quarta-feira, 10 de setembro de 2008

GERTRUDE, o médico e o monstro

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Por Manuel João Ramos
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Gertrude em Bordéus
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POUCOS PORTUGUESES SABEM o que é o GERTRUDE. E menos ainda sabem como funciona e para que serve.
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Em breves palavras: o GERTRUDE é um sistema de controlo centralizado de gestão do trânsito, implantado na cidade de Lisboa há cerca de vinte anos. É basicamente um software que gere o sistema de semáforos do centro da cidade e gere os fluxos automóveis, através de sensores implantados no pavimento ligados a uma estação central de controlo viário. Foi concebido por uma empresa de Bordéus, e tem sido gerido em parceria pelo departamento de tráfego da CML e pela EISA-TESIS, uma firma portuguesa que detém o monopólio da semaforização de Lisboa (por sinal, a mesma que implantou o sistema de radares fixos da cidade).
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O GERTRUDE tem sido criticado por contribuir para o estado geral de caos do trânsito da cidade, e para o ambiente de insegurança rodoviária que resulta de uma circulação automóvel feita em velocidade excessiva.
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O que quase ninguém sabe é que: 1) o sistema é flexível, 2) o seu afinamento actual não é imputável à empresa francesa, mas resulta de directivas políticas assentes numa visão arcaica da mobilidade urbana, e 3) a empresa tem, desde há vários anos, insistido em convidar – sem qualquer sucesso até hoje - os sucessivos presidentes da CML e seus vereadores do trânsito, bem como as administrações da Carris, a visitar Bordéus, para que uns e outros possam perceber como o sistema pode funcionar com outro tipo de directivas.
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Bordéus é uma cidade média francesa cujo município, como muitas outras autarquias europeias, apostou na redução drástica do acesso do automóvel privado às zonas centrais da malha urbana. Fê-lo criando parques de estacionamento na periferia, introduzindo linhas de eléctrico que, como um metro de superfície, ocupam o espaço antes cedido ao automóvel nas principais vias da cidade, e alterando o afinamento do GERTRUDE de modo a dar total prioridade ao transporte colectivo (eléctrico e autocarros) e ao trânsito de peões e bicicletas, em detrimento do transporte automóvel privado.
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O resultado foi o aumento exponencial da qualidade de vida na cidade, uma profunda requalificação urbanística, uma economia de transportes muito mais sustentável, e uma impressionante diminuição da poluição atmosférica e acústica.
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Eu decidi fazer aquilo que nenhum vereador do trânsito da CML e nenhum administrador da Carris alguma vez fez: fui a Bordéus avaliar o sucesso do sistema.
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E regressei impressionado e profundamente desanimado. É que, apesar de Bordéus partilhar com Lisboa o software GERTRUDE, o nosso problema não é de natureza técnica, mas política. Por isso, o paraíso de mobilidade urbana que é Bordéus não é transplantável para Lisboa – não porque o afinamento do GERTRUDE não possa produzir os mesmos resultados nas duas cidades, mas porque o provincianismo e falta de visão dos nossos políticos municipais irá continuar a impedir a mais que urgente modificação do sistema de gestão de trânsito cá implantado.
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Ao mesmo tempo que Lisboa se endividava para construir vias rápidas e túneis que garantem a invasão diária de mais de meio milhão de veículos à cidade, Bordéus colocava linhas de eléctrico protegidas por muretes que bloqueiam quase completamente o acesso dos automóveis ao centro urbano.
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Não estou certo que a recusa dos autarcas e transportadores lisboetas em aceitar o convite da empresa GERTRUDE para visitar Bordéus se deva a problemas de ordem financeira. Mas, para que esse pretexto não seja publicamente invocado, desde já me ofereço para participar na compra de um bilhete de avião Lisboa-Bordéus, à especial atenção do presidente da CML.
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NOTA: Este post é uma extensão do que foi afixado no Sorumbático, pelo que eventuais comentários devem ser lá afixados [v. aqui].