quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Migrações e Relações Internacionais

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Por António Barreto
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O TEMA SUGERE IMEDIATAMENTE uma pergunta: quais são os nexos, as causas, os efeitos e as implicações existentes entre as migrações e as relações internacionais? A minha resposta simples é a seguinte: podem ser de toda a espécie, de intensas a inexistentes. As migrações podem, ou não, influenciar as relações internacionais. Estas podem, ou não, ter consequências nas migrações. Uma observação da história revela a existência de várias relações, de causa e efeito, num ou noutro sentido. Relações internacionais, entre dois ou mais países, dentro de uma ou mais regiões, podem conduzir a migrações casuais ou permanentes, como podem não ter especial influência nesses movimentos de população. Países ou grupo de países com relações intensas, nomeadamente económicas, ou até políticas, podem ser também o ponto de partida ou de chegada de fluxos migratórios volumosos, como podem desconhecer esse movimento de população. Inversamente, migrações humanas entre vários países e diversas regiões podem forjar um certo tipo de relações internacionais, de cooperação, como podem estar na origem de outros tipos de relações internacionais, de conflito. Como também podem ter reduzida influência no modo como se constroem e praticam as relações entre Estados. Em poucas palavras, posso concluir que não existe regra ou lei que estabeleça efeitos ou características permanentes e necessárias entre as migrações e as relações internacionais. Esta, a resposta simples. Como veremos mais adiante, a resposta pode ser bem mais complexa.
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Todavia, antes de avançar, convém, em poucas palavras, definir os termos em causa, ou pelo menos definir o entendimento que deles tenho, para os efeitos desta exposição. Por relações internacionais entendo o modo como se organizam as relações entre Estados, ou entre grupos de Estados, sejam elas próximas ou distantes, de cooperação ou conflito. Por migração, quero referir-me a todos os movimentos de população entre dois ou mais países, com carácter de longa duração, permanente ou definitivo, independentemente dos motivos ou das circunstâncias que lhes estão na origem. Excluo as viagens de negócios, o turismo, o recreio e as estadias de curta duração com objectivos limitados e específicos, como o do estudo. São definições simples, mas úteis para o propósito. Tenhamos, no entanto, consciência de que estas “viagens”, que não incluo na definição de “migrações”, representam hoje a quantidade colossal de cerca de 500 milhões de pessoas que anualmente se deslocam de um país para outro. Vista do espaço, a Terra é um planeta habitado por uma população em permanente movimento!
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Vale a pena acrescentar algo à definição do termo de migração. Nos tempos modernos, falar de migrações significa quase sempre falar de migrações económicas. Isto é, fluxos de pessoas que abandonam um país para, de modo durável ou definitivo, se instalarem noutro país, a fim de aí trabalharem, residirem e viverem. Estas são, sem dúvida, as migrações mais conhecidas e as que atingem volumes mais relevantes. Constituem aliás um movimento de população que se transformou em traço estrutural da maior parte dos países. As últimas décadas criaram uma situação nova: a da possibilidade de emigrar de quase todos os países para uma grande variedade de outros. É certo que já houve grandes migrações no passado. Sem ir até aos tempos bíblicos, nem aos da colonização ou da escravatura, basta referir o século XIX, durante o qual milhões de europeus se deslocaram para os chamados novos continentes. Mas, enquanto na maior parte do século XX, muitos países se “fecharam”, no tempo actual, com a globalização, com os novos arranjos internacionais (como a União Europeia, por exemplo), com o turismo e com novas políticas de controlo de fronteiras, começámos a viver um ciclo de relativa abertura.
