sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Passatempo Mário Lino (31 Out 08)


Mário Lino, o verdadeiro Oráculo do Jamais...

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A felicidade das doenças

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Por Alice Vieira
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OS AUTOCARROS são o ponto de encontro de todas as mulheres doentes de Lisboa.
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Mesmo que anteriormente vendam saúde, chegam ali e zás!, ele é o reumático, ele é o fígado, ele são os rins, ele é o coração, ele são os nervos.
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Não há como uma bela doença (sobretudo se acompanhada por uma série de análises “que nunca dão nada, mas eu é que me sinto”) para estabelecer uma onda de solidariedade entre quem vai sentada e quem vai de pé. Não sei porquê, mas os homens nunca entram nesta anedota. Olham para elas em silêncio, às vezes encolhem os ombros, mas não mais do que isso. Ali, doença é património feminino.
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E os autocarros transformam-se numa espécie de sala de espera de um centro de saúde ambulante, onde o médico nunca chega e a consulta acaba por ser desmarcada, e cada uma desce na sua paragem — senão curada, pelo menos muito mais reconfortada.
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O pior é quando, no meio de toda a desgraça, surge alguém saudável - ou, pelo menos, relativamente saudável pois, como logo alguém se encarregará de explicar, saudável, saudável nunca se está.
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Foi o que aconteceu comigo, há dias, na carreira do 54. Eu não queria ser desmancha-prazeres, palavra que não queria, mas o dia tinha-me corrido bem, tinha conseguido passar uma manhã inteira sem e-mails apocalípticos sobre a crise, sem correntes tipo e-se-não-mandares-isto-a-80-amigos-engordas-20-quilos-a-tua-melhor-amiga-rouba-te-o-homem-e-o-Obama-apanha-um-balázio, encontrara um amigo que não via desde a minha juventude e me enchera de mimos — enfim, doenças era aquilo que nem me passava pela cabeça.
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De resto, talvez por ter vivido muitos anos entre gente mórbida e sempre à beira da morte (e que, evidentemente, morreu toda para lá dos 90), para quem o maior insulto era alguém dizer-lhes “está hoje com melhor cara!” - nunca tive paciência para quem passa a vida a lastimar-se.
E, não sendo eu sequer do género de meter conversa em autocarro ou táxi, dei por mim a dizer “muitas vezes as doenças estão é na nossa cabeça.”
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Para abreviar a história, e porque os caracteres a que tenho direito se estão a aproximar do limite, digo apenas que saí duas paragens antes, para a discussão não azedar o ambiente mais do que ele já estava: eu cometera o sacrilégio de abalar a profunda convicção de todas elas, de que só na infelicidade se pode ser feliz.
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E, se olhar matasse, apesar de toda a minha saúde, eu não tinha saído dali viva.

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«JN» de 24 de Outubro de 2008
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Este texto é uma extensão do publicado no Sorumbático [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Prémio do passatempo «Acontece...» de 28 Out 08

Passatempo-relâmpago a propósito de Jorge Amado

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Quanto maior, melhor

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Por Nuno Crato
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JÁ PENSOU COMO SERIA O MUNDO se os seres humanos tivessem o dobro da altura? Poderia pensar-se que nada de especial aconteceria, pois tudo seria construído nessa proporção. Mas isso não é verdade. Não há forma de o nosso corpo aumentar uniformemente. Se a nossa altura fosse multiplicada por dois e o mesmo acontecesse com a largura, a cintura e outras medidas tiradas com fita métrica, a superfície da nossa pele teria de aumentar quatro vezes e o nosso volume oito. Com o nosso volume multiplicado por oito, o mesmo aconteceria ao nosso peso. Então, para os ossos terem a resistência necessária, que é função da área do seu corte transversal, teriam de ser proporcionalmente mais grossos e pesados. Não há maneira de tudo aumentar na mesma proporção. O factor multiplicativo que é aplicado no comprimento aparece ao quadrado para a área e ao cubo para o volume. O expoente é dois para a área e três para o volume.
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Um dos primeiros a perceberem estes factos foi Galileo Galilei. O sábio italiano notou que os animais mais pequenos têm uma estrutura óssea proporcionalmente mais leve. Sabe-se, por exemplo, que os ossos de um gato são aproximadamente 7% do seu peso, os de uma pessoa 8,5%, os de um cavalo 10% e os de um elefante 13%. O peso dos ossos aumenta mais que proporcionalmente com o peso do animal.

Já no século XX, o suíço-americano Max Kleiber estudou vários outros aspectos da fisiologia animal notando, por exemplo, que o metabolismo dos animais cresce menos que a sua massa, com um expoente de 0,75 desta última variável. Como resultado, um elefante com 5 toneladas tem uma taxa metabólica cerca de 5,6 vezes a de um cavalo com meia tonelada. Ou seja, apesar de ter dez vezes o peso do equídeo, gasta apenas 5,6 vezes a energia que este último despende.

O mesmo tipo de análise tem sido recentemente aplicado às sociedades humanas. Uma nova geração de investigadores inspirados na teoria matemática dos grafos e no estudo físico das redes tenta analisar a maneira como algumas coisas mudam com a dimensão das sociedades e com as interacções entre os seus elementos.

Há equipamentos que ganham economias de escala com a dimensão dos aglomerados humanos. É o caso do número de estações de gasolina, que cresce menos que proporcionalmente com o tamanho das cidades (expoente de 0,77). É também o caso do comprimento total de cabos eléctricos (0,87) e da superfície das estradas e ruas (0,83). Tudo isto se percebe, pois esses equipamentos passam a ser usados de forma mais eficaz.

Mas há outros elementos que crescem numa escala superior. Muito recentemente, Luís Bettencourt, um físico português actualmente em Los Alamos, nos Estados Unidos, e os seus colegas, verificaram que as grandes cidades são os maiores geradores de investigação e de invenções com sucesso. O número de patentes e de inventores cresce com o tamanho dos agregados humanos de uma maneira mais que proporcional, com um expoente de cerca de 1,25.
Na semana passada, Samuel Arbesman, um físico de Harvard, e dois colegas seus de Cornell publicaram um modelo matemático de rede que permite explicar este fenómeno. Imaginam as pessoas como nós de uma rede e a produtividade de cada pessoa como função das conexões com outras, do número de pessoas a dada distância e de uma produtividade média por conexão. Com este simples modelo e com alguns pressupostos muito básicos mostram que em redes maiores, correspondentes a cidades maiores, as conexões entre pessoas mais afastadas, que são as mais produtivas em termos criativos, são mais prováveis. Para a investigação e o desenvolvimento, parece que quanto maior melhor.

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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 25 de Outubro de 2008 (adapt.)
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Este texto é uma extensão do publicado no Sorumbático [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

domingo, 26 de outubro de 2008

Justiça e sociedade em Portugal, 2006 - Algumas reflexões

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Por António Barreto
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DIZ-SE QUE OS “POVOS TÊM OS GOVERNOS QUE MERECEM”. Não falta quem pense que os governantes são, nas qualidades e nos defeitos, iguais aos governados. Houve um presidente da Televisão portuguesa que, perante críticas à qualidade das emissões, assegurou a opinião pública que a televisão era como o povo, nem melhor, nem pior. É frequente referir-se a condição dos dirigentes políticos como sendo igual à dos cidadãos. Já ouvi, nestes últimos anos, pessoas qualificadas garantir que os magistrados não são mais do que homens e mulheres como os outros. E já me foi dito, a mim e a milhares de telespectadores, que “os portugueses têm a justiça que merecem”.

