terça-feira, 14 de outubro de 2008

Ao lado de um amigo

.
Por Alice Vieira
.
REGRESSO DA SUÉCIA e encontro o meu computador entupido de mensagens, quase todas começando da mesma maneira, “então o B.B., já soubeste?”
.
Lancei-me sobre o telefone, a tentar saber o que de tão terrível teria acontecido ao meu amigo mas confesso que, embora já se tenham passado alguns dias, ainda não entendi a razão do alarido desta história. Deve ser uma questão de fusos horários.
.
Porque parece que toda a gente a entendeu - e berra, e grita, e pede a cabeça do B.B., como se fosse ele o responsável pela queda da Bolsa.
.
A história, como todos sabem, mete uma casa da câmara que lhe foi atribuída quando a dele, em Alfama, caía aos pedaços.
.
E de repente lembro-me de mim há quarenta anos, quando decidi, mesmo no termo de uma gravidez difícil, festejar o Sto. António nas Escadinhas de S. Miguel.
.
A gente era tanta, os encontrões eram tantos que eu não sei o que teria sido de mim se, de repente, o B.B. não tivesse surgido de um vão de escada e não me tivesse arrastado para dentro de sua casa.
.
Aflita como estava, lembro-me, no entanto, de ter olhado para a sala para onde ele me levara e de pensar, “como é que ele consegue trabalhar aqui?”
.
Como é que ele conseguia escrever naquele quase cubículo, naquela mesa, sempre a ser necessária para outras coisas, donde ele constantemente se retirava para dar lugar aos pratos do almoço, ou do jantar, ou do que fosse.
.
E é por isso que este bem organizado concerto de protestos contra o B.B. me deixa fora de mim. Porque tenho a certeza de que se ele estivesse agora na situação de há quarenta anos, ninguém levantava a voz.
.
É claro que nestas coisas tem de haver transparência e honestidade, e isso tudo. Não contesto.
.
Mas tenho a certeza de que o B.B. — que é chato, que é às vezes insuportável, que é incómodo, que é volta e meia inconveniente – é também incapaz de uma desonestidade ou de prejudicar seja quem for. Coisa de que nem todos aqueles que o acusam se podem gabar.
.
E mais: tenho a certeza absoluta de que, se em vez de ser o B.B. (ou outro escritor, ou enfim, aquilo a que se costuma chamar “artista”) o caso se passasse com um futebolista, um treinador ou alguém de profissão afim, ninguém se sentiria ofendido. Era até uma honra para a cidade!
.
Esta é uma crónica irritada? Uma crónica a tomar partido? É, sim senhora. E com muita raiva de só ter 2.300 caracteres para ficar ao lado de um amigo.

.
«JN» de 12 de Outubro de 2008