culpas e responsabilidades. Neste quadro, o preconceito cresce a uma velocidade impressionante. Reparemos como certos povos estão indelevelmente ligados a preconceitos inadmissíveis. Dispenso-me de referir os nomes próprios, mas há povos que foram quase equiparados a um certo tipo de malfeitores. De uns, logo se pensa que são terroristas. Outros são evidentemente traficantes de droga. De uma nacionalidade se tem a certeza que estão todos entregues à prostituição e ao proxenetismo. Uns são evidentemente criminosos, outros contrabandistas; uns são naturalmente violentos e especialistas no crime organizado, enquanto outros dedicam-se todos ao comércio ilegal. Pensem em fazer, em voz baixa, estas equiparações e verão que o preconceito é bem real.
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Além disso, mais fundo e mais persistente, há o racismo. O racismo está frequentemente associado às migrações. O que agrava aquela que é já uma complexa questão social. Há certos fenómenos que, quase inevitavelmente, acompanham as migrações em massa. Como por exemplo o trabalho ilegal, as redes de tráfico e colocação de mão-de-obra, o desenraizamento, a marginalidade ou as condições de habitação segregada. Se a todos estes factos, perturbantes e de difícil resolução, acrescentarmos as manifestações de racismo, como é infelizmente frequente, então temos diante de nós situações realmente explosivas.
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Não creio exagerar. O racismo é um traço permanente da civilização ocidental. Talvez o seja também de outras, é-o seguramente. Mas é a nossa civilização que me interessa aqui. Não esqueço que também há no Ocidente o seu contrário, a tolerância e a miscigenação. Como não esqueço que muita gente, na Europa, não é racista; nem que a luta contra o racismo e pela igualdade tem tido, neste continente, pontos altos no pensamento, na acção e na lei. Mas não vale a pena esconder aquele que é também um facto relevante, quase uma tradição histórica: há séculos que o racismo é um traço permanente nas sociedades e nos hábitos ocidentais e europeus. E nem é preciso recuar até aos tempos da escravatura e das primeiras colonizações: o século XX é farto em exemplos de acções, hábitos, leis e comportamentos racistas, tanto neste como noutros continentes.
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Vivemos hoje e viveremos no futuro tempos de globalização. De abertura das sociedades. De movimento e deslocação dos povos. De liberdade de circulação e de derrube de alfândegas. Mas também, paradoxalmente, de criação de novas fronteiras. O estabelecimento de disciplinas severas para impedir ou controlar os movimentos de população está, em muitos países, na ordem do dia. A mistura de populações acelera-se em todo o mundo, seja por mestiçagem, seja por habitação e vizinhança. Mas, ao mesmo tempo, surgem novos conflitos e novas manifestações de segregação. Creio ser difícil admitir a total liberdade de circulação: nenhum país, nenhum Estado a admite. Mas esse não é motivo suficiente para reforçar os impedimentos, as proibições e as separações. Até porque tais atitudes e políticas não evitam hoje, como se sabe, a clandestinidade e o trabalho ilegal, nos quais tanto colaboram os estrangeiros como os nacionais de qualquer país. Não é por eles, pelos estrangeiros, que devemos ser mais racionais nas políticas. É por nós, por todos nós, dado que, para além da circulação, do trabalho e da sobrevivência, estão em causa direitos humanos, a participação na vida pública e a integração de todos na vida colectiva.
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A Europa tem receio das migrações. Tanto os Estados europeus como as suas populações. Tempos houve, há não muitas décadas, em que a migração era considerada necessária, desejada ou, pelo menos, tolerada sem ressentimentos. Hoje, parece que estamos a viver tempos diferentes. Ao mesmo tempo que as fronteiras se abriram, que as alfândegas quase desapareceram, que o turismo, os negócios ou simplesmente a liberdade de circulação florescem, uma espécie de sentimento de receio começou a desenvolver-se. Uma das mais complexas questões que ocupam actualmente as instituições da União, assim como os governos dos Estados membros, é a da imigração, em todas as suas vertentes. A Europa tem receio dos europeus de Leste, dos turcos, dos árabes e dos africanos...
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Do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos e o Canadá têm receio das migrações. Estes países, feitos pela emigração, receiam hoje os imigrantes do mundo inteiro, especialmente da América Latina. Está em estudo e em curso de construção uma barreira detectora de imigrantes! Existe a convicção de que é possível controlar a emigração e de que razoável que um país só deixe entrar dentro das suas fronteiras as pessoas de que necessita para o seu mercado de trabalho!
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Em África, é o contrário. A emigração parece ser o desejo, o horizonte e a ambição de muitos povos, a ponto de se estabelecerem vias de transporte ilegais, arriscadas e perigosas, onde todos os meses morrem dezenas ou centenas de candidatos à emigração. Hoje em África, mais do que em qualquer outro continente, as migrações estão ligadas a situações de carência absoluta, a conflitos e guerras de enorme crueldade e a movimentos de deslocação compulsiva e violenta de centenas de milhares ou milhões de pessoas.
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Finalmente, há realidades novas, ou com novos contornos, que obrigam a uma firme atenção. Nos países de acolhimento, criam-se fenómenos de não integração das segundas e terceiras gerações que cada vez mais perturbam a paz social. Muitos dos que recebem estrangeiros pensam que compete apenas aos outros adaptarem-se aos seus costumes. Mas também há muitos estrangeiros que não estão disponíveis para fazer o esforço de adaptação. Daqui resultam conflitos e incompreensões que têm envenenado as relações entre etnias. E também existem Estados que, para as suas políticas internas e externas, tentam utilizar as suas comunidades da diáspora.
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Termino com uma profissão de fé nas migrações. O que não impede que tenha consciência da dimensão dos problemas que lhes estão associados. Há enormes pressões, seja para aumentar as migrações, seja para as conter e limitar. Associados às migrações, há fenómenos de extrema complexidade, nem sempre fáceis de resolver. Mais do que no passado, com a globalização, as migrações entram directamente no domínio das relações internacionais. Por isso, não são só a humanidade dos nossos comportamentos e a tolerância das nossas leis que estão em causa. Estão também a paz e o desenvolvimento.

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Sociedade de Geografia de Lisboa
Lisboa, Janeiro de 2006
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NOTA: Este post é uma extensão do que está afixado no Jacarandá, onde eventuais comentários deverão ser afixados

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Passatempo-conjunto «Jacarandá» / «Sorumbático»

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Explicação (CMR): Por associação de ideias, a última parte do Retrato da Semana de 15 Fev 09 levou-me a sugerir ao seu autor a atribuição de um prémio (que será um exemplar deste livro) ao melhor comentário que venha a ser feito até às 20h do próximo dia 20, sexta-feira.
Embora a crónica também seja afixada no Sorumbático, os comentários a considerar serão os que forem deixados no Jacarandá.
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Actualização (21 Fev 09 / 10h40m): ouvidas duas pessoas que se ofereceram para as funções de júri, o resultado foi:
A. Viriato .. 2 pontos; Héliocoptero e Mg .. 1 ponto cada um.
O primeiro receberá o livro anunciado; os outros dois deverão ir [aqui] e indicar 2 ou 3 títulos que lhes interessem. Os três têm 48h para escreverem para sorumbatico@iol.pt indicando morada. Obrigado a todos/as!

domingo, 26 de outubro de 2008

Justiça e sociedade em Portugal, 2006 - Algumas reflexões

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Por António Barreto
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DIZ-SE QUE OS “POVOS TÊM OS GOVERNOS QUE MERECEM”. Não falta quem pense que os governantes são, nas qualidades e nos defeitos, iguais aos governados. Houve um presidente da Televisão portuguesa que, perante críticas à qualidade das emissões, assegurou a opinião pública que a televisão era como o povo, nem melhor, nem pior. É frequente referir-se a condição dos dirigentes políticos como sendo igual à dos cidadãos. Já ouvi, nestes últimos anos, pessoas qualificadas garantir que os magistrados não são mais do que homens e mulheres como os outros. E já me foi dito, a mim e a milhares de telespectadores, que “os portugueses têm a justiça que merecem”.

Eis afirmações, próximas daquilo que se chama o “senso comum”, que merecem breve análise e comentário. Não concordo com nenhuma delas. A ideia de que os dirigentes são pessoas iguais às outras, que têm os mesmos limites e as mesmas fraquezas, assim como os mesmos talentos e qualidades, pode ser interessante, do ponto de vista eleitoral ou demagógico. Quem quer seduzir, procura ser igual, para ser amado. Ou, pelo menos, afirma ser igual, mesmo quando assim não pensa. Mostra humildade, mesmo que não seja sincera, ao mesmo tempo que parece promover ou louvar o seu interlocutor. Na verdade, quem assim se comporta está geralmente a reconhecer as suas fragilidades e a sua impotência. Pior ainda: a desculpar-se, com a sociedade, pelos seus erros. A culpar os níveis gerais de cultura, instrução, eficiência, consciência e civismo pelos seus próprios limites. A imputar aos “outros”, ao “sistema” ou ao “país” as responsabilidades pela sua resignação, pela sua falta de energia ou pelo seu conformismo.