Eis afirmações, próximas daquilo que se chama o “senso comum”, que merecem breve análise e comentário. Não concordo com nenhuma delas. A ideia de que os dirigentes são pessoas iguais às outras, que têm os mesmos limites e as mesmas fraquezas, assim como os mesmos talentos e qualidades, pode ser interessante, do ponto de vista eleitoral ou demagógico. Quem quer seduzir, procura ser igual, para ser amado. Ou, pelo menos, afirma ser igual, mesmo quando assim não pensa. Mostra humildade, mesmo que não seja sincera, ao mesmo tempo que parece promover ou louvar o seu interlocutor. Na verdade, quem assim se comporta está geralmente a reconhecer as suas fragilidades e a sua impotência. Pior ainda: a desculpar-se, com a sociedade, pelos seus erros. A culpar os níveis gerais de cultura, instrução, eficiência, consciência e civismo pelos seus próprios limites. A imputar aos “outros”, ao “sistema” ou ao “país” as responsabilidades pela sua resignação, pela sua falta de energia ou pelo seu conformismo.

Estas ideias decorrem de uma espécie de realismo determinista. Ou antes, reclamam-se elas próprias desse realismo que consiste em estabelecer que os indivíduos e as suas capacidades são produtos das sociedades em que vivem. Os seus defensores querem fazer-nos admitir que os sistemas sociais, as organizações colectivas e os indivíduos são o que são as sociedades. Que seria improvável que, numa sociedade atrasada e inculta, aparecessem dirigentes esclarecidos. Que, de igual modo, numa sociedade pobre e eventualmente mal organizada, não é de esperar que os sistemas de educação, de justiça ou de saúde, tenham desempenho superior, em qualidade, em prontidão e em humanidade, ao da sociedade em geral.

Este pensamento, se assim se pode chamar, é a negação do papel de dirigente, de quadro superior ou de autoridade. Com efeito, o que se pede a um dirigente é justamente que seja capaz de pensar, saber e fazer melhor do que outros, do que muitos outros. Pede-se a um dirigente que conheça os problemas, que seja capaz de encontrar as soluções, que preveja a evolução das tendências presentes e que prepare o futuro. Pede-se-lhe que, na sua acção e no seu comportamento, ajude a elevar os outros. Pede-se-lhe que seja melhor do que os outros. Pede-se-lhe que se comporte como um dirigente, como membro de uma elite, como alguém em quem podemos confiar. Não se lhe reconhece um valor ontológico especial, nem se lhe atribuem direitos diferentes dos seus concidadãos, mas pede-se-lhe que dê o exemplo e que nos ajude a sermos melhores.

Esta noção de dirigente, ou de elite, tem, evidentemente, os seus riscos. Se insistirmos na ideia, se exageramos na atribuição de qualidades e funções aos membros de uma elite, depressa chegaremos à crença de que existem ou podem existir seres iluminados e vanguardas omniscientes cujo papel consiste em dirigir os seus concidadãos. Os portugueses tiveram aliás, no século vinte, as experiências das vanguardas e a do iluminado. Esses percalços, se assim se podem designar, não bastam para arredar a ideia que defendo do dirigente. Na verdade, com as liberdades de pensamento, opinião, expressão e associação; com a realização de processos democráticos regulares e previsíveis; e com a participação de uma imprensa livre e independente, as tentativas de erigir vanguardas ou de entronizar iluminados têm poucas possibilidades de se realizar. As experiências portuguesas que vingaram, por pouco ou muito tempo, recorreram ou tentaram recorrer ao despotismo e à força, não à legitimidade e à legalidade. Essas experiências nunca foram legitimadas pela opinião livre ou foram até por ela rejeitadas.

Vêm estas breves reflexões a propósito do tema que pretendo abordar aqui. Em poucas palavras, gostaria de defender a ideia de que os portugueses não têm a justiça que merecem. Que os magistrados devem procurar ser melhores do que nós, os cidadãos. Que os responsáveis pelo sistema judicial devem fazer todos os esforços para funcionar melhor e de modo mais competente do que a sociedade em geral. Que a justiça deve ser pronta, em contraste com a morosidade e a falta de pontualidade dos portugueses em geral. Que os magistrados devem procurar sempre ser um exemplo de ponderação e independência. Que os tribunais devem ser, nesta sociedade tão frequentemente agressiva, locais de humanidade. Que os magistrados, pela sua excepcional posição na vida colectiva, devem ter sempre presentes que, ao mesmo tempo que são responsáveis e independentes, têm de ser observados e têm prestar contas. Que o conjunto dos chamados “parceiros” ou “operadores” do sistema judicial deveriam ter mais claramente a noção de que a justiça é o mais nobre bem da vida colectiva e que, por esse motivo, deveriam despender mais esforços para o bem comum e o interesse geral e menos para a defesa dos seus corpos profissionais e sociais. Que os políticos deveriam ter mais responsabilidades e mais intervenção no cuidado que merece o sistema de justiça, mas que deveriam também ter menos apetites relativamente ao controlo ou poder a exercer sobre os magistrados, os advogados, as polícias e os oficias de justiça. Que as autoridades e os partidos políticos deveriam perceber que, com uma justiça deficiente como a nossa, a liberdade e a democracia, se encontram limitadas; o mercado livre fica amputado; e os direitos e deveres dos cidadãos cerceados. Em resumo: gostaria de defender a ideia de que a justiça tem de ser em Portugal melhor do que a sociedade. Tem de ser um exemplo. E tem o dever de nos ajudar a melhorar a nossa vida colectiva. E a sermos melhores.

Não vejam nestas palavras apelos ingénuos à virtude e à bondade. Nem à solidariedade. Não creio que essas qualidades dependam da justiça. Desta, pelo seu funcionamento pronto e escrupuloso, depende o respeito de uns pelos outros; depende a salvaguarda dos direitos e dos deveres; depende a responsabilidade de cada um; depende, numa palavra, a decência da nossa vida em comum. Que os homens e as mulheres se respeitem por virtude ou por receio da justiça, é-me indiferente. O que quero é que se respeitem. E isso, só o direito e a justiça podem assegurar.

Tal como só o direito e a justiça podem obstar a que o poder abuse e a que os poderosos exagerem. Todos os poderes, sem excepção, tendem a crescer. Todos os poderosos, sem excepção, procuram mais. Todas as autoridades, sem excepção, se esforçam por aumentar e durar. Não conheço, na história, exemplo de Estado, partido, empresa ou organização que, voluntariamente, tenha querido limitar-se, reduzir ou distribuir o seu poder. Ora, os mais eficazes instrumentos de contenção do poder e dos poderosos são, uma vez mais, o direito e a justiça. A moral pode desempenhar um papel. Tal como a luta política. E a liberdade dos cidadãos. É certo. Mas são entidades desarmadas, quantas vezes impotentes! Com real eficácia, só conheço o direito e a justiça.

