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Por João Miguel Tavares
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A CUNHA TEM MUITO que se lhe diga. Toda a gente está disposta a condená-la e a apontá-la como uma das causas do atraso de Portugal, mas poucos, na prática, passam sem ela. Se Jesus, em vez de frequentar as terras de Israel, tivesse pregado nas margens do Tejo, teria dito à multidão em fúria: "Quem nunca meteu uma cunha que atire a primeira pedra." E aí todos baixariam a cabeça, começando pelos mais velhos, e iriam apedrejar para outra freguesia. É que a cunha não é um acto de corrupção, como enfiar notas na mão de um autarca. É, de forma bem mais cândida, driblar a máquina burocrática, pedir pequenos favores para o primo que é óptimo rapaz, tentar muitas vezes ajudar quem efectivamente precisa ou, como se diz na minha terra, ter um simples "olhamento".
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Mas, claro, de cunhas bem-intencionadas está o inferno cheio. Veja-se o caso "Lisboagate". As primeiras notícias divulgadas pelo DN ainda vinham acompanhadas de um halo de santidade. Os abusos na atribuição de casas pela autarquia eram, afinal, justificados pelas melhores razões: do Presidente da República à esposa do primeiro-ministro, todos metiam cunhas e pediam casas, mas sempre a favor do pobrezinho desamparado. A cunha, boa parte das vezes, não beneficia directamente o próprio e é feita com o argumento de reparar uma injustiça. O problema é que, sem a existência de regras claras e justas, passa a haver uma espécie de fotogenia da pobreza: beneficiam aqueles que melhor comoverem os poderosos. Claro que atrás do pobre vem o motorista do Presidente que mora longe, coitado, e atrás do motorista vem a funcionária que se divorciou e não tem para onde ir, e atrás da funcionária vem o filho da funcionária, que também é filho de Deus.
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A partir daí, nessa avalanche de cunhas e favores cabe tudo, e tudo se mistura. Quando o caso "Lisboagate" atinge um nome como o de Baptista-Bastos, é porque algo está podre no reino da Dinamarca. Numa breve troca de mails, Baptista-Bastos negou-me ter tido qualquer comportamento "reprovável" e eu não tenho qualquer razão para pôr em causa a sua verticalidade. Mas também não tenho dúvidas de que ele jamais deveria ter recorrido à câmara para conseguir uma casa. O escritor Baptista-Bastos, que já tanto deu a Lisboa, podia ter direito a ser ajudado numa altura de dificuldade, como parece ter sido o caso. O jornalista Baptista-Bastos, não. Porque pediu um favor ao poder autárquico. Porque auferiu de um privilégio vedado ao cidadão comum. Que alguém que sempre foi tão moralmente exigente nos seus artigos de imprensa não perceba isto faz-me confusão. Quem, como ele, acredita na nobreza do jornalismo, tem de reconhecer uma cunha quando a vê. E, sobretudo, deve reconhecê-la quando a mete.
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«DN» de 30 de Setembro de 2008 - c.a.a.
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