domingo, 12 de outubro de 2008

BOM DIA, PARAÍSO!

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Por Nuno Brederode Santos
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NÃO É DE HOJE NEM DE ONTEM que os sexagenários se refugiam, no seu soturno convívio, na cansada graçola de que, daí para a frente, o seu destino é perderem a identidade, em caso de atropelamento. Tenhamos sido o mais desenvolto e transpirado na estiva dos trabalhadores do porto de Lisboa, ou o melhor professor de Filosofia dos liceus deste país, os jornais dirão "sexagenário mortalmente atropelado na Avenida da Índia". Mas o que eles calam - entre várias outras coisas que fazem muitíssimo bem em calar - é que a idade lhes rouba também o nocturno e o onírico. Esse mundo que, mesmo fugido ao território da vontade, nos alça em deuses fazedores, criadores do que ninguém controla ou condiciona. De tal modo que tem de ser a imaginação vigil a preencher esse vazio. Não vou por isso dizer que sonhei, mas, mais humilde e honestamente imaginei, o que se segue - reivindicando contudo o mesmíssimo estatuto de inimputabilidade do sonho, o que nem sequer Freud questionou.
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Aconteceu então que acordei com aquela antiquíssima vontade de tomar café. Lavei-me (mas não muito, porque a água deixou de correr na pendência do sacramento), vesti-me (mas não muito, porque do último fato já só me restavam as calças) e desci ao jardim público. Bebi no quiosque meio café aguado por quinze cêntimos e fui sentar-me no meu banco habitual, munido de um cartuchinho de papel pardo com os salvados do milho que compro ao mês. Sentei-me e, enquanto os pombos afluíam de todos os lados, pus-me a pensar, prazenteiro, na extraordinária fortuna que a Fortuna reservou à minha geração. Talvez não tenhamos sido melhores do que as outras. Mas, que raio!, investimos nas incertezas (sem qualquer pulsão de jogadores de casino); suámos brio e privámo-nos de muitos dos deleites sem alma que o quotidiano oferecia ao preço da uva mijona; e alguns - tantas vezes os melhores de entre nós - deram o sangue. Tudo isto porque - fôssemos da esquerda católica, ou da laica, ou comunistas, ou libertários - tínhamos o crânio povoado pelos fantasmas difusos, mas estimáveis, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, do fim da exploração do homem pelo homem, das mãos dadas sem olhar a quem, do amor como irmão gémeo da razão - enfim, da vida como festa a ser fruída.
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Estava eu nisto quando, da minha esquerda, oiço uma voz: "Como está? Já não se lembra de mim? Sou o Varela, o sem-abrigo que, na Rua 4 de Infantaria, dormia e tomava conta, durante a noite, do Citroën Dyane do seu amigo Luís..." "Ó sr. Varela, está bom?", tropecei eu, que o não reconhecera. Já o Varela, que trazia um pacotinho igual ao meu, deitava alpista aos pombos, quando me tocaram o braço direito. Era um senhor andrajoso e afável, sobraçando outro magro pacote de milho, a perguntar se podia sentar-se do outro lado do banco. Que sim, claro, entaramelei eu - e ele sentou-se. E atirou-me: "Posso-me apresentar? Eu sou o Américo. Tive mais cortiça que ninguém e na companhia dos petróleos nada se fazia sem o meu consentimento. Mas isso foram outros tempos..." "Ah", disse eu, no esbugalho de olhos que as pálpebras ainda aguentam, "muito gosto"...
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E então conversámos os três, distribuindo, com a parcimónia dos tempos, o milho pelos pombos, que já nos trepavam pelas calças. Falámos da vida, do destino e da cidade, de vista cansada e hemorróidas, de flores, pinguins ameaçados e economias emergentes. Depois, por sugestão do Varela, cada qual torceu o papo ao seu pombo e lá fomos - naquela ternura inconfessada e a fingir frieza com que o Claude Rains tomou o braço do Humphrey Bogart, a fechar o Casablanca - até ao meu quintal, para uma cabidela alternativa de que só o Américo sabia a receita.
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Foi bom, foi solto, distendido, irresponsável. Os amanhãs não cantaram, mas os ontens não pesaram. No fim, talvez o Américo tenha contido uma lágrima pelo charuto perdido, o Varela pelo charro e eu pelo cigarro, mas não mais do que isso.
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E eu dei comigo a pensar, mas sem gozo nem rancor: como é possível que o empenho generoso de tantos tenha falhado, tão dolorosamente e durante tanto tempo, para agora, em menos de duas décadas, a pura inépcia de um bando mundial de yuppies, que restauraram o blazer (mas também a peúga branca) e cuja cabecinha jamais foi visitada por um qualquer conhecimento que a aritmética não possa exprimir, vir entregar-nos, de bandeja, a liberdade, a igualdade, a fraternidade, o fim da exploração, as mãos dadas sem olhar a quem... etc. A propriedade, não a tendo Proudhon abolido, exauriu-se e, com isso, a igualdade e a fraternidade instalaram-se, de seu natural. A liberdade acabou feita: talvez pelo desinteresse, mas aí está. Exploração, não tem como nem para quê. E eis que a vida virou festa a ser fruída. (Ainda que um tanto à custa dos pombos.) Qual quê! Nem Criação nem Big Bang. Nem Deus nem Darwin. Viva a escola de Chicago!
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«DN» de 12 de Outubro de 2008