É possível, nas palavras que antecedem, detectar algum pessimismo. Ou uma visão muito insatisfeita com o estado da justiça em Portugal. É verdade. Há muitos anos, desde a fundação da democracia e desde o estabelecimento de uma ordem constitucional fundada na legitimidade, que se espera por um melhoramento sólido e considerável da justiça. O que não tem acontecido. Houve mudanças, mas foram poucas e lentas. Houve reformas, mas foram frágeis. Houve leis, mas foram excessivas em número e reduzidas em qualidade e eficácia. Muito se fez, dirão seguramente todos os que tiveram responsabilidades no sector. Não os desminto. Mas acrescento: muito menos do que precisávamos. Muito menos do que era necessário. A ponto de se ter a impressão de que a justiça, por não ter mercado, por não ser privatizável, por não produzir dinheiro, por não gerar publicidade, por não ser vistosa e por não ser um bem de consumo de massas, ficou para trás nas atenções dos legisladores dos governantes.

Quantas vezes se ouviu e ouve falar da crise da justiça? Parece que a justiça vive obrigatoriamente em crise. Já há mesmo quem diga que o estado normal da justiça é o de crise. Ou até quem negue simplesmente tal estado. A verdade, a meu ver, é que a justiça se desenvolveu menos, mais devagar e com mais imperícia do que outros sectores de vida colectiva. Adaptou-se tosca e lentamente à democracia, à integração europeia, à ascensão dos meios de comunicação de massa, ao mercado, à empresa capitalista, às novas tecnologias de informação e ao crescimento exponencial da litigância em Portugal.

Será necessário mencionar casos concretos? Creio que estão na mente de todos. As sucessivas alterações de códigos revelam uma instabilidade indiscutível. A fuga dos agentes económicos à resolução judicial dos seus conflitos é um sinal seguro de ineficiência. As risíveis vicissitudes do segredo de justiça são sinais indiscutíveis de desordem. As reformas falhadas, como, recentemente, a das férias judiciais, ou, antes, a da assistência judicial, são sinais de falta de perícia e de esforço legislativo guiado sobretudo pela política. A morosidade processual é de tal modo crónica que quase deixou de ser motivo de indignação. Os índices de demora, assim como as taxas de prescrição, altos em ambos os casos, revelam, de modo flagrante, uma ineficiência tal que põe em crise o fundamental direito à justiça. Alguns processos de investigação ficarão numa triste memória: nuns casos, avultam processos de interrogatório e de identificação discutíveis e condenáveis; noutros, levam-se a cabo processos de escuta, gravação e armazenamento de conversas telefónicas, próprios de países de opereta. A reorganização do mapa judicial, de que agora se fala com mais insistência, arrastou-se muito para além do aceitável em processos complexos como este.
Finalmente, estudos recentes mostraram vários fenómenos que merecem atenção. Na opinião pública, tem crescido a sensação de que existem duas justiças, a dos poderosos e a dos fracos. Como se têm avolumado os sentimentos de desconfiança dos magistrados. A qualidade da imagem pública do juiz tem-se degradado, ou porque é responsabilizado pelos defeitos do sistema; ou porque surgiram repetidos exemplos de sobranceria; ou porque certos gestos de cariz sindical lhe retiraram uma indispensável dignidade independente.

Temos de nos interrogar sobre a persistência de crises na justiça. Sobre as dificuldades de realizar reformas neste tão importante sector da vida colectiva. E sobre a passividade de tantos que, em teoria, têm a responsabilidade de zelar pelo bom funcionamento, pela constante melhoria e pela eficácia da justiça. Há anos que o tema me interessa. A mim e a tantos outros. E sei que não é fácil encontrar respostas satisfatórias. O assunto é realmente difícil.
A começar pelo facto de não ser simples definir o conceito de crise da justiça. A maior parte das opiniões publicadas refere-se-lhe frequentemente, mas cada um parece ter ideia diferente dos contornos dessa crise. E não esqueçamos que há também quem negue a simples existência de uma crise. Por definição, dizem alguns, a justiça está sempre em crise, em transe, em mudança e em transformação, fenómenos aliás que fazem parte da etimologia do sentido, se assim se pode dizer.
Para as necessidades desta exposição, aceitemos que a crise da justiça se reflecte na morosidade; numa relativa perda de confiança pública, o que leva a que em certos sectores se “fuja” aos mecanismos da justiça; na paralisia relativamente às mudanças; na deficiente definição de responsabilidades; na insuficiente relação de proximidade entre a justiça e as entidades democraticamente legítimas; na ausência de prestação de contas à sociedade; na instabilidade de algumas instituições indispensáveis à investigação e à instrução; e na dificuldade processual ou fundamental na investigação de certos domínios, como o da corrupção. Como se poderá deduzir deste breve elenco, um aspecto central desta crise reside, a meu ver, na relação entre a justiça e a política.

São difíceis as relações entre a justiça e a política. O legislador está pouco atento e raramente se apercebe das distinções entre funções. A voracidade dos partidos relativamente à Procuradoria-Geral de República é um sinal de mal-estar durável. As relações entre as duas magistraturas são frequentemente difíceis e o seu equilíbrio necessita de esclarecimento. O peso e o âmbito de competências da Procuradoria no sistema judicial português são por muitos considerados exagerados e há muito que se impõe uma revisão do seu estatuto. Mas os partidos políticos, o legislador e os executivos, parecem recear tal iniciativa ou preferem o imobilismo que pode eventualmente servir os interesses dos governos. A separação de carreiras das duas magistraturas, assim como a definição das respectivas autonomias, merecem um reexame, eventualmente uma revisão, mas quem tem o poder para o fazer parece preferir esquivar a dificuldade. As relações entre as magistraturas e a designada legitimidade democrática deveriam igualmente ser revistas, na procura de um reforço dessa ligação. Mas também aqui parece haver conformismo. Uns dirão que são as magistraturas a defender os seus privilégios, outros dirão que são o legislador e o executivo que são tímidos. A verdade é que ninguém dá sinais claros de querer debater e esclarecer tão sério problema. A independência dos magistrados, assim como a autonomia das grandes instituições judiciais, parece terem sido confundidas com autogestão. Este facto conduziu a uma indefinição das responsabilidades na área da justiça, situação que, na minha opinião, explica parte da falta de iniciativa reformadora ou, por outras palavras, parte da enorme dificuldade em reformar a justiça. A relativa passividade do Parlamento e a retracção dos ministros da justiça são sinais dessa falta de definição de responsabilidades. Houve mesmo já um ministro da justiça que, por causa da independência dos magistrados e da autonomia das instituições, declarou ser apenas “ministro das prisões e dos códigos”. É pouco, como se pode imaginar.

Será assim tão importante esta relação entre a justiça e a política? Não creio ser necessário argumentar longamente. A evidência é total. Da política dependem os códigos, os orçamentos, as leis, os recursos, os regulamentos e a organização. Quase tudo. Menos, espera-se, a competência para julgar e investigar. Além disso, e é esse o meu ponto, da política e da sociedade dependerá também a capacidade reformadora e modernizadora.