Estas ideias decorrem de uma espécie de realismo determinista. Ou antes, reclamam-se elas próprias desse realismo que consiste em estabelecer que os indivíduos e as suas capacidades são produtos das sociedades em que vivem. Os seus defensores querem fazer-nos admitir que os sistemas sociais, as organizações colectivas e os indivíduos são o que são as sociedades. Que seria improvável que, numa sociedade atrasada e inculta, aparecessem dirigentes esclarecidos. Que, de igual modo, numa sociedade pobre e eventualmente mal organizada, não é de esperar que os sistemas de educação, de justiça ou de saúde, tenham desempenho superior, em qualidade, em prontidão e em humanidade, ao da sociedade em geral.

Este pensamento, se assim se pode chamar, é a negação do papel de dirigente, de quadro superior ou de autoridade. Com efeito, o que se pede a um dirigente é justamente que seja capaz de pensar, saber e fazer melhor do que outros, do que muitos outros. Pede-se a um dirigente que conheça os problemas, que seja capaz de encontrar as soluções, que preveja a evolução das tendências presentes e que prepare o futuro. Pede-se-lhe que, na sua acção e no seu comportamento, ajude a elevar os outros. Pede-se-lhe que seja melhor do que os outros. Pede-se-lhe que se comporte como um dirigente, como membro de uma elite, como alguém em quem podemos confiar. Não se lhe reconhece um valor ontológico especial, nem se lhe atribuem direitos diferentes dos seus concidadãos, mas pede-se-lhe que dê o exemplo e que nos ajude a sermos melhores.

Esta noção de dirigente, ou de elite, tem, evidentemente, os seus riscos. Se insistirmos na ideia, se exageramos na atribuição de qualidades e funções aos membros de uma elite, depressa chegaremos à crença de que existem ou podem existir seres iluminados e vanguardas omniscientes cujo papel consiste em dirigir os seus concidadãos. Os portugueses tiveram aliás, no século vinte, as experiências das vanguardas e a do iluminado. Esses percalços, se assim se podem designar, não bastam para arredar a ideia que defendo do dirigente. Na verdade, com as liberdades de pensamento, opinião, expressão e associação; com a realização de processos democráticos regulares e previsíveis; e com a participação de uma imprensa livre e independente, as tentativas de erigir vanguardas ou de entronizar iluminados têm poucas possibilidades de se realizar. As experiências portuguesas que vingaram, por pouco ou muito tempo, recorreram ou tentaram recorrer ao despotismo e à força, não à legitimidade e à legalidade. Essas experiências nunca foram legitimadas pela opinião livre ou foram até por ela rejeitadas.

Vêm estas breves reflexões a propósito do tema que pretendo abordar aqui. Em poucas palavras, gostaria de defender a ideia de que os portugueses não têm a justiça que merecem. Que os magistrados devem procurar ser melhores do que nós, os cidadãos. Que os responsáveis pelo sistema judicial devem fazer todos os esforços para funcionar melhor e de modo mais competente do que a sociedade em geral. Que a justiça deve ser pronta, em contraste com a morosidade e a falta de pontualidade dos portugueses em geral. Que os magistrados devem procurar sempre ser um exemplo de ponderação e independência. Que os tribunais devem ser, nesta sociedade tão frequentemente agressiva, locais de humanidade. Que os magistrados, pela sua excepcional posição na vida colectiva, devem ter sempre presentes que, ao mesmo tempo que são responsáveis e independentes, têm de ser observados e têm prestar contas. Que o conjunto dos chamados “parceiros” ou “operadores” do sistema judicial deveriam ter mais claramente a noção de que a justiça é o mais nobre bem da vida colectiva e que, por esse motivo, deveriam despender mais esforços para o bem comum e o interesse geral e menos para a defesa dos seus corpos profissionais e sociais. Que os políticos deveriam ter mais responsabilidades e mais intervenção no cuidado que merece o sistema de justiça, mas que deveriam também ter menos apetites relativamente ao controlo ou poder a exercer sobre os magistrados, os advogados, as polícias e os oficias de justiça. Que as autoridades e os partidos políticos deveriam perceber que, com uma justiça deficiente como a nossa, a liberdade e a democracia, se encontram limitadas; o mercado livre fica amputado; e os direitos e deveres dos cidadãos cerceados. Em resumo: gostaria de defender a ideia de que a justiça tem de ser em Portugal melhor do que a sociedade. Tem de ser um exemplo. E tem o dever de nos ajudar a melhorar a nossa vida colectiva. E a sermos melhores.

Não vejam nestas palavras apelos ingénuos à virtude e à bondade. Nem à solidariedade. Não creio que essas qualidades dependam da justiça. Desta, pelo seu funcionamento pronto e escrupuloso, depende o respeito de uns pelos outros; depende a salvaguarda dos direitos e dos deveres; depende a responsabilidade de cada um; depende, numa palavra, a decência da nossa vida em comum. Que os homens e as mulheres se respeitem por virtude ou por receio da justiça, é-me indiferente. O que quero é que se respeitem. E isso, só o direito e a justiça podem assegurar.

Tal como só o direito e a justiça podem obstar a que o poder abuse e a que os poderosos exagerem. Todos os poderes, sem excepção, tendem a crescer. Todos os poderosos, sem excepção, procuram mais. Todas as autoridades, sem excepção, se esforçam por aumentar e durar. Não conheço, na história, exemplo de Estado, partido, empresa ou organização que, voluntariamente, tenha querido limitar-se, reduzir ou distribuir o seu poder. Ora, os mais eficazes instrumentos de contenção do poder e dos poderosos são, uma vez mais, o direito e a justiça. A moral pode desempenhar um papel. Tal como a luta política. E a liberdade dos cidadãos. É certo. Mas são entidades desarmadas, quantas vezes impotentes! Com real eficácia, só conheço o direito e a justiça.

É possível, nas palavras que antecedem, detectar algum pessimismo. Ou uma visão muito insatisfeita com o estado da justiça em Portugal. É verdade. Há muitos anos, desde a fundação da democracia e desde o estabelecimento de uma ordem constitucional fundada na legitimidade, que se espera por um melhoramento sólido e considerável da justiça. O que não tem acontecido. Houve mudanças, mas foram poucas e lentas. Houve reformas, mas foram frágeis. Houve leis, mas foram excessivas em número e reduzidas em qualidade e eficácia. Muito se fez, dirão seguramente todos os que tiveram responsabilidades no sector. Não os desminto. Mas acrescento: muito menos do que precisávamos. Muito menos do que era necessário. A ponto de se ter a impressão de que a justiça, por não ter mercado, por não ser privatizável, por não produzir dinheiro, por não gerar publicidade, por não ser vistosa e por não ser um bem de consumo de massas, ficou para trás nas atenções dos legisladores dos governantes.

Quantas vezes se ouviu e ouve falar da crise da justiça? Parece que a justiça vive obrigatoriamente em crise. Já há mesmo quem diga que o estado normal da justiça é o de crise. Ou até quem negue simplesmente tal estado. A verdade, a meu ver, é que a justiça se desenvolveu menos, mais devagar e com mais imperícia do que outros sectores de vida colectiva. Adaptou-se tosca e lentamente à democracia, à integração europeia, à ascensão dos meios de comunicação de massa, ao mercado, à empresa capitalista, às novas tecnologias de informação e ao crescimento exponencial da litigância em Portugal.

Será necessário mencionar casos concretos? Creio que estão na mente de todos. As sucessivas alterações de códigos revelam uma instabilidade indiscutível. A fuga dos agentes económicos à resolução judicial dos seus conflitos é um sinal seguro de ineficiência. As risíveis vicissitudes do segredo de justiça são sinais indiscutíveis de desordem. As reformas falhadas, como, recentemente, a das férias judiciais, ou, antes, a da assistência judicial, são sinais de falta de perícia e de esforço legislativo guiado sobretudo pela política. A morosidade processual é de tal modo crónica que quase deixou de ser motivo de indignação. Os índices de demora, assim como as taxas de prescrição, altos em ambos os casos, revelam, de modo flagrante, uma ineficiência tal que põe em crise o fundamental direito à justiça. Alguns processos de investigação ficarão numa triste memória: nuns casos, avultam processos de interrogatório e de identificação discutíveis e condenáveis; noutros, levam-se a cabo processos de escuta, gravação e armazenamento de conversas telefónicas, próprios de países de opereta. A reorganização do mapa judicial, de que agora se fala com mais insistência, arrastou-se muito para além do aceitável em processos complexos como este.
Finalmente, estudos recentes mostraram vários fenómenos que merecem atenção. Na opinião pública, tem crescido a sensação de que existem duas justiças, a dos poderosos e a dos fracos. Como se têm avolumado os sentimentos de desconfiança dos magistrados. A qualidade da imagem pública do juiz tem-se degradado, ou porque é responsabilizado pelos defeitos do sistema; ou porque surgiram repetidos exemplos de sobranceria; ou porque certos gestos de cariz sindical lhe retiraram uma indispensável dignidade independente.

