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Por Miguel Viqueira
Por Miguel Viqueira
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ALGUÉM ME AVISOU que amanhã era véspera de Natal. Dei comigo a pensar na minha mãe velhinha, nas minhas irmãs, nos miúdos, a sós na humidade da província. Quando pude partir era já noite cerrada, chovia a cântaros, um desses temporais desfeitos que se abatem como a vingar-se de um pecado infame. O trânsito estava impossível, filas intermináveis à saída da cidade, luzes estilhaçadas no vidro em mil gotículas que me toldavam a visão, e subitamente um vulto, negro, espaventoso, que não atropelei por milagre. Estaquei o carro, descortinei um homem de braços abertos à minha frente mandando-me parar, com ar desesperado, e instintivamente abri a porta do passageiro. Antes de que pudesse dizer nada o homem entrava, esbaforido, de aspecto alucinado, ofegante, como a olhar para uma coisa que só ele pudesse ver. Estava tão encharcado que me salpicou quando se deixou cair no assento, o cabelo aciganado a escorrer-lhe pela testa e os olhos, a bichanar algo que me pareceu “que dia, que dia!”. Arrependi-me no mesmo instante mas já não havia nada a fazer, as buzinas protestavam atrás de mim, o trânsito arrancava, seguíamos agora na grande tarasca dos farolins vermelhos. Tinha um aspecto grande e sinistro assim ensopado, um rosto contraído, abrutalhado, que me inspirou receio. Como não dizia nada, não se explicava nem se mexia, só abocanhava o desespero com que o vi e entrou, senti-me na obrigação de dizer eu alguma coisa, de meter conversa a ver se me acalmava acalmando-o. Tentei distraí-lo, falar-lhe do natal. “Natal o caralho!”, replicou mastigando as palavras. Passei para o futebol. “Futebol o caralho!”. Experimentei a chuva, “Chuva o caralho!”; já só me faltavam as mulheres, mas a tanto não chegava a minha ousadia: não disse mais nada, agarrei-me ao volante e que fosse o que Deus quisesse. De esguelha pude ver, pela abertura do casaco enfunado, a coronha gasta de uma pistola ao cinto. Senti que as pernas me falhavam mesmo estando sentado. O homem ciciava de vez em quando, julguei perceber “eu mato, eu mato” e não tive coragem nem de respirar um bocadinho mais fundo. E como tudo estava a correr tão bem, de repente umas guinadas e uns esticões no volante acabaram de arranjar a coisa: um furo, um furo com aquela chuva e com aquele tipo no carro! Fiz-me à berma sem noção do que iria acontecer a seguir, já nem me lembrava de onde estaria o pneu sobressalente, quando o homem disse, grave, “eu trato d’isto”, e antes de que eu pudesse compreender o que ouvira já ele estava no exterior à chuva e ao vento, a bater na mala para que eu a abrisse, o que fiz, quando o que me apetecia fazer era mesmo arrancar a toda a mecha. Ouvi-o a mexer nas minhas coisas, movê-las do lugar, levantar a borracha e extrair o pneu, o macaco. Depois o carro a elevar-se até ficar inclinado e o chirriar da chave nas porcas, o barulho da troca e o carro de novo nivelado no solo, enfim o ruído de arrumação apressada e o estrondo de fechar a mala; depois um curto silêncio, como se nada se tivesse passado, só a chuva furiosa a fustigar os vidros. Do meu lado vi então a sombra imponente dele a debruçar-se sobre a janela. Abri-a dois dedos e ouvi-o dizer-me “Siga! Eu fico por aqui”. A razão, a simples humanidade, quiseram perguntar-lhe se era doido, mas o instinto arrastou-me-me dali para fora sem um pio. Pelo caminho ainda cheguei a pensar se afinal o homem não teria aproveitado para me roubar... Tarde na noite, a sós à lareira de minha mãe, pensei em todas estas coisas, que se sucediam em carrossel na memória, sem sair da minha perplexidade. Vencido, fui deitar-me. Acendi a luz do quarto gelado, sobre a cama a mala ainda por desfazer. Abri-a sem muita vontade, só para tirar o pijama, e os meus olhos ficaram cravados na pistola negra de coronha gasta, deposta sobre as camisas.