Tenho para mim que, deixado a si próprio, nenhum sistema social, administrativo ou político se reforma ou evolui favoravelmente. Pelo contrário, o que garante a evolução e a reforma são os impulsos externos. Na economia, é a concorrência. Na ciência, a abertura e o diálogo. Na política, a competição eleitoral. Na cultura, a emulação e a crítica. Na saúde e na educação, os estímulos podem ser de vária ordem, a abertura, a ciência e a concorrência. Em todos eles, indispensáveis são sempre a informação e o debate permanente na opinião pública. E na justiça? Eis uma questão interessante. Para a justiça, não se pode recomendar a concorrência, nem a competição. A justiça não é privatizável. A opinião pública tem pouco efeito, até porque a justiça, na nossa tradição continental, reveste formas majestáticas e distantes. A democracia directa, por exemplo através da eleição de magistrados, parece uma longínqua miragem e nem sequer se afigura como uma solução razoável. A ingerência directa das autoridades políticas está fora de questão, pois o passo seguinte seria a perda de independência dos magistrados. Quer isto dizer que só há, a meu ver, duas soluções. A primeira, a que mais força parece ter tido em Portugal, consiste em fazer com que o sistema de justiça seja o mais fechado possível, que não receba estímulos externos e que apenas tenha de prestar contas a si próprio ou às suas corporações. A segunda, que infelizmente se afigura pouco provável, é a que consiste em criar mecanismos de abertura que não ponham em perigo a independência dos magistrados, mas que abram o sistema, que o façam penetrar por impulsos externos e que o obriguem a prestar contas à sociedade. Uma alteração radical da composição dos Conselhos Superiores seria, por exemplo, um caminho. A presença periódica no Parlamento dos responsáveis pelos Conselhos Superiores, pelos Tribunais Supremos e pela Procuradoria-geral da República, seria também uma solução para a necessidade de prestação de contas perante uma entidade democraticamente legítima. Uma redefinição, igualmente radical, do segredo de justiça, seria outra via. Uma nova relação com a opinião pública, nomeadamente através da imprensa e da comunicação, seria outra.

É talvez ainda cedo para formarmos uma opinião fundamentada sobre o pacto assinado, a semana passada, entre os dois principais partidos parlamentares, a propósito da justiça e de algumas das reformas que se anunciam. Mas já é possível emitir algumas observações. Apesar de ser desfavorável à ideia de “pacto de regime”, podemos olhar para este acordo usando de uma velha figura jurídica: “a benefício de inventário”. Os acordos deste tipo, com esta ou outra designação, podem constituir uma perversão das tradições parlamentares. Ou configuram, muitas vezes, a impotência da maioria e a falta de carácter político da oposição. Mas, para que seja outra coisa e para que nos permita ter uma visão mais positiva do seu alcance, é necessário ver, caso a caso, os resultados legislativos desse acordo, assim como a gestão prática, administrativa, política e financeira que decorrerá do estipulado em tal acordo. Só nessa altura poderemos, em honestidade, avaliar a sua bondade e o seu desígnio.
Será que este acordo tem como objectivo, por exemplo, assegurar mais estabilidade e mais continuidade nas estruturas e na organização da investigação? Poder-se-á, a partir de agora, assistir a uma abertura das estruturas judiciais, de tal modo que a sociedade tenha mais influência na sua organização? É legítimo esperar que já o próximo orçamento de Estado traduza a relevante importância deste sector que, único, mereceu um acordo partidário inédito? Quer este pacto significar que o governo, o seu apoio parlamentar e até uma vasta maioria de deputados decidiram finalmente colocar a justiça no topo das suas prioridades e das suas preocupações? Poderá concluir-se que, finalmente, a assembleia legislativa vai assumir a plenitude das suas competências? É razoável alimentar a esperança de que, dentro de pouco tempo, veremos serem aprovadas as novas regras processuais que permitirão reduzir consideravelmente os prazos e diminuírem os atávicos atrasos da justiça portuguesa? Assistir-se-á a um esclarecimento das regras e da prática do segredo de justiça, de modo a estabelecer um novo equilíbrio entre as necessidades processuais e a salvaguarda dos direitos dos arguidos e dos assistentes, assim como as exigências de uma informação aberta e rigorosa?

Como se pode ver por esta breve lista de perguntas, qualquer avaliação fundamental, e não apenas política e partidária, do acordo parlamentar assinado pecará por prematura. Até o aspecto positivo que mais merece ser saudado, a previsão de provas públicas para o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e aos tribunais de Relação, deve esperar pela respectiva regulamentação e prática, a fim de ser melhor avaliado. Mas convêm não esquecer que matérias decisivas como o processo civil, a composição dos Conselhos Superiores e a redefinição da autonomia do Ministério Público ficaram fora do acordo. Não sabemos se apenas por impossibilidade de entendimento ou se estes temas não fazem parte das intenções do executivo e do legislador. Vamos, pois, esperar.

Mas considero um mau sinal o facto de os dois partidos não terem discutido ou não se terem entendido sobre um tema de especial relevo e grave urgência: o combate à corrupção política, autárquica, empresarial e desportiva. Este é um dos problemas mais candentes da actualidade, para o qual nem a justiça nem a política democrática têm sabido encontrar soluções. Ora, se há matéria para a qual se exige uma convergência de vários partidos, é justamente esta. Como creio que não se tratou de lapso, mas sim de gesto deliberado, lamento que tenha sido enviada uma mensagem à opinião pública a revelar menor preocupação com esta questão.

Creio, de qualquer modo, que este acordo não se destina a alcançar nenhum dos objectivos que, para a reforma da justiça, considero prioritários. O da necessidade de estabelecer mecanismos de prestação de contas. O da exigência de responsabilizar o legislador, o ministro e as máximas autoridades judiciais. E, finalmente, o de criar vínculos do sistema judicial às estruturas democráticas legítimas.

A este propósito, desejo esclarecer um ponto essencial. Não pretendo, com nenhuma das alusões feitas acima, que o sistema judicial se transforme em entidade directamente democrática, vulnerável às pulsões partidárias e à demagogia eleitoral. Tal como não desejo que as estruturas judiciais estejam cativas da luta sindical. Nem quero submeter a independência dos magistrados às funções políticas e partidárias. Pretendo, isso sim, que a justiça portuguesa se abra às influências e às necessidades da sociedade e preste contas, indirectamente, às entidades legítimas e representativas da sociedade e do soberano.

A verdade é que desde há trinta anos que se refere frequentemente a crise da justiça e a dificuldade em lhe dar solução. Também há trinta anos que os indicadores mais simples, sobretudo os que sublinham a morosidade, a prescrição, o atraso e a falta de produtividade, não registam melhoramente notável. Apesar de saber que as comparações nem sempre dão razão, não resisti a cotejar as reformas e os resultados deste sector com os de outros, como sejam, por exemplo, o da saúde e da educação. A comparação pode parecer atrevida, mas tem o mérito de obrigar à reflexão.

Tanto a saúde como a educação exibem uma mudança e um somatório de resultados muito mais impressionantes do que a justiça. Apesar de não serem mais fáceis, nem abrangerem menos pessoas, nem terem menos activos. Pelo contrário, aliás. O aumento da esperança de vida, a diminuição drástica da mortalidade infantil e materna, a redução das doenças contagiosas, as taxas de cobertura dos sistemas de prevenção e de saúde pública mostram o caminho feito e um indiscutível progresso, não desmentido pelas dificuldades ainda presentes. Na educação, o aumento das taxas de cobertura, o alargamento da rede, a expansão do sistema, o desaparecimento do analfabetismo juvenil e o desenvolvimento dos estudos avançados revelam, entre outros, uma notória mudança. É todavia verdade que, na educação, muito mais do que na saúde, a mediocridade dos resultados qualitativos quase oculta a imensidão da mudança e o êxito da expansão quantitativa. Mas esta última não pode ser negada.
Na justiça, não assistimos a uma mudança semelhante. Nem de perto, nem de longe. Numa nova sociedade onde se organizaram a democracia, os direitos dos cidadãos, o mercado, a economia capitalista, a integração europeia, o associativismo, a instrução, a imprensa e a informação livre, cresceram a litigância e os processos, assim como os números de magistrados judiciais e do ministério público, de oficiais de justiça e de advogados, mas não se assistiu a um melhoramento significativo da prontidão da justiça.

