sábado, 6 de setembro de 2008

Viagem de fim de férias

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Por C. Barroco Esperança
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COM O CÉU ENEVOADO e as nuvens a anunciarem borrasca, no penúltimo dia de Agosto, dei um passeio por velhas aldeias que neste mês voltaram à vida, sobretudo nos dias de festas canónicas, e já se encontram de novo desertas.
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Saí de Almeida para comprar umas bolas de carne, na Reigada, para enfeitar a mesa no dia da Feira Nova, em 1 de Setembro, destinadas a parentes e amigos que ainda vêm. O forno estava alugado aos de Vilar Formoso para confeccionar doces para a festa do dia seguinte. Não faz mal, já não há dias santos, amanhã é domingo, coze o que hoje devia. O Inferno foi extinto, urge ganhar o pão de cada dia, ficaram as bolas encomendadas.
Passei por Vilar Torpim, não enxerguei vivalma. A aldeia tinha ar de ter sido habitada em época recente mas estariam os autóctones fechados em casa, quiçá receosos ainda das lutas liberais.
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Tomei café em Figueira de Castelo Rodrigo. Havia afinal gente nos restaurantes, jovens nas esplanadas dos cafés e repuxos a esguichar num lago que há-de ter surgido para um autarca ganhar eleições. Havia vida na sede de concelho, até crianças a quem os pais hesitaram entre o gelado e o tabefe acabando por aceder ao pedido e desistir do desejo. As vilas ainda se mantêm graças à hemorragia das aldeias e aos empregos municipais.
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Passei pelo convento de Santa Maria de Aguiar, por Nave Redonda, que me pareceu fechada e parei junto à barragem de Santa Maria de Aguiar um razoável lençol de água vulgar apesar da santidade do nome que não evita a conversão em charco ou a seca em estios mais cálidos.
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Em Almofala entrei na igreja onde duas piedosas mulheres que mudavam as flores aos santos me acenderam as luzes e dois homens desmanchavam os andores de uma festa recente para os despacharem para a sacristia. Não cuidei da destruição castelhana em Outubro de 1642 e passei por Escarigo, cujo martírio na Guerra da Restauração foi maior, sem me deter na igreja matriz cujo tecto e talha dourada valem a viagem. Foi José Saramago, em «Viagem a Portugal», que me alertou para essas jóias da arte sacra numa aldeia que guarda memórias e afectos da minha juventude.
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Compadeci-me da velhinha de olhos vagos, com a pele curtida de muitos sóis, absorta, indiferente à passagem do automóvel, perscrutando no horizonte o futuro que lhe resta ou recordando o passado que lhe coube. Estava só, na soleira da porta, sem raios de sol que a aquecessem, sentada, com o céu carregado de nuvens.
Alguns quilómetros depois, atravessei a Vermiosa. Apenas um velho, também só, via o tempo passar do banco de pedra onde tinha a bengala que, decerto, lhe serviria de apoio na volta. Mais à frente jazia na terra um cão escanzelado, imóvel, resignado, indiferente às pulgas e carraças, se acaso as tinha, e milagre era não tê-las.
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Dos dois seres vivos que vi na aldeia, dantes pejada de gente, o cão, rafeiro sofredor, foi a mais eloquente metáfora dos que teimam em ficar nas aldeias que outrora foram um alfobre humano e são hoje um cemitério de recordações.
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Nem dei por passar em Malpartida ao voltar a casa. Esperei pela Feira Nova, que ainda juntou gente, e parti logo.
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NOTA: outras crónicas do mesmo autor - no blogue Ponte Europa