Temos de nos interrogar sobre a persistência de crises na justiça. Sobre as dificuldades de realizar reformas neste tão importante sector da vida colectiva. E sobre a passividade de tantos que, em teoria, têm a responsabilidade de zelar pelo bom funcionamento, pela constante melhoria e pela eficácia da justiça. Há anos que o tema me interessa. A mim e a tantos outros. E sei que não é fácil encontrar respostas satisfatórias. O assunto é realmente difícil.
A começar pelo facto de não ser simples definir o conceito de crise da justiça. A maior parte das opiniões publicadas refere-se-lhe frequentemente, mas cada um parece ter ideia diferente dos contornos dessa crise. E não esqueçamos que há também quem negue a simples existência de uma crise. Por definição, dizem alguns, a justiça está sempre em crise, em transe, em mudança e em transformação, fenómenos aliás que fazem parte da etimologia do sentido, se assim se pode dizer.
Para as necessidades desta exposição, aceitemos que a crise da justiça se reflecte na morosidade; numa relativa perda de confiança pública, o que leva a que em certos sectores se “fuja” aos mecanismos da justiça; na paralisia relativamente às mudanças; na deficiente definição de responsabilidades; na insuficiente relação de proximidade entre a justiça e as entidades democraticamente legítimas; na ausência de prestação de contas à sociedade; na instabilidade de algumas instituições indispensáveis à investigação e à instrução; e na dificuldade processual ou fundamental na investigação de certos domínios, como o da corrupção. Como se poderá deduzir deste breve elenco, um aspecto central desta crise reside, a meu ver, na relação entre a justiça e a política.

São difíceis as relações entre a justiça e a política. O legislador está pouco atento e raramente se apercebe das distinções entre funções. A voracidade dos partidos relativamente à Procuradoria-Geral de República é um sinal de mal-estar durável. As relações entre as duas magistraturas são frequentemente difíceis e o seu equilíbrio necessita de esclarecimento. O peso e o âmbito de competências da Procuradoria no sistema judicial português são por muitos considerados exagerados e há muito que se impõe uma revisão do seu estatuto. Mas os partidos políticos, o legislador e os executivos, parecem recear tal iniciativa ou preferem o imobilismo que pode eventualmente servir os interesses dos governos. A separação de carreiras das duas magistraturas, assim como a definição das respectivas autonomias, merecem um reexame, eventualmente uma revisão, mas quem tem o poder para o fazer parece preferir esquivar a dificuldade. As relações entre as magistraturas e a designada legitimidade democrática deveriam igualmente ser revistas, na procura de um reforço dessa ligação. Mas também aqui parece haver conformismo. Uns dirão que são as magistraturas a defender os seus privilégios, outros dirão que são o legislador e o executivo que são tímidos. A verdade é que ninguém dá sinais claros de querer debater e esclarecer tão sério problema. A independência dos magistrados, assim como a autonomia das grandes instituições judiciais, parece terem sido confundidas com autogestão. Este facto conduziu a uma indefinição das responsabilidades na área da justiça, situação que, na minha opinião, explica parte da falta de iniciativa reformadora ou, por outras palavras, parte da enorme dificuldade em reformar a justiça. A relativa passividade do Parlamento e a retracção dos ministros da justiça são sinais dessa falta de definição de responsabilidades. Houve mesmo já um ministro da justiça que, por causa da independência dos magistrados e da autonomia das instituições, declarou ser apenas “ministro das prisões e dos códigos”. É pouco, como se pode imaginar.

Será assim tão importante esta relação entre a justiça e a política? Não creio ser necessário argumentar longamente. A evidência é total. Da política dependem os códigos, os orçamentos, as leis, os recursos, os regulamentos e a organização. Quase tudo. Menos, espera-se, a competência para julgar e investigar. Além disso, e é esse o meu ponto, da política e da sociedade dependerá também a capacidade reformadora e modernizadora.

Tenho para mim que, deixado a si próprio, nenhum sistema social, administrativo ou político se reforma ou evolui favoravelmente. Pelo contrário, o que garante a evolução e a reforma são os impulsos externos. Na economia, é a concorrência. Na ciência, a abertura e o diálogo. Na política, a competição eleitoral. Na cultura, a emulação e a crítica. Na saúde e na educação, os estímulos podem ser de vária ordem, a abertura, a ciência e a concorrência. Em todos eles, indispensáveis são sempre a informação e o debate permanente na opinião pública. E na justiça? Eis uma questão interessante. Para a justiça, não se pode recomendar a concorrência, nem a competição. A justiça não é privatizável. A opinião pública tem pouco efeito, até porque a justiça, na nossa tradição continental, reveste formas majestáticas e distantes. A democracia directa, por exemplo através da eleição de magistrados, parece uma longínqua miragem e nem sequer se afigura como uma solução razoável. A ingerência directa das autoridades políticas está fora de questão, pois o passo seguinte seria a perda de independência dos magistrados. Quer isto dizer que só há, a meu ver, duas soluções. A primeira, a que mais força parece ter tido em Portugal, consiste em fazer com que o sistema de justiça seja o mais fechado possível, que não receba estímulos externos e que apenas tenha de prestar contas a si próprio ou às suas corporações. A segunda, que infelizmente se afigura pouco provável, é a que consiste em criar mecanismos de abertura que não ponham em perigo a independência dos magistrados, mas que abram o sistema, que o façam penetrar por impulsos externos e que o obriguem a prestar contas à sociedade. Uma alteração radical da composição dos Conselhos Superiores seria, por exemplo, um caminho. A presença periódica no Parlamento dos responsáveis pelos Conselhos Superiores, pelos Tribunais Supremos e pela Procuradoria-geral da República, seria também uma solução para a necessidade de prestação de contas perante uma entidade democraticamente legítima. Uma redefinição, igualmente radical, do segredo de justiça, seria outra via. Uma nova relação com a opinião pública, nomeadamente através da imprensa e da comunicação, seria outra.

É talvez ainda cedo para formarmos uma opinião fundamentada sobre o pacto assinado, a semana passada, entre os dois principais partidos parlamentares, a propósito da justiça e de algumas das reformas que se anunciam. Mas já é possível emitir algumas observações. Apesar de ser desfavorável à ideia de “pacto de regime”, podemos olhar para este acordo usando de uma velha figura jurídica: “a benefício de inventário”. Os acordos deste tipo, com esta ou outra designação, podem constituir uma perversão das tradições parlamentares. Ou configuram, muitas vezes, a impotência da maioria e a falta de carácter político da oposição. Mas, para que seja outra coisa e para que nos permita ter uma visão mais positiva do seu alcance, é necessário ver, caso a caso, os resultados legislativos desse acordo, assim como a gestão prática, administrativa, política e financeira que decorrerá do estipulado em tal acordo. Só nessa altura poderemos, em honestidade, avaliar a sua bondade e o seu desígnio.
Será que este acordo tem como objectivo, por exemplo, assegurar mais estabilidade e mais continuidade nas estruturas e na organização da investigação? Poder-se-á, a partir de agora, assistir a uma abertura das estruturas judiciais, de tal modo que a sociedade tenha mais influência na sua organização? É legítimo esperar que já o próximo orçamento de Estado traduza a relevante importância deste sector que, único, mereceu um acordo partidário inédito? Quer este pacto significar que o governo, o seu apoio parlamentar e até uma vasta maioria de deputados decidiram finalmente colocar a justiça no topo das suas prioridades e das suas preocupações? Poderá concluir-se que, finalmente, a assembleia legislativa vai assumir a plenitude das suas competências? É razoável alimentar a esperança de que, dentro de pouco tempo, veremos serem aprovadas as novas regras processuais que permitirão reduzir consideravelmente os prazos e diminuírem os atávicos atrasos da justiça portuguesa? Assistir-se-á a um esclarecimento das regras e da prática do segredo de justiça, de modo a estabelecer um novo equilíbrio entre as necessidades processuais e a salvaguarda dos direitos dos arguidos e dos assistentes, assim como as exigências de uma informação aberta e rigorosa?

