Por Nuno Crato
NOS ANOS 1940, um homem pouco conhecido pelos seus estudos de história natural analisou com cuidado um tipo de borboletas conhecidas como «Polyommatus blues». Trata-se de um grupo de espécies que se encontram por toda a América do norte e que se pensava estarem estreitamente relacionadas. No entanto, esse homem descobriu estarem ligadas apenas através de ascendentes comuns de há vários milhões de anos. Classificando as borboletas pelos seus órgãos genitais, o que implicou uma recolha de muitos especímenes e uma paciência infinita, o investigador concluiu que seria provável que tivessem vindo de Ásia, onde se encontravam os seus progenitores longínquos, passando através do estreito de Bering em cinco vagas sucessivas. Só assim conseguia explicar a diversidade encontrada.
Na altura, não se conhecia a estrutura do DNA e os raciocínios baseavam-se na morfologia das espécies. Na semana passada, contudo, um grupo de investigadores de Harvard, de Barcelona e de várias universidades norte-americanas publicou nos «Proceedings of the Royal Society» de Londres um artigo que relata um estudo do DNA dessas borboletas e conclui a favor dessa teoria migratória (doi:10.1098/rspb.2010.221). Como verificaram os autores do artigo, muitas espécies que existem no Novo Mundo estão geneticamente mais relacionadas com as que se encontram na Ásia do que entre si, de tal forma que se conseguem detectar cinco grupos nas Américas, relacionados com outros tantos grupos asiáticos, o que sustenta a hipótese das cinco migrações. As divergências genéticas reforçam também a hipótese de as migrações se terem realizado há 10 milhões de anos, altura em que havia uma ponte terrestre entre a Ásia e a América do Norte no que é hoje o estreito de Bering.
Tudo isto são grandes notícias para os entomólogos, mas são também notícias interessantes para os amantes da boa literatura. É que o investigador em causa recolheu as borboletas que lhe permitiram fazer todo o estudo enquanto passeava pelo oeste norte-americano escrevendo os seus romances. O homem chamava-se Vladimir Nabokov. É o autor de «Lolita» e de outras grandes obras da literatura do século XX.
Nabokov nasceu em São Petersburgo em 1899 e abandonou a sua terra natal em 1919. Estudou línguas eslavas e românicas em Cambridge, no Reino Unido, e juntou-se depois à família em Berlim. Com a subida dos nazis ao poder refugiou-se em França e depois nos Estados Unidos, onde chegou em 1940. Trabalhou no Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque. Deslocou-se depois para Massachusetts, ensinou em Wellesley e em Cornell e trabalhou no Museu de Zoologia Comparada de Harvard. Falava e escrevia fluentemente em russo e em inglês e, o que é extremamente raro, tanto produziu boa literatura num idioma como no outro.
Em 1953, enquanto passeava pela costa oeste coleccionando borboletas, escreveu «Lolita», o romance que lhe deu fama internacional e que lhe permitiu passar a viver apenas da escrita. Deslocou-se para a Suíça, onde veio a falecer em 1977.
No seu tempo, Nabokov era considerado um simples coleccionador de borboletas, um homem com persistência e capacidade de observação, mas sem capacidade para fazer avançar a ciência. No ano passado, contudo, veio-se a descobrir que o que ele tinha descrito como uma nova espécie (Karner Blues) e que na altura tinha sido considerado um erro de classificação era de facto uma espécie distinta. Agora, a análise genética vem corroborar a sua especulação sobre as migrações de borboletas. Seria um feito para um cientista profissional. É um feito espectacular para um cientista amador.
«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 12 Fev 11 (adaptado)