quinta-feira, 18 de junho de 2009

Se eu soubesse...

Por Maria Filomena Mónica

SE EU SOUBESSE NA ADOLESCÊNCIA o que hoje sei a minha vida teria sido diferente. Em vez de me ter inscrito num estúpido curso de Filosofia e, alguns anos mais tarde, num prestigiado doutoramento de Sociologia, deveria ter ido para a Faculdade de Medicina. No final, afastaria a hipótese de uma especialidade menor, como oftalmologia, pediatria ou urologia, seleccionando a de cirurgia: não uma qualquer, mas a dos transplantes, embora, mais uma vez, não um tipo de transplantes qualquer, mas o de fígado ou de rins, não me resignando, em seguida, a ser colocada num estabelecimento que não fosse o Curry Cabral.

Há muito que me interesso pelo problema da doação de órgãos. Em Julho, se bem se lembram, escrevi aqui um artigo intitulado «O Meu Cadáver», em que me insurgia não só contra a lei vigente, baseada no chamado consentimento presumido, mas contra a incúria dos serviços encarregues da recolha de órgãos. Eis que, nesta frente, surgem novidades. No ano passado, além do respectivo salário-base, o chefe da equipa de transplantes do Curry Cabral ganhou prémios no valor de muitas dezenas de milhares de euros: segundo a Visão, de 277 mil, segundo o Público de 30 mil euros (1). Quando apanhado, declarou não ser «um mercenário».

Trabalhando num hospital do Estado, com as facilidades inerentes a quem tem vínculo, estes médicos olham a vida como se estivessem na privada, não lhes ocorrendo que existe uma coisa chamada serviço público. A brincadeira pode sair cara ao país. O Dr. Manuel Antunes, de Coimbra, o qual, não só faz transplantes do coração como de rins – sem nunca ter recebido «incentivos» - declarou considerar a sua equipa credora de 2,6 milhões de euros do Estado pelos transplantes realizados desde 2003. De facto, também ele tem família, a quem justamente deseja dar um estilo de vida adequado. Sabendo o que auferem estes cirurgiões, espero que doravante os pais ensinem os filhos a responder à pergunta «o que queres ser quando fores grande?» da seguinte forma: «cirurgião de transplantes hepáticos no Curry Cabral».
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(1) - Qual o motivo que leva os periódicos portugueses a nunca acertarem quanto se trata de números?

Janeiro de 2008

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