domingo, 3 de abril de 2011

Heroínas dos tsunamis

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Por Nuno Crato

NÃO HÁ REGISTO de algo semelhante se ter passado no maremoto que há semanas devastou o Japão; mas quando o tsunami de Dezembro de 2004 varreu as costas do Índico, houve uma jovem de 10 anos que salvou centenas de pessoas. Chamava-se Tilly Smith, tinha vindo de Oxshott, nos arredores de Londres e estava numa praia da Tailândia, em férias com os pais. Viu o mar esvaziar-se e os barcos agitarem-se nas águas, que se afundavam. Percebeu, pelo que tinha aprendido na escola, que esse movimento prenunciava o avanço de uma onda gigantesca. Avisou os pais, avisou todos os que estavam próximos e fê-los recuar a zona segura. Salvou muitas vidas.

Passados anos, em Setembro de 2009, passou-se algo semelhante no Pacífico. Uma jovem neo-zelandesa chamada Abby Wutzler, também com 10 anos, proveniente de Wellington, uma cidade tão acidentada que faz as colinas de Lisboa parecerem uma planície alentejana, defrontou-se com um recuo do mar numa praia de Samoa, onde estava de férias. Avisou os pais, avisou os turistas que se encontravam perto e de novo salvou muitas vidas.

Na altura, achei estas histórias curiosas. Mas o filósofo Fernando Savater, que recentemente esteve entre nós numa conferência organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, fez-me ver as coisas de outra maneira. Estas jovens são heroínas do conhecimento, explicou. Elas viviam em zonas onde a identificação de tsunamis é virtualmente inútil. Mas usaram uma sabedoria que nunca sonharam poder vir a ter utilidade prática. E usaram-na por uma única razão: por que a tinham adquirido.
Fernando Savater falava sobre «O Valor de Educar, o Valor de Instruir» e usou estas histórias para mostrar como as aplicações do que se aprende são, muitas vezes, inesperadas. Se as jovens se tivessem recusado a estudar tudo o que se relaciona com tsunamis, pois são fenómenos que não as afectam nas suas localidades, jamais teriam tido possibilidade de salvarem a sua vida e a de outros.

Esta história deveria ser contada em todas as escolas. Sabemos como, muitas vezes, os alunos protestam contra a pretensa falta de utilidade do que aprendem; e como, por vezes, pais e alguns teóricos de educação se juntam a esse protesto. Herbert Spencer (1820–1903), o conhecido filósofo e sociólogo inglês, é um dos mais culpados por ter justificado essa moda. Tornou-se famosa a sua frase «O objectivo da educação não é o conhecimento, mas a acção», precursora da actual teoria das «competências», ou «conhecimento em acção», que seria o único objectivo válido e o único a que a escola se deveria dedicar.

É evidente que todos gostamos que o saber seja aplicável. Mas há muito conhecimento que não tem utilidade prática imediata e não podemos limitar o ensino por esse espartilho. Quando os alunos protestam dizendo que não vêm utilidade no que aprendem, estão na realidade a protestar por não estarem a perceber as matérias em causa. Quantas vezes nos deleitamos com conhecimentos aparentemente inúteis, mas que nos fascinam?

As ideias antiquadas de Spencer e dos seus seguidores continuam a perverter o sentido do ensino. Na escola e na vida, o saber deve valer por si. Mesmo que a sua aplicabilidade seja tão remota como a de jovens de 10 anos salvarem a família de um tsunami.
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«Números e Letras» - «Expresso» de 2 Abr 11