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A maior parte dos países do mundo não é estranha às migrações. Ou porque recebem trabalhadores estrangeiros, ou porque deles saem pessoas para trabalhar noutros horizontes. A maioria dos países vive com a migração como um facto natural e permanente. Não era assim há cinquenta anos. Ou, pelo menos, há cinquenta anos, o fenómeno tinha pouco significado. Isto, com excepção de alguns países ou Estados modernos, como os Estados Unidos da América, o Canadá, a Austrália, a Venezuela e o Brasil que se fizeram, desde os séculos XVIII e XIX, a partir dos migrantes que receberam (o que não exclui o facto de todos esses países terem antes populações autóctones). Para esses chamados novos países, ou novos mundos, a imigração é um factor genético da sua constituição.
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Mas as migrações económicas, tal como as conhecemos hoje, não incluem toda a realidade das migrações. Outros fenómenos estiveram na origem de grandes movimentos de população. A chamada descoberta, a colonização, a conquista, a reconquista, a deportação e a fuga traduzem-se em situações ou estão na origem de factos que podem ser equiparados às migrações. Repare-se, por exemplo, como os grandes impérios, tanto os ultramarinos como os continentais, se fizeram sempre graças também a movimentos de populações. O império romano, o otomano, o português, o germânico, o britânico e o russo organizaram-se a partir de grandes migrações ou exigiram grandes migrações para se estabelecerem. Conforme os casos, as migrações ficaram ligadas a guerras ou conquistas políticas, a administração pacífica ou a deslocações violentas de pessoas, a decisões voluntárias ou a movimentos compulsivos.
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Neste momento da minha exposição, sinto quase a necessidade de fazer uma espécie de declaração de interesses: tenho simpatia pelas migrações. Independentemente das suas circunstâncias (que podem ser dramáticas), das suas consequências (que podem ser trágicas), dos problemas que provocam (que são numerosos e complexos), considero que as migrações dão um valioso contributo para o desenvolvimento da humanidade e dos povos. Sei que das migrações podem resultar violência e preconceito, mas creio que são um insubstituível factor de aproximação dos povos. Sei que as migrações podem resultar de guerras e opressões, de genocídios e fomes, mas tenho a certeza de que já salvaram as vidas de milhões de pessoas. Sei que as migrações modernas resultam, as mais das vezes, de situações de carência e privação, mas também são o modo como as pessoas lutam contra esses mesmos fenómenos.
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Esta minha preferência não é apenas uma crença. Nem só uma opinião de carácter político ou moral. Sabe-se, cada vez mais e melhor, que as migrações trazem consigo crescimento económico e desenvolvimento; ajudam à renovação demográfica e à mistura de populações; e promovem a aproximação de culturas e a convivência entre diferentes. Na verdade, as migrações não são apenas pessoas em movimento. Com elas, viajam as ideias, os produtos, as culturas e as crenças.
As mais actualizadas investigações arqueológicas, históricas, antropológicas e linguísticas vão revelando que o movimento e a mistura de populações, por vias pacíficas ou não, estão na origem de enormes progressos da humanidade. A agricultura, a indústria e o comércio desenvolveram-se mais e mais rapidamente naquelas áreas onde era fácil ou foi tornada fácil a movimentação de pessoas e a divulgação de técnicas. E não foram apenas os progressos económicos e materiais: também as culturas, a escrita, as ciências, a organização das sociedades, a administração pública, a saúde e a educação desenvolveram-se mais e melhor nos continentes propícios ao movimento e às migrações. São também cada vez em maior número os estudos de economistas e historiadores económicos que tendem a sublinhar, para o tempo contemporâneo, as grandes vantagens puramente económicas que resultam da imigração de trabalhadores estrangeiros.