Ora, a justiça não sofreu, nestas décadas, dos males tradicionais nas sociedades em desenvolvimento: a falta de recursos financeiros, a falta de profissionais competentes, a ausência de estruturas de formação e a deficiência de outros recursos materiais. Nem sofreu, se assim se pode dizer, de falta de necessidade e de procura. Ou, se sofreu de alguns destes males, foi de modo proporcional ao dos sectores da saúde e da educação. Onde se poderá então encontrar a razão pela qual a justiça evoluiu, perante a sociedade, menos, menos bem e de modo mais deficiente?

A primeira razão, talvez a mais fácil de detectar, reside no âmago dos mecanismos democráticos. Por razões eleitorais, genuínas ou demagógicas, os políticos e as autoridades estão mais atentos às aspirações de saúde e de educação do que às de justiça. Mas isto não chega, até porque as aspirações à justiça são muitas vezes audíveis e as crises de confiança bem visíveis. Além disso, as necessidades de justiça não se limitam a momentos excepcionais da vida dos cidadãos, mas sim a toda a sua vida, na família, no trabalho, nas relações sociais, nas relações com o Estado, nas transacções, nos direitos, na cidadania e na liberdade.

A meu ver, as razões para esta evolução diferencial, tão desfavorável à justiça, residem noutros fenómenos. Em primeiro lugar, no carácter fechado do sistema. Os cidadãos, as autarquias, as empresas, as associações profissionais, as sociedades científicas e outros grupos de interesses não têm acesso aos corredores da justiça, não têm meios para a influenciar e para a fazer evoluir. Segundo, a justiça está entregue a si própria e às suas corporações, numa situação que ultrapassa, e muito, a legítima independência. Terceiro, a justiça não presta contas a ninguém, a não ser a si própria. Quarto, a justiça vive um sistema de responsabilidade circular que se caracteriza por uma ausência de responsabilidade clara e por uma transferência de culpas para o parceiro mais vizinho, o juiz, o magistrado do ministério público, o oficial de justiça, o advogado, o governo, os deputados e a administração Pública. Finalmente, o poder político é dúplice no seu comportamento: para ter o silêncio ou a cumplicidade da justiça, remete-se a uma espécie de passividade.

Os sistemas de saúde estão por definição abertos. Ou pelo menos mais abertos. Em boa parte, estão organizados em função de um princípio científico universalista e de uma tradição experimental, os das ciências da saúde, longe das doutrinas sociais e políticas. As instituições de saúde estão por vezes em competição. O recurso à medicina estrangeira pode ser frequente, pelo menos nas classes com capacidade económica. Existe uma medicina pública e uma medicina privada. As empresas, as autarquias, as associações, as sociedades científicas, os empregadores, os sindicatos, os bancos e as companhias de seguros interessam-se pelo modo como está organizada a saúde. O “ethos” científico que regula as actividades ligadas à medicina e à saúde faz com que as doutrinas nacionais e nacionalistas, o arbitrário dos programas corporativos e a “especificidade portuguesa” tenham pouca influência na organização da saúde.

Alguns destes traços são partilhados pelas actividades educativas, designadamente a concorrência e a abertura do sistema, assim como o interesse activo das entidades públicas e políticas. Infelizmente, o paralelismo não é total, o que talvez explique a mediocridade dos resultados qualitativos na educação. Com efeito, as doutrinas e as ideologias, como até as modas passageiras, têm uma influência decisiva no modo como as escolas se organizam. Mas isto não obstou a que a expansão do sistema fosse, nas últimas décadas, um êxito.

Sob este ponto de vista, a justiça parece mal colocada. A sua privatização, total ou parcial, não é recomendável, espero mesmo que seja impossível. Por motivos evidentes, não existe concorrência nem alternativa. As melhorias da justiça não parecem ter potencialidades eleitorais. E não existe um princípio científico que oriente a justiça. Quer isto dizer que a abertura do sistema de justiça, apesar de difícil concretização, é talvez o único caminho fértil. Abertura no sentido de influências externas e de envolvimento de pessoas e entidades que não pertençam às grandes corporações judiciais. Abertura ainda no relacionamento das instituições com a sociedade. E abertura também às fontes de legitimidade democrática e à prestação de contas.

Termino, dirigindo-me aos novos candidatos à magistratura. Gostaria de pensar que as minhas palavras são mais um incentivo do que um desencorajamento. Sempre, na história, a figura do magistrado, do juiz, foi objecto de admiração e de especial respeito. Também houve, é claro, juízes odiosos, corruptos, cúmplices dos poderosos e dos déspotas, de que o famoso “juiz de duas caras”, da iconografia medieval, é um exemplo. Mas, em última análise, o juiz sempre se distinguiu como aquele em quem o povo mais pode confiar. Uma espécie de última instância terrestre, o defensor da lei, o garante dos direitos de cada um, o protector dos fracos e o árbitro de conflitos. É esse o juiz que eu gostaria de ver regressar, plenamente, à nossa vida colectiva. Desejo-vos, para nosso bem, boa sorte no início de carreira.

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Centro de Estudos Judiciários - Abertura do curso de Auditores
Lisboa, Setembro de 2006.
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Este texto é uma extensão do publicado no Jacarandá [v. aqui] e no Sorumbático [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

