Por Nuno Crato
QUANDO SE QUER separar conhaque de negócio ou falar honestamente sem com isso comprometer uma amizade, costuma dizer-se que se é amigo de Sócrates, mas mais amigo ainda da verdade. É um grande dito, que deveria ser tão aplicado como afirmado.
Tal como muitos dos grandes aforismos, a sua origem é obscura. Discute-se se a verdadeira frase, a original, não terá o nome de Platão em vez do de Sócrates. De facto, se recuarmos a 1615, lemos na segunda parte de «D. Quixote», numa carta do cavaleiro dirigida ao seu escudeiro Pança (2-LI), que, «conforme a lo que suele decirse: ‘amicus Plato, sed magis amica veritas’» («conforme é hábito dizer-se, ‘sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade’»). Se recuarmos um século atrás, vemos que, em 1515, Martinho Lutero não conseguia escolher de entre os dois filósofos — na sua obra «De servo arbítrio» escreveu «Amicus Plato, amicus Socrates, sed praehonoranda veritas» («Sou amigo de Platão, amigo de Sócrates, mas mais honrada deve ser a verdade»).
Isaac Newton, no seu caderno de estudante em Cambridge, por ele usado posteriormente para anotações filosóficas, introduz ainda outro filósofo. Em 1664, ou pouco depois, no topo da primeira página do caderno escreve «Amicus Plato amicus Aristoteles magis amica veritas».
Na tentativa de descobrir o dito original pode recuar-se a Platão. Na «República», o filósofo escreve que Sócrates afirmara que «um homem não deve ser mais reverenciado que a verdade». E em «Fédon» exorta a «que pensem na verdade e não em Sócrates».
A lista podia continuar. Alguns eruditos, tais como Henry Guerlac e Leonardo Tarán, escreveram artigos em que discutem longamente as diversas versões desta frase famosa. É interessante que os filósofos de ciência apareçam repetidamente a usá-la, numa ou noutra forma. Francis Bacon é quem a apresenta na maneira mais conhecida. Na sua «Opus majus» (I, vii) afirma que Platão dissera «Sou amigo de Sócrates, mas mais amigo da verdade.»
Em ciência, sobretudo nas chamadas ciências exactas, a ideia central deste dito é praticada todos os dias e todas as horas. Não há matemáticos anti-Gauss nem pró-Pitágoras, tal como não há físicos anti-newtonianos ou pró-Feynman. O alinhamento por perspectivas ou métodos de análise é algo de estranho. Usa-se o que funciona e tenta-se respeitar a verdade. Evitam-se as referências pessoais.
Quando viram o título desta crónica, alguns leitores poderão ter pensado que se tratava de uma alusão a um outro Sócrates. Desiludiram-se. Aqui não há aqui nenhuma mensagem escondida, embora as ambiguidades possam ser engraçadas. É o que aconteceu num episódio passado há mais de 50 anos no Instituto Superior Técnico e que os alunos do matemático Mira Fernandes gostam de contar. Reza assim:
Tinha o famoso professor dado instruções aos estudantes para chegarem a horas ao exame e advertido que não admitiria retardatários. Chegado o dia, deixou entrar os alunos e fechou a porta. Distribuiu os enunciados e sentou-se calmamente, esperando. A primeira meia hora passou e alguém bateu à porta. Visivelmente incomodado, Mira Fernandes perguntou «Quem é?». A resposta ouviu-se do outro lado, abafada, «É um aluno». O professor irritou-se e perguntou «Quem?». Do outro lado, a voz respondeu, ainda mais baixo, «Sócrates». A turma riu-se e o professor abriu a porta dizendo «Sendo assim, faça favor de entrar».
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 8 Jan 11
QUANDO SE QUER separar conhaque de negócio ou falar honestamente sem com isso comprometer uma amizade, costuma dizer-se que se é amigo de Sócrates, mas mais amigo ainda da verdade. É um grande dito, que deveria ser tão aplicado como afirmado.
Tal como muitos dos grandes aforismos, a sua origem é obscura. Discute-se se a verdadeira frase, a original, não terá o nome de Platão em vez do de Sócrates. De facto, se recuarmos a 1615, lemos na segunda parte de «D. Quixote», numa carta do cavaleiro dirigida ao seu escudeiro Pança (2-LI), que, «conforme a lo que suele decirse: ‘amicus Plato, sed magis amica veritas’» («conforme é hábito dizer-se, ‘sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade’»). Se recuarmos um século atrás, vemos que, em 1515, Martinho Lutero não conseguia escolher de entre os dois filósofos — na sua obra «De servo arbítrio» escreveu «Amicus Plato, amicus Socrates, sed praehonoranda veritas» («Sou amigo de Platão, amigo de Sócrates, mas mais honrada deve ser a verdade»).
Isaac Newton, no seu caderno de estudante em Cambridge, por ele usado posteriormente para anotações filosóficas, introduz ainda outro filósofo. Em 1664, ou pouco depois, no topo da primeira página do caderno escreve «Amicus Plato amicus Aristoteles magis amica veritas».
Na tentativa de descobrir o dito original pode recuar-se a Platão. Na «República», o filósofo escreve que Sócrates afirmara que «um homem não deve ser mais reverenciado que a verdade». E em «Fédon» exorta a «que pensem na verdade e não em Sócrates».
A lista podia continuar. Alguns eruditos, tais como Henry Guerlac e Leonardo Tarán, escreveram artigos em que discutem longamente as diversas versões desta frase famosa. É interessante que os filósofos de ciência apareçam repetidamente a usá-la, numa ou noutra forma. Francis Bacon é quem a apresenta na maneira mais conhecida. Na sua «Opus majus» (I, vii) afirma que Platão dissera «Sou amigo de Sócrates, mas mais amigo da verdade.»
Em ciência, sobretudo nas chamadas ciências exactas, a ideia central deste dito é praticada todos os dias e todas as horas. Não há matemáticos anti-Gauss nem pró-Pitágoras, tal como não há físicos anti-newtonianos ou pró-Feynman. O alinhamento por perspectivas ou métodos de análise é algo de estranho. Usa-se o que funciona e tenta-se respeitar a verdade. Evitam-se as referências pessoais.
Quando viram o título desta crónica, alguns leitores poderão ter pensado que se tratava de uma alusão a um outro Sócrates. Desiludiram-se. Aqui não há aqui nenhuma mensagem escondida, embora as ambiguidades possam ser engraçadas. É o que aconteceu num episódio passado há mais de 50 anos no Instituto Superior Técnico e que os alunos do matemático Mira Fernandes gostam de contar. Reza assim:
Tinha o famoso professor dado instruções aos estudantes para chegarem a horas ao exame e advertido que não admitiria retardatários. Chegado o dia, deixou entrar os alunos e fechou a porta. Distribuiu os enunciados e sentou-se calmamente, esperando. A primeira meia hora passou e alguém bateu à porta. Visivelmente incomodado, Mira Fernandes perguntou «Quem é?». A resposta ouviu-se do outro lado, abafada, «É um aluno». O professor irritou-se e perguntou «Quem?». Do outro lado, a voz respondeu, ainda mais baixo, «Sócrates». A turma riu-se e o professor abriu a porta dizendo «Sendo assim, faça favor de entrar».
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 8 Jan 11