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Como em tudo na vida, não há só a face brilhante das migrações. Há também o lado negro, o do sofrimento. Quando as migrações estão ligadas a actos de guerra, de opressão ou de conquista, acabam por acrescentar drama e tragédia ao que já era dor e conflito. Ou quando as migrações, por via das questões políticas, religiosas e sociais, acabam por desencadear perturbações maiores nas sociedades, também aí assistimos a esse reverso da medalha. Será necessário recordar exemplos? Só entre os mais recentes, pensemos na Palestina, no Uganda, na Libéria, no Sudão, nos restos da União Soviética, na Somália, no Zaire, em Angola... Mas não se pense que estas situações mais dramáticas pertencem a outros continentes. A Europa está directamente envolvida nelas. Ou porque também conheceu há bem pouco tempo movimentos desesperados de pessoas à procura de abrigo, paz e trabalho, como quando assistimos ao desmoronamento da federação jugoslava e vimos milhares de pessoas, em barcos irreais, à procura de bom porto. Ou porque uma parte importante dos que fogem, como os africanos da costa ocidental, dirigem-se para o Mediterrâneo e para os países europeus, onde aliás nem sempre chegam e donde, tantas vezes, são recambiados.
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É a altura de falar um pouco de nós. Portugal tem uma velha história de migração. Deixo de lado os tempos idos das migrações que fizeram o povo e a nação, ou das que levaram os portugueses aos outros continentes. Bastam-nos os séculos XIX e XX. Só o último século seria suficiente para demonstrar que Portugal conheceu quase todas as experiências possíveis de migração económica e social. Conhecemos bem a emigração para as colónias africanas e latino-americana e para a ex-colónia brasileira. Também vivemos a emigração para os chamados países novos de povoamento ou estabelecimento europeu, como os Estados Unidos, o Canadá, a Venezuela e a África do Sul. Foram estes os padrões migratórios até aos anos sessenta do século XX. Eram, em certo sentido, um factor estrutural da demografia portuguesa. A emigração era o recurso natural de muitas populações a fim resolver os seus problemas de carência económica. Desempenhou o papel de válvula de segurança, de fonte de rendimento para muitas famílias e de equilíbrio relativo nas contas externas. A emigração desses tempos ficou inscrita na história do país, na literatura e nas representações populares. A emigração dessa altura deixou, pelas segundas e terceiras gerações, uma diáspora portuguesa espalhada por vários continentes e que se avalia hoje a vários milhões de descendentes.
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A partir dos anos sessenta, uma mudança radical fez com que os fluxos migratórios quase abandonassem o Brasil e se virassem, maioritariamente, para a Europa. Esta precisava de trabalhadores, Portugal tinha-os em quantidade, sofrendo, ao mesmo tempo, de uma situação de atraso económico e de incipiente industrialização. O período que vai de 1960 a 1975 é o período de maior emigração da história portuguesa. Talvez um milhão e meio de trabalhadores foram viver alhures, nomeadamente em França. As consequências, para Portugal, foram notáveis. Atingiu-se o pleno emprego. Aumentaram os salários dos que aqui ficaram. As mulheres passaram a integrar a população activa com emprego. As famílias rurais ganharam mais uma fonte de rendimento. Muitos puderam finalmente construir a sua casa e aceder a um módico de conforto. As contas públicas alcançaram um equilíbrio de pagamentos bastante para compensar os défices comerciais. A população, directa ou indirectamente, conheceu outros mundos e preparou-se para uma abertura mental e material sem precedentes.
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Ao mesmo tempo, talvez pela primeira vez, a população decresceu em termos absolutos ao longo de vários anos, sem que tal se deva a guerras ou epidemias. Por si só, a emigração bastaria para mudar grande parte da sociedade portuguesa. Continuaram portugueses a partir para a América do Norte (sobretudo madeirenses e açorianos) e para África. Mas a segunda metade do século XX é sem dúvida o tempo da emigração europeia. O que traduz também a reorganização da economia e da política, tanto nacionais como internacionais. Esta emigração acompanhou as novas tendências das relações internacionais. Em certo sentido, precedeu essas novas tendências. Muito antes da integração europeia, da adesão formal de Portugal à Comunidade Europeia, já a população tinha procedido a essa integração. A integração europeia de Portugal começou por ser humana e social, só depois foi política e económica.