ALGUÉM ME AVISOU que amanhã era véspera de Natal. Dei comigo a pensar na minha mãe velhinha, nas minhas irmãs, nos miúdos, a sós na humidade da província. Quando pude partir era já noite cerrada, chovia a cântaros, um desses temporais desfeitos que se abatem como a vingar-se de um pecado infame. O trânsito estava impossível, filas intermináveis à saída da cidade, luzes estilhaçadas no vidro em mil gotículas que me toldavam a visão, e subitamente um vulto, negro, espaventoso, que não atropelei por milagre. Estaquei o carro, descortinei um homem de braços abertos à minha frente mandando-me parar, com ar desesperado, e instintivamente abri a porta do passageiro. Antes de que pudesse dizer nada o homem entrava, esbaforido, de aspecto alucinado, ofegante, como a olhar para uma coisa que só ele pudesse ver. Estava tão encharcado que me salpicou quando se deixou cair no assento, o cabelo aciganado a escorrer-lhe pela testa e os olhos, a bichanar algo que me pareceu “que dia, que dia!”. Arrependi-me no mesmo instante mas já não havia nada a fazer, as buzinas protestavam atrás de mim, o trânsito arrancava, seguíamos agora na grande tarasca dos farolins vermelhos. Tinha um aspecto grande e sinistro assim ensopado, um rosto contraído, abrutalhado, que me inspirou receio. Como não dizia nada, não se explicava nem se mexia, só abocanhava o desespero com que o vi e entrou, senti-me na obrigação de dizer eu alguma coisa, de meter conversa a ver se me acalmava acalmando-o. Tentei distraí-lo, falar-lhe do natal. “Natal o caralho!”, replicou mastigando as palavras. Passei para o futebol. “Futebol o caralho!”. Experimentei a chuva, “Chuva o caralho!”; já só me faltavam as mulheres, mas a tanto não chegava a minha ousadia: não disse mais nada, agarrei-me ao volante e que fosse o que Deus quisesse. De esguelha pude ver, pela abertura do casaco enfunado, a coronha gasta de uma pistola ao cinto. Senti que as pernas me falhavam mesmo estando sentado. O homem ciciava de vez em quando, julguei perceber “eu mato, eu mato” e não tive coragem nem de respirar um bocadinho mais fundo. E como tudo estava a correr tão bem, de repente umas guinadas e uns esticões no volante acabaram de arranjar a coisa: um furo, um furo com aquela chuva e com aquele tipo no carro! Fiz-me à berma sem noção do que iria acontecer a seguir, já nem me lembrava de onde estaria o pneu sobressalente, quando o homem disse, grave, “eu trato d’isto”, e antes de que eu pudesse compreender o que ouvira já ele estava no exterior à chuva e ao vento, a bater na mala para que eu a abrisse, o que fiz, quando o que me apetecia fazer era mesmo arrancar a toda a mecha. Ouvi-o a mexer nas minhas coisas, movê-las do lugar, levantar a borracha e extrair o pneu, o macaco. Depois o carro a elevar-se até ficar inclinado e o chirriar da chave nas porcas, o barulho da troca e o carro de novo nivelado no solo, enfim o ruído de arrumação apressada e o estrondo de fechar a mala; depois um curto silêncio, como se nada se tivesse passado, só a chuva furiosa a fustigar os vidros. Do meu lado vi então a sombra imponente dele a debruçar-se sobre a janela. Abri-a dois dedos e ouvi-o dizer-me “Siga! Eu fico por aqui”. A razão, a simples humanidade, quiseram perguntar-lhe se era doido, mas o instinto arrastou-me-me dali para fora sem um pio. Pelo caminho ainda cheguei a pensar se afinal o homem não teria aproveitado para me roubar... Tarde na noite, a sós à lareira de minha mãe, pensei em todas estas coisas, que se sucediam em carrossel na memória, sem sair da minha perplexidade. Vencido, fui deitar-me. Acendi a luz do quarto gelado, sobre a cama a mala ainda por desfazer. Abri-a sem muita vontade, só para tirar o pijama, e os meus olhos ficaram cravados na pistola negra de coronha gasta, deposta sobre as camisas.
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