Como se pode ver por esta breve lista de perguntas, qualquer avaliação fundamental, e não apenas política e partidária, do acordo parlamentar assinado pecará por prematura. Até o aspecto positivo que mais merece ser saudado, a previsão de provas públicas para o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e aos tribunais de Relação, deve esperar pela respectiva regulamentação e prática, a fim de ser melhor avaliado. Mas convêm não esquecer que matérias decisivas como o processo civil, a composição dos Conselhos Superiores e a redefinição da autonomia do Ministério Público ficaram fora do acordo. Não sabemos se apenas por impossibilidade de entendimento ou se estes temas não fazem parte das intenções do executivo e do legislador. Vamos, pois, esperar.

Mas considero um mau sinal o facto de os dois partidos não terem discutido ou não se terem entendido sobre um tema de especial relevo e grave urgência: o combate à corrupção política, autárquica, empresarial e desportiva. Este é um dos problemas mais candentes da actualidade, para o qual nem a justiça nem a política democrática têm sabido encontrar soluções. Ora, se há matéria para a qual se exige uma convergência de vários partidos, é justamente esta. Como creio que não se tratou de lapso, mas sim de gesto deliberado, lamento que tenha sido enviada uma mensagem à opinião pública a revelar menor preocupação com esta questão.

Creio, de qualquer modo, que este acordo não se destina a alcançar nenhum dos objectivos que, para a reforma da justiça, considero prioritários. O da necessidade de estabelecer mecanismos de prestação de contas. O da exigência de responsabilizar o legislador, o ministro e as máximas autoridades judiciais. E, finalmente, o de criar vínculos do sistema judicial às estruturas democráticas legítimas.

A este propósito, desejo esclarecer um ponto essencial. Não pretendo, com nenhuma das alusões feitas acima, que o sistema judicial se transforme em entidade directamente democrática, vulnerável às pulsões partidárias e à demagogia eleitoral. Tal como não desejo que as estruturas judiciais estejam cativas da luta sindical. Nem quero submeter a independência dos magistrados às funções políticas e partidárias. Pretendo, isso sim, que a justiça portuguesa se abra às influências e às necessidades da sociedade e preste contas, indirectamente, às entidades legítimas e representativas da sociedade e do soberano.

A verdade é que desde há trinta anos que se refere frequentemente a crise da justiça e a dificuldade em lhe dar solução. Também há trinta anos que os indicadores mais simples, sobretudo os que sublinham a morosidade, a prescrição, o atraso e a falta de produtividade, não registam melhoramente notável. Apesar de saber que as comparações nem sempre dão razão, não resisti a cotejar as reformas e os resultados deste sector com os de outros, como sejam, por exemplo, o da saúde e da educação. A comparação pode parecer atrevida, mas tem o mérito de obrigar à reflexão.

Tanto a saúde como a educação exibem uma mudança e um somatório de resultados muito mais impressionantes do que a justiça. Apesar de não serem mais fáceis, nem abrangerem menos pessoas, nem terem menos activos. Pelo contrário, aliás. O aumento da esperança de vida, a diminuição drástica da mortalidade infantil e materna, a redução das doenças contagiosas, as taxas de cobertura dos sistemas de prevenção e de saúde pública mostram o caminho feito e um indiscutível progresso, não desmentido pelas dificuldades ainda presentes. Na educação, o aumento das taxas de cobertura, o alargamento da rede, a expansão do sistema, o desaparecimento do analfabetismo juvenil e o desenvolvimento dos estudos avançados revelam, entre outros, uma notória mudança. É todavia verdade que, na educação, muito mais do que na saúde, a mediocridade dos resultados qualitativos quase oculta a imensidão da mudança e o êxito da expansão quantitativa. Mas esta última não pode ser negada.
Na justiça, não assistimos a uma mudança semelhante. Nem de perto, nem de longe. Numa nova sociedade onde se organizaram a democracia, os direitos dos cidadãos, o mercado, a economia capitalista, a integração europeia, o associativismo, a instrução, a imprensa e a informação livre, cresceram a litigância e os processos, assim como os números de magistrados judiciais e do ministério público, de oficiais de justiça e de advogados, mas não se assistiu a um melhoramento significativo da prontidão da justiça.

Ora, a justiça não sofreu, nestas décadas, dos males tradicionais nas sociedades em desenvolvimento: a falta de recursos financeiros, a falta de profissionais competentes, a ausência de estruturas de formação e a deficiência de outros recursos materiais. Nem sofreu, se assim se pode dizer, de falta de necessidade e de procura. Ou, se sofreu de alguns destes males, foi de modo proporcional ao dos sectores da saúde e da educação. Onde se poderá então encontrar a razão pela qual a justiça evoluiu, perante a sociedade, menos, menos bem e de modo mais deficiente?

A primeira razão, talvez a mais fácil de detectar, reside no âmago dos mecanismos democráticos. Por razões eleitorais, genuínas ou demagógicas, os políticos e as autoridades estão mais atentos às aspirações de saúde e de educação do que às de justiça. Mas isto não chega, até porque as aspirações à justiça são muitas vezes audíveis e as crises de confiança bem visíveis. Além disso, as necessidades de justiça não se limitam a momentos excepcionais da vida dos cidadãos, mas sim a toda a sua vida, na família, no trabalho, nas relações sociais, nas relações com o Estado, nas transacções, nos direitos, na cidadania e na liberdade.

A meu ver, as razões para esta evolução diferencial, tão desfavorável à justiça, residem noutros fenómenos. Em primeiro lugar, no carácter fechado do sistema. Os cidadãos, as autarquias, as empresas, as associações profissionais, as sociedades científicas e outros grupos de interesses não têm acesso aos corredores da justiça, não têm meios para a influenciar e para a fazer evoluir. Segundo, a justiça está entregue a si própria e às suas corporações, numa situação que ultrapassa, e muito, a legítima independência. Terceiro, a justiça não presta contas a ninguém, a não ser a si própria. Quarto, a justiça vive um sistema de responsabilidade circular que se caracteriza por uma ausência de responsabilidade clara e por uma transferência de culpas para o parceiro mais vizinho, o juiz, o magistrado do ministério público, o oficial de justiça, o advogado, o governo, os deputados e a administração Pública. Finalmente, o poder político é dúplice no seu comportamento: para ter o silêncio ou a cumplicidade da justiça, remete-se a uma espécie de passividade.

Os sistemas de saúde estão por definição abertos. Ou pelo menos mais abertos. Em boa parte, estão organizados em função de um princípio científico universalista e de uma tradição experimental, os das ciências da saúde, longe das doutrinas sociais e políticas. As instituições de saúde estão por vezes em competição. O recurso à medicina estrangeira pode ser frequente, pelo menos nas classes com capacidade económica. Existe uma medicina pública e uma medicina privada. As empresas, as autarquias, as associações, as sociedades científicas, os empregadores, os sindicatos, os bancos e as companhias de seguros interessam-se pelo modo como está organizada a saúde. O “ethos” científico que regula as actividades ligadas à medicina e à saúde faz com que as doutrinas nacionais e nacionalistas, o arbitrário dos programas corporativos e a “especificidade portuguesa” tenham pouca influência na organização da saúde.

Alguns destes traços são partilhados pelas actividades educativas, designadamente a concorrência e a abertura do sistema, assim como o interesse activo das entidades públicas e políticas. Infelizmente, o paralelismo não é total, o que talvez explique a mediocridade dos resultados qualitativos na educação. Com efeito, as doutrinas e as ideologias, como até as modas passageiras, têm uma influência decisiva no modo como as escolas se organizam. Mas isto não obstou a que a expansão do sistema fosse, nas últimas décadas, um êxito.

Sob este ponto de vista, a justiça parece mal colocada. A sua privatização, total ou parcial, não é recomendável, espero mesmo que seja impossível. Por motivos evidentes, não existe concorrência nem alternativa. As melhorias da justiça não parecem ter potencialidades eleitorais. E não existe um princípio científico que oriente a justiça. Quer isto dizer que a abertura do sistema de justiça, apesar de difícil concretização, é talvez o único caminho fértil. Abertura no sentido de influências externas e de envolvimento de pessoas e entidades que não pertençam às grandes corporações judiciais. Abertura ainda no relacionamento das instituições com a sociedade. E abertura também às fontes de legitimidade democrática e à prestação de contas.

Termino, dirigindo-me aos novos candidatos à magistratura. Gostaria de pensar que as minhas palavras são mais um incentivo do que um desencorajamento. Sempre, na história, a figura do magistrado, do juiz, foi objecto de admiração e de especial respeito. Também houve, é claro, juízes odiosos, corruptos, cúmplices dos poderosos e dos déspotas, de que o famoso “juiz de duas caras”, da iconografia medieval, é um exemplo. Mas, em última análise, o juiz sempre se distinguiu como aquele em quem o povo mais pode confiar. Uma espécie de última instância terrestre, o defensor da lei, o garante dos direitos de cada um, o protector dos fracos e o árbitro de conflitos. É esse o juiz que eu gostaria de ver regressar, plenamente, à nossa vida colectiva. Desejo-vos, para nosso bem, boa sorte no início de carreira.

