segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Nas entrelinhas de Machado

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Por Nuno Crato
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É QUASE IMPOSSÍVEL PASSAR HOJE por uma livraria brasileira sem notar o destaque dado a um escritor que muitos em Portugal apenas conhecem de nome. Não se trata de Jorge Amado nem de Graciliano Ramos. O homem que tem obras em todas as vitrines usava óculos e bigode. Era filho de uma lavadeira açoriana e de um pintor mulato, por sua vez filho de escravos. Chamava-se Machado de Assis (1839–1908) e há uma quase unanimidade da crítica em apreciá-lo como o maior escritor de sempre da grande nação sul-americana. Harold Bloom considera-o «até hoje, o supremo escritor de origem negra». Agora, que se assinala o centenário da sua morte, ocorrida a 29 de Setembro, há escaparates inteiros com os seus livros. Há exposições nas bibliotecas. Por toda a cidade do Rio de Janeiro, onde Machado nasceu, viveu e morreu, há cartazes e bonecos de pano que o representam e chamam a atenção para as suas muitas reedições, biografias e estudos.
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Machado viveu momentos de grandes mudanças. Viveu o fim da escravatura no Brasil e a implantação da república. Protagonizou a transição do romantismo literário para o realismo. Nesse percurso, criticou o romance Primo Basílio, de Eça de Queirós, vindo-se depois a arrepender de outras críticas ao escritor português. Na realidade, Machado foi homem de poucas polémicas, preferindo intervir pela subtileza da sua criação literária — onde há muito a ler, nas linhas e nas entrelinhas.
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Entre as formas de homenagem que os Brasileiros escolheram há a reposição de uma peça de teatro quase desconhecida — a última do escritor. É a Lição de Botânica (1908), uma farsa em que um cientista rigoroso tenta evitar uma jovem enamorada, por achar que não há espaço no seu coração para dois amores. Dividido entre a ciência e a paixão, queria resistir à segunda para melhor se dedicar à primeira. Imagina-se que perderá a batalha.
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Na Casa de Ciência da Fundação Instituto Oswaldo Cruz, um extraordinário estabelecimento de investigação científica na periferia do Rio de Janeiro, a farsa é representada para deleite dos espectadores jovens. No final discute-se a visão de Machado, que insistia na necessidade de concórdia entre a razão e a emoção.
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Se esta peça de teatro é uma das obras menos conhecidas de Machado, já a segunda discutida pelos brasileiros neste âmbito de comentário científico é uma das mais lidas — e uma das mais consideradas. Trata-se do conto ou novela O Alienista (1882), em que um alienista, ou seja, um médico de loucos, resolve tratar por métodos pretensamente científicos todos os habitantes da sua cidade. Ao longo das cinquenta páginas da ficção, Machado ridiculariza a pretensão cientifista então em voga no Brasil.
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Os positivistas brasileiros, que tiveram um papel determinante na implantação da república em 1889, eram seguidores do filósofo francês Auguste Comte e pretendiam gerir a sociedade e moldar a mente humana por métodos ditos científicos. Era a ambição de tudo submeter ao racionalismo extremo, que transforma o desejo de progresso na recusa da diferença.
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Se o leitor não conhece Machado de Assis, O Alienista é uma obra excelente para começar. Daí siga directamente para os romances mais conceituados: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Mas se quer uma opinião pessoal, não perca, sobretudo, o extraordinário Memorial de Aires.

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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 27 de Setembro de2008