segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Estas coisas que se dizem

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Por Alice Vieira

- Estas coisas que se dizem…
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Ela repete muitas vezes a frase, e as pessoas no café olham para ela, porque ela não pára de dizer a mesma coisa, como se precisasse de ser desculpada, porque o Natal está à porta e ninguém, no seu perfeito juízo, poderia ter dito o que ela disse.
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Nos outros dias também não, claro, mas então no Natal, que todos dizem ser tempo de entendimento e de paz, tempo das crianças.
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-Desculpa…- murmura baixinho – Não era isso que eu queria dizer… Compro-te um chocolate, queres?
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A criança abana a cabeça, não quer chocolate, não quer nada, ou quer o que, pelos vistos, parece ser impossível, que o pai vá com ela à festa da escola . Abana a cabeça e não consegue dizer mais nada porque os seus ouvidos ainda estão cheios da frase de há bocado, tão curta mas que não vai sair tão depressa da sua cabeça, nem entende como a mãe foi capaz de a dizer.
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As pessoas no café ouvem-na, mesmo sem querer ouvem-na, e ficam a saber que a criança vai tocar piano na festa da escola mas que não tem ninguém para lhe ir bater palmas.
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A mulher marca muitos números no telemóvel mas nunca ninguém atende, e já se está a fazer tarde para ela, que tem hora certa de estar no trabalho, ao próximo atraso o patrão manda-a para a rua, já a ameaçou.
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- Quero o pai – diz a criança, mas o pai não atende o telemóvel, o mais provável é estar fora de Lisboa.
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- Vai o Fernando contigo — diz a mãe.
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- O Fernando não é meu pai — murmura a criança.
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E é então que a frase se lhe escapa da boca, mal acabara de a
dizer e já se arrependera, mas ninguém pode não dizer o que já
disse, e ela, sem pensar, a responder:
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- E para o caso que diferença faz?
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A criança fica a olhar para ela em silêncio, olhos redondos de um enorme espanto.
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E as pessoas do café também a olhar, é natal, e no natal essas coisas são imperdoáveis.
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E, de repente, ela sente os olhos de todos em cima de si, e murmura:
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- Estas coisas que se dizem…
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E abana a cabeça, mas já não resolve nada, está dito, está dito, e a criança começa a chorar muito silenciosamente e não há nada mais gritante do que uma criança que chora sem fazer barulho.
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E de repente ela pega nos sacos de plástico que largara no chão, e arrasta a criança, nem olha para ninguém e diz:
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- Anda lá, vá…
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E empurra a porta do café, e lá fora há cânticos de natal e luzes nas montras e algodão a fingir de neve, e ela tem vontade que tudo acabe depressa, que as pessoas voltem a ser como nos restantes dias do ano, e que não haja festas nas escolas nas horas em que todos estão a trabalhar - e desaparecem as duas numa esquina ao fundo da rua.
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- Estas coisas que se dizem – repete uma mulher, abanando a cabeça e mexendo o café muito devagarinho – estas coisas terríveis que se dizem.
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«JN» de 21 de Dezembro de 2008