domingo, 23 de novembro de 2008

DA BOA OU MÁ CRIAÇÃO

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Por Nuno Brederode Santos
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"Eu não acredito em reformas, quando se está em democracia": eis a frase que antecedeu e contextualizou o verdadeiro detonador da escandaleira. E este foi: "Até não sei se a certa altura não é bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e depois então venha a democracia." Manuela Ferreira Leite falou estes dez segundos e, durante três dias, a balbúrdia das indignações chutou para canto os remansos da razão. Indignaram-se à esquerda com o apelo à suspensão da democracia. Aproveitou o CDS para também se indignar um bocadinho. Indignaram-se o secretário-geral e o líder parlamentar do PSD com a indignação de todos os indignados. Sempre achei que a indignação é um pedregulho atravessado no caminho da inteligência. Mas o facto é que ela foi arvorada em direito e eu sou pró: se a criação de um direito não vier prejudicar outros mais importantes, sou sempre a favor. Mas uma coisa é tê-lo e outra usá-lo. O direito à indignação deve ser usado com grande e sábia parcimónia, senão só atrapalha quem o exerce. Eu gostaria até de reservá-lo para os seis meses sem democracia.
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É óbvio que aquela segunda frase não tem a mais pequena graça. E quem viu as imagens televisivas, reparou que, aparte três ou quatro sorrisos amarelos da mais generosa cerimónia, a sala não riu, antes se conteve e arrefeceu por dentro. Não tanto pelo que ouviram, mas por logo lhe adivinharem as consequências. Dizerem-nos que foi ironia é tentar impor-nos um dogma de fé. E demonstra que o não foi, porque, se o foi, não tem de se explicar. A ironia mede-se pelos resultados. Como um grito mudo ou a visão das trevas, uma ironia falhada só existe enquanto liberdade literária. A ironia é uma arte do subtil, uma filigrana de sentimentos e razão. Ninguém é obrigado a fazê-la e é prudente não tentar. Mas também é óbvio que a - apesar de tudo - oradora não propôs seis meses de suspensão à democracia.
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É bem pior o que foi menos criticado, ou seja, a frase contextualizadora: "Não acredito em reformas, quando se está em democracia." Porque também esta deve ser contextualizada no quadro próprio, que é o currículo da pessoa. MFL governou várias vezes e foi a segunda figura de um Governo. Foi a governante autoritária que todos recordamos. Mas foi uma governante de gestão, não de reformas. Impôs-nos tudo para o combate ao défice e nada conseguiu. Não ousou tocar na administração pública. Não anunciou nem tentou qualquer reforma educativa. Não custa nada admitir que genuinamente não acredite em reformas em democracia. E não a vou pregar à cruz de uma convicção que é livre. Pode é um eleitorado que acredita na absoluta necessidade de reformas entender que assim não se justifica apostar nela.
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Mas o mais digno de atenção, por mais revelador, foi o mais singelo: essa visão do mundo, da vida e da espécie que vem embrulhada na ideia de que, em democracia ou ditadura, "se está". Pois, nós bem sabemos. Mas é uma abordagem que sulca ondas melindrosas. Porque pressupõe distância e alteridade. A democracia não se vive e frui, como a ditadura não se sofre. Numa e noutra, está-se. Como quem diz: a gente nasce e logo vê. Logo vê o modelo de organização social e política em que nos foi dado viver. Paridos, olhamos em volta: se há liberdade, melhor, mas, se não há, a gente governa-se. Porque isso da liberdade, ou falta dela, é um dado. É um adereço rígido da própria Criação, entendida esta como tudo o que está - ou seja, tudo o que sempre foi, ligeiramente alterado pelos poucos menos e mais que a humanidade, laboriosamente, lá foi conseguindo introduzir. É contingência, é circunstância, e nada podemos (ou nos cumpre) fazer contra o que nos transcende e formata. Como já aqui escrevi, este capitulacionismo moral é maioritário em qualquer democracia acabada de instituir. E subsiste em qualquer democracia fresca de 30 anos. Porque, sem ele, a democracia - que pressupõe a maioria - não poderia existir. Ele molda o espírito dessa amarga e omissiva maioria com que os ditadores governaram, ainda que o hajam feito contra ela também. Mas, integrando um pacto histórico com a minoria que quis e soube resistir, faz parte do regime, com todos os direitos de cidade. Claro que tudo isto vai deixar de ser problema: os sexagenários de hoje - que tiveram 30 anos ou mais para se escolherem antes do 25 de Abril - são a última geração cujo está-se é revelador. E sempre sujeito ao normal, sereno e necessário contencioso das ideias.

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«DN» de 23 de Novembro de 2008

NOTA-1: vídeo com as palavras referidas no início desta crónica - ver [aqui]

NOTA-2: Este texto é uma extensão do que está publicado no Sorumbático [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.