terça-feira, 25 de novembro de 2008

No liceu, há 50 anos

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Por Alice Vieira
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NESTES TEMPOS escolarmente muito conturbados, lembro-me muitas vezes dela.
Não me lembro do nome, mas nunca hei-de esquecer a sua voz mansa, o cabelo todo branco (embora ainda fosse nova), o casaco comprido castanho, e a malinha enfiada no braço.
Tinha vindo de outra escola, e também não aqueceu ali o lugar: eram tempos complicados, e pensar pela própria cabeça ( e — pior do que isso — pôr os alunos a pensar pela deles) pagava-se caro.
Nunca soubemos o que lhe aconteceu. Como na cantiga, “às duas por três chegou/ às duas por três partiu”.
A primeira vez que entrou na nossa sala de aula, olhou para todas como se não soubesse o que havia de nos dizer.
Depois abriu a malinha.
Da malinha tirou um livro.
Um livro muito pequeno, de uma colecção chamada “Miniatura”.
Voltou a olhar para nós, abriu o livro e começou a ler.
Era uma história estranha, que se passava numa terra que nem sabíamos onde ficava, uma história onde não havia mulheres a apaixonarem-se por homens que não lhes ligavam nenhuma, ou exactamente o contrário, como nos romances da “Biblioteca das Raparigas”, que habitualmente líamos.
Era a história de uma terra aparentemente normal onde, de repente, começavam a aparecer ratos mortos, muitos ratos mortos.
E, depois dos ratos mortos, começaram a morrer pessoas, muitas pessoas, até que alguém ordenou que a cidade fosse fechada.
Foi assim que nós, meninas de 15 anos, num liceu lisboeta no Portugal salazarento de finais dos anos 50, nos apaixonámos todas pela “Peste” de Camus.
A seguir à primeira leitura, ela explicou-nos quem era o autor, que terra estranha era aquela Oran onde tudo se passava, e disse-nos que estivéssemos sempre com muita atenção, porque às vezes as histórias tinham de ser entendidas para além das palavras.
Nos outros dias tudo se processava da mesma maneira: entrava, abria a malinha, tirava o livro, “ora vamos lá ver onde ficámos da outra vez”— e lia.
Sem floreados, sem “powerpoints”, sem “Magalhães”: a sua voz e mais nada.
Cinquenta minutos depois, a campainha tocava, ela fechava o livro, metia-o na malinha, e saía.
E nós saímos da sala meio atordoadas, com a sensação de sermos muito mais adultas. E, no recreio a seguir, nunca tínhamos vontade de falar.
Não, evidentemente que “A Peste” não fazia parte do programa!
E as aulas que ela nos dava não eram de português, ou de francês, ou de outra disciplina curricular.
Acontecia apenas que tínhamos duas professoras que faltavam muito.
E ela vinha, pura e simplesmente, dar-nos aulas de substituição.
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«JN» de 23 de Novembro de 2008
Este texto é uma extensão do que está publicado no Sorumbático [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.
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NOTA: o melhor comentário feito a esta crónica até às 20h do próximo sábado será premiado com um exemplar de «O Que é Ser Professor de Literatura», de Carlos Ceia - v. [aqui].
Actualização: se esta crónica receber 8 comentários (ou mais), haverá um 2.º prémio. O vencedor poderá escolher o livro atrás referido, de Carlos Ceia, ou «A Peste», de Camus; o 2.º classificado ficará com o outro.