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Depois desse ciclo, Portugal regista novo facto inédito: o regresso, para uns, a chegada, para outros, de 500.000 a 600.000 portugueses de África. Foi acontecimento único na história recente da Europa. Em menos de dois anos, a população aumentou 6 a 7 por cento. O que poderia ter sido fonte de perturbações, de problemas e de conflitos muito sérios, acabou por se processar de modo geralmente pacífico (o que não quer dizer sem esforço, sem drama e sem dificuldades) e se transformar numa colossal renovação da população. Também neste caso, as relações internacionais marcaram e influenciaram as migrações.
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Logo a seguir, novos episódios inéditos na história do país: a chegada de emigrantes estrangeiros em grandes quantidades. A ponto de a demografia portuguesa ter mudado, agora com qualquer coisa como 6 ou 7 por cento de estrangeiros residentes. Primeiro, habitantes das mais recentes ex-colónias africanas, com relevo para Cabo Verde, Guiné e, menos, Angola. Depois, novidade também, a chegada de brasileiros, que aliás constituem hoje a principal comunidade de estrangeiros a residir em Portugal. A seguir, um surto de novos imigrantes dos países europeus, nomeadamente espanhóis, mas também ingleses e franceses. As actividades económicas, as ligações empresariais e a migração de terceira idade são responsáveis por esta situação. Em todos estes casos, estamos perante fluxos migratórios estreitamente relacionados com a história e a tradição, ou com a nova configuração internacional de Portugal, como país pertencendo à União Europeia.
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Finalmente, de modo inesperado, em menos de uma década, mais de uma centena de milhares de oriundos da Europa de Leste, especialmente ucranianos, mas também moldavos, romenos e russos. Nunca, no princípio dos anos noventa, os melhores analistas, sociólogos, geógrafos ou demógrafos tinham sequer sonhado com essa eventualidade. De países longínquos e, para nós, estranhos, com os quais Portugal nunca tinha tido qualquer relação densa ou intensa, chegavam dezenas de milhares de trabalhadores que rapidamente se espalharam por todo o país. A contrariar os fenómenos anteriores, eis um caso de migrações que parecem, à primeira vista, independentes das relações internacionais. Evidentemente, se olharmos bem e quisermos mostrar como “isto anda tudo ligado”, será possível encontrar na pertença de Portugal à União Europeia e ao Espaço Schengen, assim como num comportamento deliberado da Alemanha, nossa parceira na União, as razões que explicam o caminho tomado pelos ucranianos, russos e moldavos. Mas isso já será um esforço intelectual excessivo. Esta chegada de migrantes a Portugal não tem, efectiva e imediatamente, relação com a história ou com a actividade internacional de Portugal. Poderá, eventualmente, assistir-se ao inverso: relações entre dois Estados que se estabelecem e desenvolvem com base em movimentos populacionais prévios. De qualquer maneira, não esqueçamos que estamos, no caso dos ucranianos, perante a segunda maior comunidade de estrangeiros, depois da brasileira e antes da cabo-verdiana. Pouco sabemos ainda sobre os seus projectos de vida. Querem ficar definitivamente entre nós? Fazem casa e educam os seus filhos em Portugal? Procuram, um dia, a naturalização? Ou, pelo contrário, consideram este apenas como um episódio de vida, uma migração temporária, e alimentam o plano de poupar para regressar mais tarde ao seu país, tal como, a propósito, tantos portugueses fizeram em França? É o que saberemos melhor dentro de uma ou duas décadas.
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Neste capítulo de imigração de estrangeiros, há ainda a mencionar, última em data e sem relações com a presença de Portugal em Macau, a chegada de alguns milhares de chineses. Numa década, sobretudo através do comércio, começou a criar-se uma já significativa comunidade chinesa, outro facto inédito na nossa sociedade.