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Centro de Estudos Judiciários - Abertura do curso de Auditores
Lisboa, Setembro de 2006.
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Este texto é uma extensão do publicado no Jacarandá [v. aqui] e no Sorumbático [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

domingo, 5 de outubro de 2008

Os 50 anos da Televisão - Quando tudo começou

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Por António Barreto
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COMO EM TUDO NA VIDA, também a data verdadeira de início da televisão em Portugal é objecto de discussão. Para uns, foi em Setembro de 1956, quando, num perímetro reduzido à volta da Feira Popular, começaram as emissões experimentais em Lisboa. Ou em Dezembro do mesmo ano, com o segundo ciclo de experiências alargadas à cidade e arredores. Para outros, terá sido a 7 Março de 1957, data oficial das primeiras emissões “a valer”, com as grandes áreas de Lisboa e Porto já abrangidas. Mas ainda há a data legal, a da aprovação do decreto-lei que cria a RTP, em 1955. Assim como a de uma experiência feita no Porto, em 1956, por empresa comercial. Ou, finalmente, a data de chegada das imagens à minha terra, esta sim, efeméride real para tantos portugueses. É a data que eu prefiro. Foi em 1958.
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Apenas a cem quilómetros do Porto, Vila Real não ficava só para lá do Marão, ficava no fim do mundo. Para se ir de comboio até à “capital do Norte”, tinha de se passar primeiro pela Régua. Eram 25 quilómetros de via reduzida. As carruagens, muito estreitas, eram iguais às que víamos nos filmes do “Far West”. Por isso o comboio tinha a doce alcunha de “Texas”. Este demorava, ao longo de curvas apertadas do vale do Corgo, mais de uma hora para percorrer aquele curto trajecto. Depois, até ao Porto, eram duas a três horas de esperas e apeadeiros. Em alternativa, o carro ou a “carreira” tinham de percorrer as famosas “voltinhas do Marão”. Duas a três horas de enjoo, curvas e perigos. Não se ia ao Porto. Ninguém se deslocava ao Porto. Ia-se de viagem, o que era diferente. Levava-se mala, cesta e farnel. E garrafão. Mas, para a maior parte, essas viagens eram raras. Ora, havia outras necessidades, outras urgências. Assim, quando se precisava de alguma coisa da cidade, do Porto, documento oficial, renda ou medicamento difícil, era necessário recorrer ao “recoveiro”, um senhor que ia todos os dias de madrugada e regressava à noite com as encomendas que íamos, ansiosos, buscar à estação de caminho-de-ferro. Trás-os-Montes não ficava ali. Ficava longe.
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Três jornais locais, verdadeiras folhas de couve, faziam a crónica do lugar. “A Voz de Trás-os-Montes” (“A Voz de Trás”) pertencia à diocese, era impressa nas tipografias do seminário e sempre foi dirigido por um sacerdote. O “Vila-realense” era republicano, feito, do princípio ao fim, pelo senhor Heitor Matos, com a ajuda de um extraordinário amador, o José Rocha, e um cronista do outro mundo, o “Naralhas”, especialista em necrologia. O “Ordem Nova” era, obviamente, da União Nacional, estava em todo o sítio e ninguém o lia.
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As notícias importantes vinham do Porto. Quatro diários disputavam o mercado: o “Primeiro de Janeiro”, o “Comércio do Porto”, o “Jornal de Notícias” e o “Diário do Norte”. Custavam oito tostões, preço igual ao do café. Não parece, mas eram caros. A maior parte das pessoas que sabiam ler iam fazê-lo nos cafés ou nas associações. Os diários do Porto chegavam todos os dias, mas sem horas fixas: por vezes de manhã cedo, geralmente mais perto do meio-dia. Os jornais de Lisboa eram raros. Só chegavam ao fim da tarde ou no dia seguinte. Quase ninguém os tinha ou lia. Os meus amigos e eu íamos ler ao “Clube de Vila Real”, a associação da burguesia liberal da cidade e dos notáveis vagamente republicanos, simpatizantes dos Rotários. Ali nos deleitávamos com o “Diário de Notícias” e “ O Século” dos dias anteriores. Tínhamos 16 anos, líamos tudo e achávamos que Lisboa era o princípio do mundo. Os anúncios dos cinemas eram objecto de leitura atenta e inveja intensa. O exercício tinha o seu quê de masoquista: a maior parte dos filmes que acabavam de estrear em Lisboa (às vezes, no Porto) demoraria longos meses ou anos antes de chegar a Vila Real. Se chegassem.
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O Teatro Circo e o Cineteatro Avenida davam duas ou três sessões por semana. Abundavam os filmes portugueses, os de “cow boys”, os de aventuras (capa e espada e piratas) e alguns grandes dramas italianos, ditos de “faca e alguidar”. O grande herói era o Cantinflas, do mexicano Mário Moreno, que não sei se tinha, no resto do país, igual êxito. Aos seus filmes, por vezes repetidos no dia seguinte, acorriam a cidade e os arredores. Todas as classes sociais assistiam, conservando entre si, evidentemente, as devidas distâncias. Os preços dos bilhetes e a qualidade das cadeiras garantiam as convenientes fronteiras sociais: a 3ª plateia a 2$50, a 2ª a 5$00, a 1ª a 7$50, o balcão a 10$00 e o camarote a 30$00. Todos encontravam o seu lugar. Todos sabiam qual era o seu lugar...
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Teatro, “sério” ou “de revista”, era uma raridade absoluta, quase inexistente. Música, clássica ou ligeira, igualmente distante, com excepção de umas bandas, locais ou não, que passavam de vez em quando, designadamente nas romarias e nas “festas santas”: de Santo António, em Vila Real, da Nossa Senhora do Socorro, na Régua e da Senhora dos Remédios, em Lamego. Momento especial era o da passagem, de muito em muito longe, dos “Companheiros da Alegria”, de Igrejas Caeiro, “show” misto de comédia, música, variedades, concursos e publicidade e que literalmente fazia “casa cheia”. Tradição apreciada era a gala anual da “Academia” de Vila Real, pomposa designação que os estudantes finalistas do Liceu se tinham dado a si próprios. Além das festas, do baile, das ceias (com galinhas roubadas...) e dos cortejos do “Regadinho” (“Água leva o regadinho, Água leva o regador, Enquanto rega e não rega, Vou falar ao meu amor”), havia a récita do 1º de Dezembro: variedades, comédia, um entremez, cenas de revista com “compère” e muita crítica local, tudo evidentemente censurado. Não havia um lugar vago. Finalistas e suas famílias tinham os seus primeiros dias de glória.
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Havia, evidentemente, a rádio, assim nomeada pelo povo, mas que os senhores chamavam telefonia. Antes dos “transístores”, nem toda a gente tinha. Eram mesmo poucos os que possuíam um aparelho. Os mais pobres, os trabalhadores e a gente do campo, não tinham de todo. A rádio não era única. A Emissora Nacional, a Renascença, o Rádio Clube e os Emissores Norte Reunidos partilhavam a antena. A que se acrescentava uma formidável Rádio Alto Douro, mais amadora do que profissional, de uma companhia privada que emitia a partir da Régua durante meia dúzia de horas por dia e tomava conta da vida local. Era nesta rádio que se ofereciam e ouviam os “discos pedidos”, princípio ou confirmação de tantos namoros. As rádios nacionais públicas serviam para as notícias. As privadas para a música ligeira e sobretudo para o “folhetim radiofónico”, novela interminável que, a seguir à hora de almoço, mobilizava as donas de casa. A partir de certo momento, já nem se dizia “folhetim”, mas simplesmente “O Tide”, que era o nome do anunciante ou do patrocinador.
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A “vida social” era previsível. Pertencia sobretudo aos homens. Estes frequentavam os cafés depois de almoço, ao fim da tarde e depois de jantar. Cafés e pastelarias estavam separados por famílias, classes sociais, afinidades políticas e outros princípios tribais. A Gomes, a Brasileira, o Clube, o Excelsior, a Pompeia e o Queirós, além de outros, dividiam entre si os frequentadores que lhes eram mais fiéis do que às mulheres. Senhoras sozinhas nas ruas ou nos espaços públicos, só as das classes altas e às horas decentes do chá. Ou nas compras, evidentemente. Muito poucas, as mais ousadas, saíam à noite com os maridos. Desde que o tempo ficava doce ou quente, o “passeio na avenida” era obrigatório. Os rapazes tinham um pouco mais de folga nas horas de regresso a casa. Os pais saíam em família, com as filhas pela mão. Davam voltas à avenida Carvalho Araújo, pelos passeios dos canteiros centrais. As famílias cumprimentavam-se, os homens levantavam os chapéus e as senhoras trocavam as últimas informações. Os que as tinham mostravam a suas filhas em idade casadoira. A exibição começava pouco depois das oito e meia, acabava antes das dez. Às onze da noite, a cidade estava deserta. Sobravam uns jovens mais estouvados, uns professores do liceu mais novos, alguns advogados ou médicos que ficavam até tarde na intriga. E uns bêbedos. Aqui e ali, a começar pelo Clube de Vila Real, jogava-se a dinheiro, para grande desgosto de muitas “senhoras de sociedade” que, apesar disso, preferiam este passatempo dos maridos a outros divertimentos inconfessáveis.