OS QUE HÃO-DE GUIAR-TE À VITÓRIA

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Por Nuno Brederode Santos
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O CDS NÃO CUIDA dos seus maiores, nem rega a sua árvore genealógica. Recusou o centrismo de Freitas do Amaral, desautorizou o institucionalismo que Adriano Moreira nem teve tempo para fixar na mira, desprezou o neoliberalismo de Lucas Pires, para - sempre empurrado pelos ventos eleitorais - vir aterrar nas mãos de Manuel Monteiro e Paulo Portas. Este acabaria por escorraçar aquele, em espasmos intestinais onde, vistos os factos de fora, a ideologia não meteu prego nem estopa. Nenhum dos idos é saudoso nessa casa da Família Adams sita no Largo do Caldas.
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Monteiro, desabrigado, encetou uma aventura pessoal de contornos difíceis de prever e impossíveis de descrever: após sucessivos desaires (que culminaram nas autárquicas de Lisboa), anunciara recentemente a disponibilidade da sua Nova Democracia para desaparecer, a bem de uma qualquer inovação da direita para 2009, mas a aplicação de duas multas pela Comissão Nacional de Eleições deu-lhe agora o pretexto dourado para reconverter esse horizonte cinzento numa odisseia em technicolor - e, por isso, anunciou, esta semana, que não paga as multas e que o PND está pronto para o martirológio da extinção, mas não pactuará com a infâmia da perseguição que lhe é movida. Como o regime é pachola e esmoler por temperamento, ninguém comentou a proclamação e o PND já se pode ir embora, não na prosa em sépia do rabo entre as pernas a que parecia condenado, mas na grandeza trágica do suicídio de Antero. E assim Monteiro (e mais uns poucos) se poderá libertar do colete de forças que vestiu e disponibilizar-se para a primeira aventura fraccionista que o PSD gerar ou consentir.
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Ganho o partido - que se tornou PP, mas parece já ter voltado a responder ao petit nom de CDS - Paulo Portas conseguiu tirar Marcelo Rebelo de Sousa do caminho e chegar ao Governo pela mão de Durão Barroso. Depois, nas circunstâncias que estão na memória de todos, este abalaria para Bruxelas, deixando Santana no lugar. A solução parece ter repugnado a alguns quadros laranjas, que enjeitaram continuar, mas não ao CDS, que - porque só vive para isso - viria a partilhar a derrocada eleitoral do PSD. Portas demite-se, num fragor que seria depois plagiado por Putin e Medvedev. Mas, como o delfim Telmo Correia perdeu o Congresso para um Ribeiro e Castro desarmado, ele volta, sem dar tempo a um nojo convincente, defenestra os democratas-cristãos e, novamente presidente, senta-se no Parlamento (onde, juntamente com a presença de Santana, como líder da bancada laranja, proporcionaria a Sócrates viver alguns dos mais enlevados momentos da sua vida política).
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Assim reconquistava o partido o direito a, em cada momento, livremente se escolher no catálogo das ideologias. Tornou-se então populista e liberal-conservador. Tudo, portanto, menos democrata-cristão. O que traz consigo uma perigosa curiosidade. É que o sufoco estratégico do CDS perante o PSD resulta precisamente da justaposição ideológica entre eles. Ambos têm uma componente conservadora, outra liberal, outra populista. O PSD tem a mais alguma - escassa - social-democracia, o CDS tinha a mais alguma democracia-cristã. Ao abdicar dela, o pequeno grupo de amigos que constituem o seu estado-maior renuncia à única e última diferenciação tangível no inevitável cotejo com o PSD. A Conferência Episcopal mete-E o CDS lá se vai afunilando, com um discurso triunfal sobre o bom resultado nos Açores (que ignora a Madeira e sobretudo a catástrofe de Lisboa) a justificar mais um assalto de viela escura, que é surpreender qualquer hipotética oposição interna com uma antecipação mais de 4 meses do seu calendário interno (com um pré-aviso de 15 dias), que obriga a apresentar candidaturas até 7 de Novembro e moções de estratégia até 10. Cego, surdo e mudo, o CDS avança aos tropeções por um corredor cada vez mais estreito e mais escuro. Um dia, Paulo Portas recordará melancolicamente o que foi mandar cada vez mais num partido que era cada vez menos.se mais em política do que a Igreja gostaria, mas não é nestes "aventureiros" que confia. A Ala Liberal, de António Pires de Lima, fechou as portas por falta de clientes. Os conservadores, no seu remanso aristocrático, execram (mesmo quando a elas se resignam) as arruaças radicais e reformistas. O populismo impera, indisputado. Mas o PSD tem Jardim, Santana e até Menezes: não precisa de lições e não teme tais rivais.
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«DN» de 26 de Outubro de 2008
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Este texto é uma extensão do publicado no Sorumbático [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

sábado, 25 de outubro de 2008

O GRANDE PONTO! (*)

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UM BELO DIA, quando nada o faria prever, os nossos amigos receberam a visita do Dr. Andorinhas.
Vinha extremamente nervoso, de camisa desabotoada, e mal conseguia respirar!
— Preciso urgentemente da vossa ajuda - disse ele, por fim, quando conseguiu falar - Vai aparecer aqui o Engenheiro Milhafre e quero que estejam preparados para uma coisa muito desagradável…
E passou a explicar:
O Engenheiro Milhafre, que era o seu maior inimigo dentro da empresa, andava a preparar mais uma grande patifaria!

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Mas agora é necessário dar uma explicação: sabem o que é um relógio-de-ponto?
É uma máquina onde as pessoas registam a horas a que entram e saem dos empregos.
Como se compreende, essas máquinas são muito importantes, pois é por elas que se pode saber se as pessoas estão a trabalhar o número de horas necessário.
É claro que na Mykro-Makro também havia vários relógios desses.
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Ora o Engenheiro Milhafre tivera uma ideia diabólica:
Resolvera arranjar maneira que os relógios atrasassem, ao fim do dia, alguns minutos!!
Assim, quando as pessoas fossem a sair - julgando que já tinham trabalhado tudo - ficavam a saber que ainda tinham que trabalhar mais!
Ao princípio isso tinha acontecido por acaso, devido a uma avaria, mas o cérebro diabólico do Engenheiro entrara em acção!
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E o Dr. Andorinhas continuava:
— Ele sabe que vocês são uns génios nestas coisas técnicas. Por isso, vai aparecer aqui e pedir-lhes para arranjarem maneira de os relógios passarem a atrasar bastante mais!
Malaquias ficou muito admirado e respondeu:
— Mas isso é de uma desonestidade a toda a prova, Doutor! Nós não vamos colaborar numa aldrabice dessas!
Só que o Dr. Andorinhas já vinha preparado para essa resposta.
— Eu sei, meus amigos, eu sei! Mas se vocês se negarem a fazer o trabalho ele vai pedir a outros. O que é que hei-de fazer?!
E foi nessa altura que o nosso amigo Malaquias, depois de falar demoradamente com a irmã e com o primo, lhe respondeu:
— Vá-se embora sossegado, doutor… Acho que já sei o que vamos fazer…
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Ainda não se tinham passado dez minutos quando um estranho indivíduo, com cara de louco, óculos de aros, dentes de fora e orelhas arrebitadas entrou pela loja adentro.
Trazia dois enormes embrulhos, um debaixo de cada braço, e não perdeu muito tempo a explicar o que queria.
A sua voz era difícil de entender, mas os nossos amigos, que já sabiam ao que ele vinha, também não precisaram de grandes explicações…
— Quero que, quando for a hora da saída, o relógio atrase! - disse o homem, sem dar novidade nenhuma. - E MUITO! Mesmo MUITO!
E Malaquias começou a perguntar-lhe:
— Quanto? Cinco minutos?
— Mais! - respondeu o estranho indivíduo.
— Dez minutos? Quinze?
— Não!! Quero MAIS, MUITO MAIS! - prosseguia o louco, com os olhos a brilhar, e dando saltinhos nervosos.
— Então isso vai demorar um bocado… Volte cá amanhã por esta hora - respondeu-lhe o nosso amigo.
— Então sempre é possível o que eu quero?! - perguntou o homem, com os seus olhinhos pequenos a brilhar e a piscar.
— Claro, Senhor Engenheiro. Claro que é possível!
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Nessa noite os três inventores atiraram-se ao trabalho com toda a força e, quando no dia seguinte o cavalheiro voltou, teve a suprema alegria de ver que lhe tinham feito a vontade…
Pegou nos relógios e, sem sequer agradecer nem se despedir de ninguém, saiu porta-fora, feliz da vida…
E os nossos amigos ficaram a ver, através do vidro da montra, o pobre louco que se afastava, com os dois relógios debaixo do braço, rindo e dançando por entre os canteiros do jardim ali da frente…
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Malaquias, ajudado pelos outros, fizera o seguinte:
Os ponteiros do relógio, quando chegava a hora da saída, atrasavam… doze horas!