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Mas esta rica história, na qual Portugal experimentou quase todos os tipos de migrações, não acaba aqui. Depois de, em meados da década de noventa, Portugal se ter transformado num país de imigração predominante, isto é, que recebia mais estrangeiros do que portugueses partiam, eis que, no início do século XXI, a emigração de portugueses para o estrangeiro, que nunca cessou completamente, parece retomar. Nos últimos anos, o número de emigrantes portugueses atingiu novamente valores elevados, com médias na ordem dos 30.000 por ano, sendo no entanto verdade que talvez haja mais emigrantes temporários ou sazonais do que permanentes. O destino, além da tradicional América do Norte, é ainda preferencialmente europeu, mas surgiram já novas alterações. Parece não ser a França o primeiro destino, nem a Alemanha, mas sim a Espanha, a Inglaterra e a Suíça. Os casos mais curiosos podem ser o da Espanha, outro facto novo na história, e o da Inglaterra, cuja comunidade portuguesa cresceu a um ritmo muito acelerado para atingir valores estimados próximos dos 400.000. Esta nova emigração, ou esta nova vaga de uma velha emigração para a Europa, não surge por causa da pertença de Portugal à União. Nem neste caso, nem no da Espanha ou da Suíça, tal como também não fora o da França dos anos sessenta. As razões fundamentais são, como no passado, as dificuldades económicas portuguesas, a procura de mão-de-obra naqueles países e a notável diferença de salários e oportunidades. É certo que a pertença à União ajuda (o que não é o caso da Suíça). Mas não foi esse facto que desencadeou o movimento migratório. Apenas o permitiu, dado que as leis e as directivas europeias facilitam a deslocação e o estabelecimento.
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E gostaria ainda de referir que, nestas novas migrações, um outro caso merece atenção: o da migração pendular, diária ou semanal, de trabalhadores portugueses para Espanha. São já milhares os que, das regiões fronteiriças, se dirigem regularmente para o seu emprego na Galiza ou na Estremadura. É incerto o futuro deste movimento de trabalhadores. Mas, tendo em conta a dinâmica económica dos dois países, é de prever que aumente e se desenvolva.
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Este é o resumo breve da história das migrações em Portugal. Teve efeitos felizes, como o da melhoria dos rendimentos e do bem-estar. Momentos infelizes, como o da separação das famílias. E teve episódios dolorosos, como o da viagem “a salto” ou o dos bairros da lata da região parisiense. Teve também situações insuportáveis, como as do trabalho clandestino e da multiplicação de ilegais em Portugal. Mas o balanço geral é o de um formidável contributo para a mudança social e para um relativo progresso. Em pouco mais de quarenta anos, cerca de dois milhões de portugueses saíram para o estrangeiro, quase um milhão e meio de pessoas vieram viver para cá. Temos de convir que foi muito. Em pouco tempo. Mais uma vez, esses fenómenos bastavam, por si próprios, para ter mudado a sociedade.
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Ao contrário do que se passava até aos anos sessenta, hoje, em Portugal, nas ruas das cidades e vilas, até nos campos, ouvem-se falar todas as línguas. Ucranianos pisam uvas nos lagares, russos arrancam cortiça no montado, cabo-verdianos trabalham na construção civil, moldavos servem em restaurantes, brasileiros atendem nos comércios e espanhóis tratam nos hospitais. Vêem-se pessoas com todas as cores de pele e vestidas de todos os feitos. Reza-se a todos os deuses. Comem-se e bebem-se todos os produtos de todo o mundo. Vêem-se filmes ou televisão e lêem-se jornais nas mais inesperadas línguas. Se acrescentarmos a isso as liberdades políticas e culturais, podemos concluir que a sociedade portuguesa é hoje aberta e plural. Para o que as migrações, tanto as partidas como as chegadas, foram determinantes. São causa e consequência do pluralismo. São causa e consequência da liberdade. É esta história que permite hoje esperar que os portugueses não tenham a memória curta e que defendam e pratiquem, para os estrangeiros que vivem connosco, políticas iguais àquelas que sempre quisemos que fossem as dos outros países para com os nossos concidadãos emigrados. Nem mais, nem menos.