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O culto religioso e as festas ocupavam grande parte do espaço público e do calendário. A começar pelas missas dominicais. Também estavam divididas, não só por bairros, mas sobretudo por classe social. A mais importante era a do meio-dia, na Sé. Todas as pessoas importantes ali vinham. Mulheres à frente, homens atrás. Ir “ver a saída da missa” era obrigatório na agenda: intrigar, trocar impressões ou sorrisos, mostrar-se, ver as raparigas e exibir vestidos. Depois, eram numerosas as procissões, os cortejos, as novenas e toda a liturgia da Páscoa e do Natal. Finalmente, as festas, as romarias e umas vagas peregrinações a santuários vizinhos. Era também à religião que as mulheres, com algum tempo livre, dedicavam as suas energias: Acção Católica, Conferência de São Vicente de Paula, Liga Missionária e outras.
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As organizações políticas do regime tinham pindérica existência. A Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa e a União Nacional limitavam-se ao nome e a umas actividades destinadas a fazer prova de vida, não necessariamente de actividade. Mostravam-se quando a cidade era visitada por um membro do governo ou, de quatro em quatro anos, quando se organizava uma reunião eleitoral chefiada por um ministro. Fazer política não era bem visto. E fazer a política do regime não era fazer política. Tempos estranhos...
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A educação distinguia Vila Real. Era a única cidade do distrito com direito a ter um Liceu completo (até ao 7º ano, hoje 12º). Era o Liceu Camilo Castelo Branco, baptizado pelo Estado Novo como Liceu Nacional de Vila Real. Era, curiosamente, misto, o que raramente acontecia em Lisboa e no Porto. Mas os recreios eram separados. Tinha aquecimento central a funcionar e uma confortável biblioteca, na qual, ao fundo à direita, um armário fechado à chave encerrava os livros proibidos e os não recomendados. Estavam ali, por exemplo, livros de poesia de António Botto, Guerra Junqueiro e José Régio, o livro de Egas Moniz sobre a educação sexual, “O crime do Padre Amaro” e “A relíquia” de Eça de Queirós e até a “História da literatura portuguesa” de António José Saraiva e Óscar Lopes. Como estava um pequeno livro de José João Cochofel intitulado “Iniciação estética”, pela simples razão de que tinha na capa uma mulher nua, neste caso a reprodução de uma senhora de P. P. Rubens! Em 1958, todas as turmas de ciências e letras do último ano do liceu eram frequentadas por cerca de 50 rapazes e raparigas, tantos eram os que, em todo o distrito, conseguiam terminar os estudos secundários! Muito antes da Universidade, já a escola secundária tinha feito o desbaste da segregação social. Além do Liceu, que assim pertencia à elite, havia a escola comercial e industrial, duas ou três escolas primárias e outros tantos “colégios” de raparigas, onde residiam as filhas das famílias mais abastadas do distrito. Mais de metade da população do distrito era analfabeta, o que era mais ou menos igual a todos os distritos do interior do país.
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Os mais cultos, ou com dinheiro, ou com importância, critérios nem sempre coincidentes, tinham duas ou três vezes por ano um momento alto: os concertos da Pró Arte. Vinham, do Porto ou de Lisboa, dois ou três solistas (nunca falhavam o piano e o violino) dar uma récita. Como não havia sala adequada, tinha de ser no ginásio do Liceu, por entre espaldares e plintos arrumados a um canto. As senhoras vestiam-se a preceito. Foi nesses concertos que vi, pela primeira vez, um ou outro senhor de “smoking” ou de casaco branco e calça preta. Como nos filmes...
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Apesar da doçura aparente destes costumes, em Vila Real, nos anos cinquenta, sufocava-se. Sabia-se pouco. E tarde. Conhecia-se pouco. E mal. O divertimento era raro e caro. A informação escassa. A cultura inexistente. As novidades velhas. Mesmo assim, Vila Real era privilegiada. Outras pequenas cidades e vilas (Chaves, Régua, Bragança, Mirandela, Alijó, Sabrosa, Murça, Valpaços...) e todas as aldeias estavam ainda, se tal é possível imaginar, muito mais atrasadas, muito mais distantes.
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Foi neste ambiente que se começou a falar de televisão, desde 1957, logo que foi uma promessa. Foi aqui que a televisão chegou em 1958. Já era, antes disso, assunto de todas as conversas. Uns poucos tinham visto. Os jornais do Porto escreviam sobre o tema e publicavam os programas do dia. Os primeiros “Guias” de televisão eram vendidos nos quiosques. E nós líamos, como se servisse para qualquer coisa! As emissões começaram por chegar em más condições, situação que durou um ou dois anos. Esse período, de certo modo provisório, foi horrível. Mas a má qualidade e a instabilidade das imagens, com “areia”, interferências e interrupções repetidas, não eram suficientes para fazer desistir quem queria ver. Só quando, em 1962, foi reforçado o retransmissor da Serra do Marão, é que as imagens passaram a ser excelentes. Duas casas vendiam aparelhos de televisão. O Dionísio, ou Casa dos Rádios, de Dionísio Rodrigues da Silva, e a Rádio Patinhas. Foi no Dionísio que vi a primeira emissão no dia em que chegou. O anúncio vinha sendo feito durante semanas com cartazes e aparelhos nas montras. Os comerciantes queriam vender aparelhos, mas quase ninguém comprava. Ou porque queriam ver primeiro, ou porque, razão preponderante, não tinham dinheiro suficiente. A verdade é que eram caros, muito caros. Como cara era a licença que tinha de se pagar, enquanto se não descobria o método, depois generalizado, de fugir ao pagamento da taxa. Foram os cafés e as associações que rapidamente descobriram este meio de atrair clientes.
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No dia primeiro, a emissão estava anunciada para as oito e meia. Desde as sete que, no Largo da Capela Nova, diante do Dionísio, se começaram a juntar pessoas. Alguns já tinham visto, no Porto, mas eram poucos. Mostravam evidentemente a superioridade dos que conhecem. E diziam maravilhas, para inveja dos que não tinham ainda tido a oportunidade. Mas também recordo um que sorriu com desdém, passou ao lado e murmurou qualquer coisa que acabava com um sabido “... Não é novidade nenhuma”!
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Eu tinha quinze anos e sentia que era um dia importante da minha vida. Durante semanas, antes, não se falava de outra coisa. As obras de construção da antena da serra do Marão eram seguidas pelos Vila-realenses como se fosse melhoramento essencial. Havia gente que fazia umas dezenas de quilómetros para se assegurarem pessoalmente de que as obras corriam bem e de que os prazos seriam cumpridos. Nunca, com a água ou a electricidade, se tinha tanto falado ou esperado por uma obra pública. Talvez só no século XIX, quando Emílio Biel (o grande fotógrafo e comerciante alemão do Porto) fez, em Vila Real, a primeira experiência do país de iluminação eléctrica pública. Nos finais da década de cinquenta, a maior parte das casas da cidade já tinha electricidade, mas, à volta, nas aldeias, ainda a maioria dela estava privada. No país inteiro, quase dois terços dos agregados familiares não tinham electricidade em casa. Mesmo que quisessem ou pudessem ter televisão, tal não era possível.
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Oito ou nove horas da noite. Juntei-me à pequena multidão que começava a formar-se. A praça estava cheia. Parecia que toda a cidade se tinha despejado ali. Havia pessoas que olhavam há mais de meia hora para a montra onde dois aparelhos mostravam a mira! Cá fora, no andar de cima, na varanda e virado para a rua estava o maior aparelho de todos. Na praça, murmurava-se, “davam-se palpites” e já se faziam críticas ao que nunca se tinha visto! “É a preto e branco”, resmungava um. “É muito pequeno”, desdenhava outro.
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Quando o ecrã começou a animar-se, com o símbolo da RTP e a música de abertura, a praça agitou-se. Mal apareceu a locutora, uma salva de palmas saudou-a. Alguns pediam silêncio, mas não o obtinham. Todos queriam ouvir, mas ouvia-se mal. O som era fraco e o murmurinho persistente. Mesmo assim, as pessoas ficaram ali à espera, a ver tudo. Resumo do programa, música, notícias e, se bem me lembro, uma peça de teatro. Era tarde quando os últimos deixaram a praça e foram para casa. Nessa noite, a vida em Vila Real mudara.
