Por Nuno Crato
NO VERÃO de 1996 comecei a escrever para o Expresso sobre ciência. Daí até ao fim de 2010 escrevi artigos de divulgação, notícias, comentários e crónicas. O “Passeio Aleatório”, que ocupava este espaço, apareceu 351 vezes, ao longo de 10 anos. Como conseguiram os leitores e o Expresso aturarem-me durante tanto tempo? A verdade é que nunca este semanário alguma vez me pressionou para que escrevesse ou para que não escrevesse alguma coisa. Foi um exercício de liberdade.
O convite continua, agora para escrever sobre educação. O espaço será partilhado com três distintos cronistas, que escrevem sobre outros temas igualmente importantes. Para mim é um descanso. Para os leitores também.
Em educação, tal como em muitos outros temas, faz falta a liberdade de discutir e questionar as teorias que há vinte ou trinta anos dominam a teoria educativa. O espírito crítico e a razão podem ajudar-nos a questionar ideias caducas. Mas há uma ajuda mais poderosa. É a ciência. Sobretudo nas últimas décadas, a psicologia cognitiva, a economia da educação e outras áreas científicas têm vindo a questionar muitas ideias feitas e a colocar o debate educativo noutros moldes.
Basta folhear as revistas científicas. No mês passado, por exemplo, um grupo de investigadores das universidades de Chicago e Harvard, reportaram nos “Proceedings of the National Academy of Sciences” (PNAS) um estudo sobre as relações entre as palavras e a capacidade de representação numérica (doi: 10.1073/pnas.1015975108). Sabe-se, por vários estudos culturais comparativos, que a existência de palavras para representar números está associada à representação mental rigorosa de largas quantidades. Nas culturas que não têm palavras para números grandes (por exemplo, algumas tribos amazónicas não possuem numerais além de dois ou três), os indivíduos não conseguem avaliar com precisão quantidades elementares. Chamados a comparar dois conjuntos de elementos apresentados separadamente, confundem 7 com 10. Mas, nessas culturas, os indivíduos também não têm uma prática, por exemplo, em trocas comerciais, que os obriguem a desenvolver a contagem. Daí que seja difícil saber de onde vem a dificuldade, se da ausência de palavras que denotam as quantidades se da falta de prática numérica.
Neste estudo, os investigadores conseguiram dissociar os dois factores, analisando a capacidade de surdos-mudos que comunicam por meio de uma linguagem gestual própria e pouco rica, onde não existem símbolos para números, mas que estão integrados numa cultura (nicaraguense) em que há transacções comerciais frequentes e em que os números permeiam a vida. Descobriram que, apesar de conseguirem usar o dinheiro com precisão e fazer trocos acertadamente, em contagens abstractas esses surdos-mudos enganam-se mais do que os que estudaram a linguagem gestual convencional, em que existem elementos simbólicos distintos que representam quaisquer números inteiros.
Os investigadores concluíram que as lengalengas escolares, como a recitação da sequência de números (“um, dois, três, … “), que os alunos por vezes praticam ainda antes de saber o seu significado, ajudam posteriormente a identificar as quantidades. Não há mal em recitar a palavra “quatro”, mesmo antes de a entender, concluem, isso ajuda a identificar mais tarde o conceito. Por vezes, não há mal em se decorar sem se perceber, pois isso pode favorecer a compreensão dos conceitos. Que heresia para algumas teorias educativas! Ao que os cientistas se atrevem!
.NO VERÃO de 1996 comecei a escrever para o Expresso sobre ciência. Daí até ao fim de 2010 escrevi artigos de divulgação, notícias, comentários e crónicas. O “Passeio Aleatório”, que ocupava este espaço, apareceu 351 vezes, ao longo de 10 anos. Como conseguiram os leitores e o Expresso aturarem-me durante tanto tempo? A verdade é que nunca este semanário alguma vez me pressionou para que escrevesse ou para que não escrevesse alguma coisa. Foi um exercício de liberdade.
O convite continua, agora para escrever sobre educação. O espaço será partilhado com três distintos cronistas, que escrevem sobre outros temas igualmente importantes. Para mim é um descanso. Para os leitores também.
Em educação, tal como em muitos outros temas, faz falta a liberdade de discutir e questionar as teorias que há vinte ou trinta anos dominam a teoria educativa. O espírito crítico e a razão podem ajudar-nos a questionar ideias caducas. Mas há uma ajuda mais poderosa. É a ciência. Sobretudo nas últimas décadas, a psicologia cognitiva, a economia da educação e outras áreas científicas têm vindo a questionar muitas ideias feitas e a colocar o debate educativo noutros moldes.
Basta folhear as revistas científicas. No mês passado, por exemplo, um grupo de investigadores das universidades de Chicago e Harvard, reportaram nos “Proceedings of the National Academy of Sciences” (PNAS) um estudo sobre as relações entre as palavras e a capacidade de representação numérica (doi: 10.1073/pnas.1015975108). Sabe-se, por vários estudos culturais comparativos, que a existência de palavras para representar números está associada à representação mental rigorosa de largas quantidades. Nas culturas que não têm palavras para números grandes (por exemplo, algumas tribos amazónicas não possuem numerais além de dois ou três), os indivíduos não conseguem avaliar com precisão quantidades elementares. Chamados a comparar dois conjuntos de elementos apresentados separadamente, confundem 7 com 10. Mas, nessas culturas, os indivíduos também não têm uma prática, por exemplo, em trocas comerciais, que os obriguem a desenvolver a contagem. Daí que seja difícil saber de onde vem a dificuldade, se da ausência de palavras que denotam as quantidades se da falta de prática numérica.
Neste estudo, os investigadores conseguiram dissociar os dois factores, analisando a capacidade de surdos-mudos que comunicam por meio de uma linguagem gestual própria e pouco rica, onde não existem símbolos para números, mas que estão integrados numa cultura (nicaraguense) em que há transacções comerciais frequentes e em que os números permeiam a vida. Descobriram que, apesar de conseguirem usar o dinheiro com precisão e fazer trocos acertadamente, em contagens abstractas esses surdos-mudos enganam-se mais do que os que estudaram a linguagem gestual convencional, em que existem elementos simbólicos distintos que representam quaisquer números inteiros.
Os investigadores concluíram que as lengalengas escolares, como a recitação da sequência de números (“um, dois, três, … “), que os alunos por vezes praticam ainda antes de saber o seu significado, ajudam posteriormente a identificar as quantidades. Não há mal em recitar a palavra “quatro”, mesmo antes de a entender, concluem, isso ajuda a identificar mais tarde o conceito. Por vezes, não há mal em se decorar sem se perceber, pois isso pode favorecer a compreensão dos conceitos. Que heresia para algumas teorias educativas! Ao que os cientistas se atrevem!
«Números e Letras» - «Expresso» de 5 Mar 11