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Deixemos Portugal e voltemos à Europa e ao mundo. As migrações, as suas causas e as suas consequências, constituem hoje um dos mais sérios e complexos problemas de todas as sociedades. Muito mais do que no passado, as relações internacionais estão condicionadas, em parte, pelas migrações, sejam as realizadas, sejam as previsíveis. A organização da União Europeia, por exemplo, é particularmente sensível a este ponto, como se verificou com a adesão de novos membros (Bulgária e Roménia), com a candidatura de outros (Turquia) e com as relações com terceiros (África do Norte). As relações dos Estados Unidos com os países latino-americanos estão igualmente marcadas pelo problema das migrações.
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Há, como se sabe, muita discussão sobre as políticas possíveis. Mas também há muita especulação, geralmente alarmista. Ainda há bem poucos anos se receavam, por toda a Europa, as enxurradas de imigrantes com origem na Europa central e de Leste, vindos dos novos membros da União ou dos países que se afastaram da antiga União Soviética ou da Comunidade de Estados Independentes. Eram frequentes as certezas sobre as consequências nefastas que se verificariam. Mas ninguém previa, por exemplo, que só a Grã-Bretanha seria capaz de, em poucos anos, absorver meio milhão de Europeus de Leste; que Portugal receberia cerca de 100.000 cidadãos das mesmas origens; e que valores de idêntica ordem proporcional se verificariam em Espanha, na Itália e em França.
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Apesar das histórias de sucesso, a opinião pública continua a pensar que as migrações trazem problemas. Por um lado, é verdade. Por outro, tal sentimento é exagerado. Perante qualquer notícia menos agradável ou diante de uma tendência económica negativa, como por exemplo o desemprego, logo se esquecem as inegáveis vantagens da imigração de estrangeiros, para rapidamente se lhes atribuírem culpas e responsabilidades. Neste quadro, o preconceito cresce a uma velocidade impressionante. Reparemos como certos povos estão indelevelmente ligados a preconceitos inadmissíveis. Dispenso-me de referir os nomes próprios, mas há povos que foram quase equiparados a um certo tipo de malfeitores. De uns, logo se pensa que são terroristas. Outros são evidentemente traficantes de droga. De uma nacionalidade se tem a certeza que estão todos entregues à prostituição e ao proxenetismo. Uns são evidentemente criminosos, outros contrabandistas; uns são naturalmente violentos e especialistas no crime organizado, enquanto outros dedicam-se todos ao comércio ilegal. Pensem em fazer, em voz baixa, estas equiparações e verão que o preconceito é bem real.
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Além disso, mais fundo e mais persistente, há o racismo. O racismo está frequentemente associado às migrações. O que agrava aquela que é já uma complexa questão social. Há certos fenómenos que, quase inevitavelmente, acompanham as migrações em massa. Como por exemplo o trabalho ilegal, as redes de tráfico e colocação de mão-de-obra, o desenraizamento, a marginalidade ou as condições de habitação segregada. Se a todos estes factos, perturbantes e de difícil resolução, acrescentarmos as manifestações de racismo, como é infelizmente frequente, então temos diante de nós situações realmente explosivas.
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Não creio exagerar. O racismo é um traço permanente da civilização ocidental. Talvez o seja também de outras, é-o seguramente. Mas é a nossa civilização que me interessa aqui. Não esqueço que também há no Ocidente o seu contrário, a tolerância e a miscigenação. Como não esqueço que muita gente, na Europa, não é racista; nem que a luta contra o racismo e pela igualdade tem tido, neste continente, pontos altos no pensamento, na acção e na lei. Mas não vale a pena esconder aquele que é também um facto relevante, quase uma tradição histórica: há séculos que o racismo é um traço permanente nas sociedades e nos hábitos ocidentais e europeus. E nem é preciso recuar até aos tempos da escravatura e das primeiras colonizações: o século XX é farto em exemplos de acções, hábitos, leis e comportamentos racistas, tanto neste como noutros continentes.