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Nunca esquecerei esse momento. De repente, era possível ver mais longe. O facto, percebi depois, não ajudava a querer ficar em Vila Real. Pelo contrário, aguçou o apetite por partir. Para ver “ao vivo” o que passava no ecrã. Mas, nos primeiros tempos, parecia que ajudava a respirar. Também não esquecerei esse dia por causa de um episódio singular. Ao fim de alguns minutos, depois de a emissão ter começado, senti que me batiam no ombro. Era alguém atrás de mim. Perguntava-me: “O que é? O que é que se vê?”. Achei a questão insólita. Respondi apressadamente, estava mais interessado no que se passava diante de mim. O senhor insistia: “Mas está gente dentro de uma caixa pequena?”. Só então percebi que o senhor era cego. Passei os minutos seguintes a explicar a um cego o que era ver televisão! Nunca saberei como me desempenhei da tarefa. Ele ouvia com um sorriso triste.
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Em pouco tempo, os horários das famílias foram alterados. Como demorou muito a haver televisão em casa, a grande maioria dos habitantes via em locais públicos. Os cafés foram os primeiros a perceber o negócio. Prepararam um espaço para o efeito. Os que o não tinham instalaram simplesmente o aparelho na sala única. A Gomes, a Pompeia, a Brasileira e até o Acácio da taberna (onde eu aprendera a jogar bilhar e a fumar...) estiveram entre os pioneiros. Passou a jantar-se mais cedo, pois as pessoas queriam já estar diante dos aparelhos por volta das oito e meia. Para os locais públicos, vinham famílias inteiras, pais, filhos, avós e netos. Não demorou muito até que as associações e outras instituições descobrissem a solução para os seus problemas, seja o da falta de receitas, seja o da diminuta participação dos sócios. O Grémio do comércio, o Sindicato dos escritórios, o Clube de Vila Real, as associações recreativas, o clube de futebol e a Acção Católica compraram aparelhos, prepararam as respectivas salas e passaram a abrir à noite. Os “resistentes”, uns cafés que não se actualizaram logo, depressa perceberam que tinham de seguir a onda. Poucos meses depois de ter chegado, a televisão ocupava as noites dos Vila-realenses que se espalhavam pelas instituições ou pelos cafés da sua preferência. De vez em quando, uma família desaparecia destas sessões públicas. Ficava a saber-se que tinha dinheiro e acabara de comprar o seu aparelho. Foram precisos muitos anos até que a maioria das habitações tivesse a sua televisão familiar.
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A chegada da televisão mudou os horários. Mudou a vida em família. Mudou sobretudo as conversas do dia seguinte. Nas escolas, no Liceu, nos empregos, nos cafés e nas ruas falava-se do que se tinha visto na véspera. A comunidade local enriqueceu-se com assuntos vindos de fora. Os concursos, as charlas, as notícias, as peças de teatro, as variedades e o desporto passaram a fazer parte do quotidiano. Não pensávamos nisso, mas era assim em todo o país. Os heróis contemporâneos, as modas, os modelos e os padrões começaram a ser nacionais. Fátima ganhou as suas credenciais nacionais e, mais tarde, internacionais. O Benfica, cujos grandes triunfos europeus surgem poucos anos depois de iniciada a televisão, consagrou-se, por essa via, como o principal clube nacional. Mais do que pela escola, a que muitos nunca tinham ido, é pela televisão que muitas pessoas se sentem efectivamente parte de uma comunidade nacional. Ou antes, como disse Martin Scorsese, noutro contexto, a comunidade transformou-se em sociedade.
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Muito depressa surgiram novos nomes e novas caras de que se falava. A Maria Helena (Varela Santos), o Gomes Ferreira, a Vera Lagoa (então Maria Armanda Falcão), a Maria Leonor, o Fialho Gouveia, o Henrique Mendes e tantos outros transformaram-se em referências de todos os dias. Não passaram a fazer parte da família, como por vezes se exagera, mas eram “lá de casa”. Com alguma inocência e sem a coscuvilhice de hoje, o primeiro “guia” de televisão acrescentava pormenores sobre as suas vidas. Os cantores e os actores passaram a ter rosto. O teatro e as variedades tiveram êxito imediato. Os concursos, com menção especial para o “Quem sabe, sabe”, igualmente. Mas também, estranhamente para os padrões contemporâneos, programas “sérios”, como as “Conversas de teatro” do António Pedro, as “Charlas linguísticas” do Padre Raul Machado ou as histórias e os poemas declamados pelo João Villaret. E até os programas especializados, como a culinária de Maria de Lurdes Modesto e a agricultura de Sousa Veloso, eram vistos por quase toda a gente. Não demorou muito tempo até que se vissem nas ruas senhoras vestidas como as locutoras e homens com gravatas iguais às dos apresentadores. Os produtos publicitados na televisão passaram imediatamente a “best sellers” nas mercearias e nas drogarias, dado ainda não haver supermercados. Qualquer livro mencionado na televisão desaparecia no dia seguinte das duas livrarias da cidade. Para muitos portugueses, foi também esta a primeira oportunidade para conhecerem a cara de Salazar, de que apenas conheciam, se fossem alfabetos, o retrato sem data nem tempo afixado nas paredes das escolas.
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Quando aparecem os primeiros programas estrangeiros, como “O homem invisível”, “Bonanza” ou “As aventuras de Robin dos bosques”, o entusiasmo cresceu imediatamente. A curiosidade era enorme. A técnica e o conteúdo daqueles filmes pareciam muito mais avançados e divertidos do que a produção nacional. Curiosamente, os filmes e as séries não eram dobrados. As legendas faziam a tradução. O primeiro problema, imediato, era o de, nos cafés e nas associações, arranjar lugar suficientemente perto do aparelho para poder ler as letras pequenas. Muitos iam uma hora antes do grande programa da noite “para marcar lugar”. Havia mesmo os que, para esse efeito, mandavam os filhos à frente. Mais grave era o problema dos analfabetos. Que muitos eram. Nos primeiros tempos, nem esse facto foi bastante para demover os interessados, que não desistiam. Ou pediam aos vizinhos para ir lendo e traduzindo, o que criava grande desconforto na sala, ou simplesmente seguiam as imagens e faziam por compreender. A televisão portuguesa optou, desde o início, por não dar a todos os meios de compreensão. Com quarenta por cento de analfabetos no país e quase sessenta nos distritos rurais, o regime não quis que a televisão mostrasse tudo aos analfabetos e aos mais pobres. Para esses, bastava-lhes a produção nacional. Só muito mais tarde, com os programas infantis, começaram a aparecer emissões dobradas.
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A euforia dos primeiros tempos de televisão ajudou talvez a esquecer muita coisa, sobretudo as deficiências de informação. A censura, na televisão, não parecia pior nem melhor do que nos jornais ou na rádio. Mas o valor acrescentado da imagem e do divertimento quase sugeria mais liberdade. Os desenganos vieram depressa. De 1958 a 1960, duas histórias graves, a do General Humberto Delgado e a do Bispo do Porto, passaram ao lado da televisão. Ou a televisão à distância delas. Já a fuga dos comunistas (entre os quais Álvaro Cunhal) da cadeia de Peniche, em Janeiro de 1960, mereceu notícia nos ecrãs. Mas esta foi dada, em tom grave e policial, no fim das notícias, a que foi acrescentado um apelo para que todos os que algo soubessem ou vissem imediatamente denunciassem à polícia. Sem grandes resultados, pelos vistos.
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Pior ainda foram os anos seguintes. Sobretudo 1961. O início da guerra em Angola, o assalto ao Santa Maria e a queda de Goa tiveram, da televisão, o tratamento brutal da informação do regime. Os acontecimentos de Angola, em particular os verdadeiros massacres perpetrados por terroristas no Norte da colónia, ainda serviram para comover a população. Segundo fontes britânicas, terão sido assassinados 1.400 colonos e 11.000 angolanos. Os actos tinham sido de tal modo bárbaros, que o regime não viu dificuldades em usar as informações e as notícias em proveito próprio. A análise era a do governo. A discussão não existia. Mas informação houve, ainda por cima feita no local pelos jornalistas e operadores que, por coincidência, lá se encontravam. O assalto ao vapor Santa Maria, filmado por operadores da RTP, passou quase escondido, excepto no que poderia igualmente mostrar Portugal e Salazar como vítimas do estrangeiro. Já o regresso do navio a Lisboa foi mostrado com festa e glória. Quando chegou a invasão de Goa pelos exércitos indianos, também a mão do governo e a tesoura da censura fizeram o necessário para ocultar. Toda a demagogia foi usada. Durante dois ou três dias, sem imagens (nem sequer compradas às televisões estrangeiras), a televisão limitou-se a ocultar, mentir e passar sob silêncio, conforme as circunstâncias. A televisão, a rádio e os jornais falavam de “resistência heróica” e de “centenas de mortos”, mesmo depois de se saber que não era nada disso.