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(*) Capítulo 23 do livro infanto-juvenil Clube dos Inventores, escrito para o programa Internet nas Escolas; o cartoon é de Paulo Buchinho. Mais tarde, uma primeira parte foi publicada pela Plátano. A versão completa pode ser lida, em formato PDF, [aqui].
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O curioso é que esta história é inspirada num facto absolutamente verdadeiro, ocorrido numa empresa nacional - líder de mercado em tecnologias de ponta! - onde o autor trabalhou durante muitos anos: os Serviços de Pessoal e de Informática nunca conseguiram programar correctamente o relógio de ponto electrónico, pelo que, quando os trabalhadores pediam o saldo das horas, recebiam invariavelmente a indicação de que estavam em dívida para com o patronato!
Apesar da chacota ser geral e quotidiana, o problema, que se saiba, nunca foi resolvido - por desleixo, por incompetência, ou porque os chefes não picavam o ponto...
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Este post é uma extensão do que está afixado no Sorumbático - ver [aqui].

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Passatempo Vasco Gonçalves

670g
O passatempo em que o Blasfémias recorda Vasco Gonçalves e as nacionalizações foi ganho por António C. Caldas, com o "palpite" 666g. Em 2.º lugar, ficou Vasco Miguel Casimiro (660g).
Pede-se a ambos que, nas próximas 48h, escrevam para sorumbatico@iol.pt indicando morada. Ao primeiro, serão enviados os livros indicados; ao segundo, será enviado um livro-surpresa.
Obrigado a todos! Só por curiosidade: os livros pesam, separadamente, 130 e 540g.

DA FOME E DO MEDO

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Por Baptista-Bastos
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OBSERVAMOS EM VOLTA e reconhecemos, com uma clareza dolorosa, o estado do País. Portugal não desempata, e as forças em presença demonstram ser incapazes de enfrentar, com grandeza e, simultaneamente, com humildade, a agressividade de um sistema, o capitalista, que "poucas vezes, ou nenhumas, foi verdadeiramente democrático" [Emmanuel Mounier, in A Esperança dos Desesperados, ed. brasileira]. Agora, apela-se, dramaticamente, à participação activa da sociedade. Ao ponto de, há dias, na reunião com Sarkozy e Durão Barroso, o extraordinário Bush, cuja trágica inutilidade é componente da crise, ter afirmado: "É urgente construir o capitalismo democrático." Tudo isto, incompetência, leviandade, submissão, arrogância, mentira, tem abrangido o conjunto das condições da nossa existência. Parece que habitamos no interior das ameaças do "Leviatã" e o estado de guerra instalou-se, de uma forma ou de outra, no interior de todos nós.
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Ao proceder à exclusão de uma parte volumosa da sociedade, a classe dirigente pulverizou o contrato social que mantinha um certo equilíbrio civil. E os panegiristas da "nova ordem económica", que em duas décadas causou injustiças medonhas, e permitiu a ascensão crescente de uma casta sem ética nem dignidade, tentam recompor-se, criticando os estilos de consumo e a "ganância insustentável". Há mais fome no mundo, mais ressentimento, mais ódio e mais rancor. A crise veio desvelar o que uma espantosa (e bem dirigida) manipulação da informação e das consciências transformou em júbilo, o que, de facto, era monstruoso. A TVI exibiu, há pouco, uma reportagem de Rui Araújo, na qual a fome e o medo eram questões fundamentais. É um documento terrível. Araújo conta que, na Cova da Beira, há quem sobreviva com 80 cêntimos por dia, e os mais afortunados com três euros. Acaso os grandes interesses económicos não constituíssem intransponíveis obstáculos, a Cova da Beira poderia alimentar parte substancial do País. O repórter da TVI conta a história de um casal, ele tipógrafo, ela taxista, ambos desempregados, que foram coagidos, pelas circunstâncias, a abandonar Lisboa, onde viviam, e a instalar-se em casa de familiares, numa aldeia da Beira Interior, onde as coisas estão mais em conta. A reportagem não constitui uma parábola nem é uma metáfora: representa, na sua pungente exposição, a nossa perda de humanidade. Eis o panorama. Que nos oferecem José Sócrates e Manuela Ferreira Leite? Nada que rompa com o estabelecido. Ambos simbolizam organizações que se pretendem hegemónicas, actuando em esferas ideológicas muito semelhantes. Ambos favorecem um nivelamento progressivo das consciências e uma determinada forma de domesticação mental de que resultam as nossas múltiplas incertezas e os nossos medos permanentes.
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«DN» de 22 de Outubro de 2008
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terça-feira, 21 de outubro de 2008

O Ano de António Costa

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Por J. L. Saldanha Sanches
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QUANDO ANTÓNIO COSTA foi eleito presidente da Câmara de Lisboa havia a esperança que ele conseguisse mudar a Câmara. Agora o que voga por aí é o receio de que a Câmara consiga mudar António Costa.
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A CML são 13.000 funcionários e não se sabe quantas empresas municipais. A causa é uma estrutura produto de uma aliança sagrada entre o PS/PSD/PCP/CDS (o Bloco ainda tem as mãos limpas) que distribui centenas de empregos, geralmente de Administração ou de direcção com VUPs (viaturas de uso pessoal no sofisticado jargão da nomenclatura municipal), cartão de crédito e cartão frota NI (gasolina ilimitada no território nacional-internacional).
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Tudo isto torna as opções dramaticamente claras: dinamizar a cidade, ou criar espaços para a cultura é, por enquanto, secundário. O alvo central é livrar a cidade das sanguessugas que são as empresas municipais.
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A fradaria mata-nos, a fradaria devora-nos, dizia Alexandre de Gusmão no Séc. XVIII exasperado pela multiplicação dos conventos que sugavam o ouro do Brasil. A forma mudou mas a substância mantém-se: agora são as múltiplas empresas municipais, encarregadas das tarefas que deviam competir à Câmara e alimentando as bases dos partidos que nos devoram.
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A questão das casas e as toscas explicações de Ana Sara Brito são apenas um sintoma deste ambiente: há uma nomenclatura municipal que se sente com direito aos impostos cobrados em Lisboa - e se a derrama, o IMI e o IMT não chegam cria-se uma taxa sobre os esgotos. A apropriação de fundos públicos sob a aparência de legalidade é um sugadouro infindável.
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O drama para António Costa é que para governar neste ambiente é melhor Santana Lopes. Se se trata de música e de fardamentos novos, de terrenos para o Benfica e o Sporting então ninguém bate Santana (em especial se a dívida que criou estiver meio paga). Por isso, ou António Costa, mesmo com maioria que tem, dá sinais claros de limpar Lisboa ou perde a única vantagem que pode ter em relação a Santana Lopes (n. b. Santana, 2001, 131.094 votos; Costa, 2007, 56.751 votos).
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Claro que estas políticas não agradam ao aparelho do PS com os seus arranjinhos com o PSD, mais umas migalhas para o PCP que também é gente.
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As bases dos partidos existem para conseguir favores e lugares, querem a sua multiplicação e não a sua redução. Não lhes interessa que as empresas municipais sejam eficientes e deixem de ser geridas com o rigor do tarot. As bases odeiam os gestores chatos que pensam nos custos, na eficiência e na lei, em vez de se concentrarem no bem-estar dos apaniguados. Por isso uma gestão dura das empresas municipais, extinguindo as que são casos incuráveis de corrupção e compadrio, seria uma traição ao aparelho.
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Contra isto os lisboetas não vão fazer barricadas: votam com os pés, procuram casas mais baratas nos arredores e deixam Lisboa que envelhece e perde população.
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António Costa não é um político como os outros. Mas esse facto tem tido dificuldade em passar. Ainda vai passar menos se António Costa, no ano que lhe resta, continuar a pactuar com a nomenclatura municipal com os seus pequenos e grandes arranjinhos.
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PS - A CNPD não autorizou a instalação de vigilância nos táxis. Uma decisão sensata: com o desemprego actual, não há qualquer dificuldade em substituir um taxista assassinado.

