Por Manuel João Ramos
DADAS AS CIRCUNSTÂNCIAS, tentei fazer o melhor que pude. Durante dez meses, apresentei diligentemente propostas e requerimentos, li dossiês, alvitrei aqui e ali, votei de modo a ter o menor peso possível na consciência. Recusei o carro com motorista acoplado, mantive-me afastado de recepções, festas e cerimónias, não vesti o típico fato e gravata negros, e não reuni uma vez sequer com banqueiros, empreiteiros ou sindicalistas. Durante dez meses, senti o serpentear dos infecciosos mecanismos de desresponsabilização colectiva que fazem a rotina diária da mais disfuncional, mastodôntica e inimputável autarquia do país.
Excepto num ou noutro caso, restringi o meu contributo propositivo aos problemas de mobilidade e segurança viária da cidade. Perorei o menos possível, numa vã tentativa de evitar que as reuniões do executivo camarário se prolongassem para além das dez horas. E nunca deixei de anotar e desenhar em caderno próprio a viagem que fiz à volta do mundo da administração local lisboeta em 304 dias.
Em todo este tempo, correndo das aulas para as reuniões camarárias, e destas para casa, volta-não-volta às duas horas da madrugada, uma pergunta perseguiu-me continuamente: “O que estou eu a fazer aqui?”.
A interrogação faz o título do derradeiro livro do viajante-escritor Bruce Chatwin. É uma pergunta comum a todo o antropólogo que se aventura em cantos perdidos do mundo onde os usos, os costumes e as maneiras de pensar lhe surgem como profundamente diferentes dos seus. É portanto uma dúvida que eu era já suposto conhecer como chavão existencial.
A primeira vez que ela aflorou o meu espírito foi logo na tarde do dia um de Agosto de 2007, durante o interminável ritual do beija-mão que se seguiu à tomada de posse dos vereadores da autarquia lisboeta. Ao ver e ao sentir a minha mão direita apertada pela do presidente de conselho de administração de um dos maiores grupos financeiros portugueses, senti um calafrio. É que logo naquele momento a pergunta “O que estou eu a fazer aqui?” ganhou uma coloração bem mais chã que a da mera dúvida existencial, porque se lhe associou inevitavelmente uma outra: “O que está ele a fazer aqui?”. “Ele” era um banqueiro português que não considerou ser tempo perdido despender uma tarde abafada de Agosto marcando presença na longuíssima tomada de posse de um executivo camarário de curta duração.
Nunca mais voltei a cruzar-me com o banqueiro, nos 10 meses em que estive vereador da CML, mas a sua sombra pessoal e institucional nunca deixou de pairar sobre o executivo camarário. Era uma sombra crua que me dizia em surdina “Que estás tu a querer fazer? Quem manda aqui sou eu”.
Ao fim de dez meses, conformei-me: de facto, não estava ali a fazer nada.
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