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Nesse mesmo ano, tinha também havido eleições para a Assembleia Nacional. O acesso da oposição à televisão era simplesmente nulo. Aquela acabaria, mais uma vez, por desistir de ir às urnas. Discussão e debates eleitorais eram entidades desconhecidas pela televisão. Este ano de 1961 termina aliás por outro episódio invulgar para a vida política portuguesa, que deixou definitivamente, neste ano, de ser “pacata”: a 31 de Dezembro, ocorreu a tentativa de revolta iniciada pelo assalto ao quartel de Beja. No incidente, morreu o Subsecretário de Estado do Exército. A televisão deu a notícia, o chefe de Estado a ela se referiu na sua mensagem de Ano Novo, o facto foi aproveitado o melhor possível pela propaganda. Ainda nesse ano, o primeiro homem no espaço, o então soviético Iuri Gagarine, passou quase desapercebido. Era irritante que o homem fosse soviético. A fazer lembrar, uns anos antes, em 1957, aquele professor e académico que, diante do primeiro “Sputnik” igualmente soviético, declarou simplesmente que “não era possível”! Esse ano de 1961 foi, para quem ainda as tinha, o fim das ilusões. Nesse ano, a televisão portuguesa perdeu definitivamente a inocência.
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Voltemos aos anos da fundação. Consta que Salazar tinha dúvidas, do que não há evidência. E que Marcelo Caetano era o grande defensor, o que está demonstrado. De qualquer maneira, o regime, entre 1956 e 1960, sentia-se seguro. Com as excepções dos casos de Humberto Delgado e do Bispo do Porto, que deixarão sequelas para mais tarde, a vida política, financeira e económica parecia tranquila. Estavam longe os anos difíceis do pós-guerra, quando se chegou a pensar que, com a vitória dos aliados, as ditaduras ibéricas iriam também desaparecer. Com o aprofundamento dos conflitos e da rivalidade entre Leste e Oeste, o regime de Salazar é plenamente reconhecido pelas potências, pelos países democráticos do Ocidente e pela comunidade internacional. Portugal é admitido na NATO (ao contrário da Espanha), nas Nações Unidas, no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional. No fim da década, Portugal é um dos fundadores da EFTA, Associação Europeia de Comércio Livre.
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Vivia-se um ponto alto do regime. Não só externamente, como também no plano nacional. Em 1956, tinha-se criado a Fundação Calouste Gulbenkian, cuja formidável acção se começou logo a sentir. Havia dinheiro, o Estado tinha as suas finanças de boa saúde. Fazem-se esforços por criar políticas económicas e de desenvolvimento mais consistentes. Surgem os Planos de Fomento. Constroem-se barragens e estradas. Lançam-se obras de infra-estrutura e animam-se algumas indústrias de base. De tudo isso, a televisão faz-se testemunha, elevando a propaganda do regime a níveis inéditos. A RTP parecia ser o sinal mais visível de um novo edifício. A euforia inicial da televisão não era apenas a que resultava deste novo meio de comunicação e de divertimento, era também a tradução de um clima geral. Que foi de pouca dura. De 1960 a 1962, as turbulências políticas internas, as manifestações operárias, os movimentos estudantis, a guerra em Angola e a perda de Goa marcam o fim de um período maior do regime. E o princípio das grandes perturbações que vão durar alguns anos.
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Mas tratava-se também de um momento charneira, entre o país fechado e a sociedade aberta que sub-repticiamente se preparava. O crescimento económico anunciava-se vigoroso. A emigração para a Europa começou, assim como turismo de estrangeiros em Portugal. Uma vaga de industrialização, alimentada em grande parte por investimentos estrangeiros, animou a economia. As migrações dos campos para as cidades aceleram. Uma nova sociedade, urbana e industrial, começou a surgir. As classes médias cresceram mais rapidamente. Na economia e na sociedade vivia-se um novo clima. Só a política resistia. A guerra colonial vai dominar os anos seguintes. A televisão moderniza-se, desenvolve-se o grande divertimento, surgem os “Festivais da canção”, os “Jogos sem fronteiras” e outros programas que atraíam grandes audiências. Mas a censura resistia. Depois da morte de Salazar, Caetano tentou modernizar ou arejar a vida pública. Ele próprio, entusiasta desde sempre com a televisão, utilizou-a o mais possível e inaugurou, também através da televisão, os contactos “directos” com a população. Mas as pressões liberais eram demasiadas. A vontade de liberdade também. Mais do que isso, a guerra iria liquidar o regime, depois de ter afastado qualquer hipótese de liberalização real.
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A televisão portuguesa desempenhou papel importante neste processo de mudança. Tanto na abertura dos costumes, como no fechamento da política. Tanto no estímulo à curiosidade, como na propaganda. Tanto no conhecimento, como na manipulação. A RTP não foi só observadora, registo e veículo, foi também parte integrante do Estado Novo. Como o foi, depois, da revolução, da contra-revolução e da democracia. Tal como em todos os países europeus, a televisão era do Estado e estava na dependência do poder político. Se este não era democrático, a televisão também o não era. Para o melhor e o pior, a televisão traduz o regime político e a sociedade em que vive. Pode ser melhor, pode procurar elevar os padrões de vida colectiva, como pode ser semelhante, ou mesmo contribuir para o declínio cultural dos cidadãos. Por isso é grande o seu poder e é vasta a sua influência. Talvez não tanto quanto se pensa, mas de qualquer maneira “apetecível”. Por isso, os poderes políticos conhecidos em Portugal, nestes últimos cinquenta anos, tudo fizeram por a utilizar. Sem excepção. Os autoritários, os revolucionários, os contra-revolucionários e os democratas. E, dentro destes, todos os partidos com acesso ao governo fizeram o necessário por se assegurar o domínio ou a conformidade da televisão. Os dirigentes políticos e os governantes parecem ter uma confiança ilimitada na capacidade da televisão. Para moldar as consciências? Para formar adeptos? Para evitar a voz dos outros, dos opositores? Ou simplesmente para publicitar e ampliar a sua acção? Verdade é que nenhum poder político resistiu a tentar governar e usar a televisão pública, ou seduzir e conquistar a televisão privada.
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Discute-se hoje, por toda a parte, a autonomia, a independência ou o pluralismo das estações de televisão. Tanto das públicas, tuteladas pelo poder político, como das privadas, dependentes do poder económico dos proprietários e da publicidade. Mas não se duvida de que alguma dependência exista, tanto num caso como noutro. A discussão é sobre a compatibilidade entre essas dependências e outros valores, como os da autonomia, da criatividade, da crítica e do pluralismo. A discussão é interminável e o debate permanente pode contribuir para se melhorar o serviço que as televisões prestam aos cidadãos.
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A televisão é, por excelência, a comunicação da sociedade de consumo, da política igualitária, da cultura de massas, do “nivelamento” cultural e da homogeneização social e cultural. O que não quer dizer que os regimes autoritários não tenham utilizado intensamente (não utilizem ainda...) a televisão. Estes últimos, de comum com os regimes democráticos, têm os factores de homogeneização e da cultura de massas. Os novos tempos que se avizinham e que prometem, por via da tecnologia, novos modelos e novas faculdades ilimitadas, poderão mudar os dados actuais do problema. Mas ainda é cedo. Por enquanto, sabe-se que a televisão “aristocrática”, de grande qualidade, do património cultural, das vanguardas artísticas e culturais, é uma televisão socialmente desigual. Mas, do ponto de vista dos padrões estéticos e culturais, seguramente “melhor” do que a televisão de massas. Esta televisão, que correspondia aos sonhos iniciais de “elevar os padrões culturais dos cidadãos”, deu lugar a uma televisão de massas, certamente mais “democrática”. Com mercado, concorrência e publicidade, a televisão de “alta qualidade” está praticamente condenada. Só a televisão digital ou por cabo e todas as suas potencialidades poderão salvar ou ressuscitar uma televisão de qualidade. A resolução desta contradição, entre democracia e cultura, não se anuncia para breve. Nem em Portugal, nem no resto do mundo.
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NOTA 1: Este texto foi publicado no volume comemorativo dos 50 anos da RTP (2007), assim como em brochura autónoma editada pelo Museu municipal de Vila Real (2008).
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NOTA 2: Este post é uma extensão dos que estão no Sorumbático [aqui] e no Jacarandá [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.