quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Os riscos de ler Sandokan

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Por Ferreira Fernandes

NÃO É UM rapaz do meu tempo mas é do meu tempo de rapaz: Emilio Salgari, o pai de Sandokan. Neste 2011 vai voltar a falar-se de Salgari, a sua morte faz cem anos. Eu li-o nas velhas edições da João Romano Torres & Cª., as capas desenhadas com o pirata malaio. Livros de aventuras, pois. Mas também, como alguém já disse, "um rapaz que tenha lido Salgari, quando adulto não pode ser racista." Antigo príncipe desapossado, Sandokan lutava contra os colonialistas ingleses e holandeses e isso, chamar um asiático para herói, era raro num escritor europeu que morreu há um século. Em Os Tigres de Mompracem, o malaio amava e era amado por uma loura de olhos azuis - é bom ler estas obviedades quando se é garoto. Salgari passou a vida a mentir, dizendo que conhecia o mundo que contava - as suas aventuras passearam-se pelos mares do Bornéu, Caraíbas e Faroeste americano, quando, se ele mareou, foi só em barcos de cabotagem pelo Adriático. Mas se essa irrealidade o fazia cometer erros de aparência - o principal companheiro e amigo de Sandokan era um português com o nome improvável de Yanez de Gomera -, a generosidade de Salgari fazia-o acertar no mundo. Há 50 anos, frente à minha casa, em Luanda, um grupo de homens linchou um negro. Eu tinha 12 anos, saltei para a rua e alguém me calou com um murro. Ler Emilio Salgari trazia alguns riscos, mas nunca me arrependi.
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«DN» de 4 Jan 11