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Vivemos hoje e viveremos no futuro tempos de globalização. De abertura das sociedades. De movimento e deslocação dos povos. De liberdade de circulação e de derrube de alfândegas. Mas também, paradoxalmente, de criação de novas fronteiras. O estabelecimento de disciplinas severas para impedir ou controlar os movimentos de população está, em muitos países, na ordem do dia. A mistura de populações acelera-se em todo o mundo, seja por mestiçagem, seja por habitação e vizinhança. Mas, ao mesmo tempo, surgem novos conflitos e novas manifestações de segregação. Creio ser difícil admitir a total liberdade de circulação: nenhum país, nenhum Estado a admite. Mas esse não é motivo suficiente para reforçar os impedimentos, as proibições e as separações. Até porque tais atitudes e políticas não evitam hoje, como se sabe, a clandestinidade e o trabalho ilegal, nos quais tanto colaboram os estrangeiros como os nacionais de qualquer país. Não é por eles, pelos estrangeiros, que devemos ser mais racionais nas políticas. É por nós, por todos nós, dado que, para além da circulação, do trabalho e da sobrevivência, estão em causa direitos humanos, a participação na vida pública e a integração de todos na vida colectiva.
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A Europa tem receio das migrações. Tanto os Estados europeus como as suas populações. Tempos houve, há não muitas décadas, em que a migração era considerada necessária, desejada ou, pelo menos, tolerada sem ressentimentos. Hoje, parece que estamos a viver tempos diferentes. Ao mesmo tempo que as fronteiras se abriram, que as alfândegas quase desapareceram, que o turismo, os negócios ou simplesmente a liberdade de circulação florescem, uma espécie de sentimento de receio começou a desenvolver-se. Uma das mais complexas questões que ocupam actualmente as instituições da União, assim como os governos dos Estados membros, é a da imigração, em todas as suas vertentes. A Europa tem receio dos europeus de Leste, dos turcos, dos árabes e dos africanos...
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Do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos e o Canadá têm receio das migrações. Estes países, feitos pela emigração, receiam hoje os imigrantes do mundo inteiro, especialmente da América Latina. Está em estudo e em curso de construção uma barreira detectora de imigrantes! Existe a convicção de que é possível controlar a emigração e de que razoável que um país só deixe entrar dentro das suas fronteiras as pessoas de que necessita para o seu mercado de trabalho!
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Em África, é o contrário. A emigração parece ser o desejo, o horizonte e a ambição de muitos povos, a ponto de se estabelecerem vias de transporte ilegais, arriscadas e perigosas, onde todos os meses morrem dezenas ou centenas de candidatos à emigração. Hoje em África, mais do que em qualquer outro continente, as migrações estão ligadas a situações de carência absoluta, a conflitos e guerras de enorme crueldade e a movimentos de deslocação compulsiva e violenta de centenas de milhares ou milhões de pessoas.
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Finalmente, há realidades novas, ou com novos contornos, que obrigam a uma firme atenção. Nos países de acolhimento, criam-se fenómenos de não integração das segundas e terceiras gerações que cada vez mais perturbam a paz social. Muitos dos que recebem estrangeiros pensam que compete apenas aos outros adaptarem-se aos seus costumes. Mas também há muitos estrangeiros que não estão disponíveis para fazer o esforço de adaptação. Daqui resultam conflitos e incompreensões que têm envenenado as relações entre etnias. E também existem Estados que, para as suas políticas internas e externas, tentam utilizar as suas comunidades da diáspora.
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Termino com uma profissão de fé nas migrações. O que não impede que tenha consciência da dimensão dos problemas que lhes estão associados. Há enormes pressões, seja para aumentar as migrações, seja para as conter e limitar. Associados às migrações, há fenómenos de extrema complexidade, nem sempre fáceis de resolver. Mais do que no passado, com a globalização, as migrações entram directamente no domínio das relações internacionais. Por isso, não são só a humanidade dos nossos comportamentos e a tolerância das nossas leis que estão em causa. Estão também a paz e o desenvolvimento.

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Sociedade de Geografia de Lisboa
Lisboa, Janeiro de 2006
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