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«Expresso» de 18 de Outubro de 2008 - http://www.saldanhasanches.pt/
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Passatempo "Burocracia"


CARTA ENVIADA
Clicar na imagem para a ampliar
.CARTA-RESPOSTA
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Estas imagens fazem parte do passatempo com o mesmo título afixado no Sorumbático [aqui]. Os livros cujas capas em baixo se vêem premiarão os melhores comentários que sejam afixados até às 20h de 22 Out 08.

Os enteados de Nobel

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Por Nuno Crato.

ALFRED BERNHARD Nobel (1833 –1896) foi um químico sueco que fez uma fortuna com a invenção da dinamite e de outros explosivos. Na altura, usavam-se materiais muito sensíveis às oscilações de temperatura e de manuseamento muito delicado e perigoso. Nobel conseguiu embeber nitroglicerina, um explosivo poderoso e muito instável, numa substância terrosa inerte, uma espécie de areia fina. Com isso criou um material transportável com segurança e que mantinha a sua potência explosiva. Nobel inventou ainda um explosivo gelatinoso mais potente, a gelatinite e um conjunto de materiais similares. Fez uma fortuna e houve quem o acusasse de tirar lucros da morte dos outros.
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Ao que se diz, em parte para afastar os remorsos por ter contribuído para o uso de materiais explosivos nas guerras, Nobel legou a sua fortuna para premiar quem se destacasse em prestar serviços à humanidade, nomeadamente contribuindo para a paz e para o bem estar. Em 1895, um ano antes de morrer, Alfred Nobel assinou em Paris o seu testamento, destinando-o a cinco prémios: Paz, Literatura, Física, Química e Medicina. Na altura todas estas eram áreas centrais da actividade humana e a Física e a Química eram as ciências em desenvolvimento mais acelerado. Faria pouco sentido, por exemplo, instituir um prémio para a Economia, na altura ainda muito literária. A Matemática também não tinha o desenvolvimento aplicado e a ubiquidade que hoje se lhe conhece.
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O mundo evoluiu. A União Matemática Internacional criou o seu próprio prémio, tão prestigiado que se considera por vezes o «Nobel da matemática». Trata-se da medalha Fields, que é atribuída de quatro em quatro anos, por ocasião do Congresso Internacional de Matemáticos, a investigadores que tenham obtido resultados especialmente relevantes no período anterior.
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A Economia, entretanto, evoluiu para se tornar uma ciência quantificada, com recurso a modelos matemáticos que permitem estudar as relações entre os factores de desenvolvimento da vida económica. Tornou-se tão importante que o Banco da Suécia promoveu o «Prémio em Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobel». Ao contrário do que muitas vezes se pensa, esse prémio não é subsidiado pelo fundo Nobel, mas é entregue em simultâneo com os que este fundo financia.
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Como o ressaltam muitos cientistas, como, por exemplo, o biólogo Edward O. Wilson, foi o recurso à matemática que permitiu que a Economia se destacasse de outras áreas de estudos sociais e passasse a produzir proposições e previsões testáveis, o que constitui um requisito indispensável da ciência. Apesar de parecer na moda ironizar a incapacidade de previsão dos economistas, como acontece, por exemplo, no livro «O Cisne Negro», que tem constituído um estranho sucesso comercial, o certo é que foi a introdução de modelos matemáticos que permitiu aos economistas criarem modelos úteis e compreenderem melhor o que se passa nas trocas comerciais, na criação de riqueza e na vida financeira. Rejeitar os modelos formalizados porque não conseguem prever o que é, por natureza, imprevisível, não passa de um retrocesso obscurantista. Afinal, também é a Matemática, talvez mais pela teoria das probabilidades do que pela teoria do caos, que ajuda a perceber os fenómenos imprevisíveis.
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 18 de Outubro de 2008 (adapt.).
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domingo, 19 de outubro de 2008

A MORTE DE CLEÓPATRA

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Pormenor de A Morte de Cleópatra- Hans Makart, 1875.
Por Nuno Brederode Santos

PELOS SEUS PRÓPRIOS MEIOS - e porventura engenho e vontade - o PSD recolocou-se numa dilacerante encruzilhada. Um dia se saberá se por acção ou omissão, mas o certo é que Manuela Ferreira Leite (MFL) abriu as portas ao regresso em força de Santana Lopes, desencadeando uma espécie de segunda volta do último Congresso, que todo o País julgava encerrado. Um Congresso que ela ganhou (mesmo que por magra margem), deixando Passos Coelho num segundo lugar (que uns considerarão honroso e outros promissor) e fechando estrondosamente as portas ao populismo da componente mais arcaica do partido, na pessoa de Santana, mas com óbvias e graves repercussões para as ambições de Luís Filipe Menezes e Alberto João Jardim. Agora - e sem razão aparente - é ela que lhe reabre o caminho para uma candidatura à Câmara de Lisboa, um cargo que Jorge Sampaio elevou a umbral de todos os cargos e que, num partido de oposição, corresponde ao segundo ou terceiro mais importante de todos os lugares electivos.

Santana vive depressa. Por isso, é já hoje mais currículo e circunstância do que ele mesmo. Pessoalmente, até tem coisas estimáveis, como a de ser um dos políticos mais antipuritanos do seu partido. Mas é prisioneiro do seu modo leviano, impulsivo, caprichoso e improvisador de fazer política, acreditando que os problemas se resolvem, não no plano substantivo, mas sim no plano mediático. O que lhe interessa numa reunião não é o que lá se passa, mas o que ele puder dizer aos jornalistas à entrada ou à saída (e, por isso, entra mais tarde ou sai mais cedo, à hora dos telejornais). Ou, na falta de cem mil lisboetas motivados, faz um comício com artistas populares para reclamar a salvação do Parque Mayer pela instalação de um casino (que até requer alterações legislativas), para tudo afinal desembocar no casino instalado na Lisboa oriental e o Parque Mayer ficar no seu abandono de sempre. Para abreviar razões e poupar memórias, direi apenas que Santana demonstrou uma total ausência de sentido de Estado e uma permanente tendência para jogar a multidão contra a lógica das instituições. Isto é o populismo. E dele o povo nunca é o autor, mas sempre a vítima.
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Como é de regra (e por paradoxal que pareça), as virtudes menores estão ao serviço dos defeitos maiores. E o indomável sentido de sobrevivência de Santana tem complicado a vida ao seu partido. Julgo que MFL já terá pensado que, se Rasputine fosse Santana, depois de levar com um ferro na cabeça e de ter sido esfaqueado, baleado e envenenado, ainda hoje estaria vivo e a mandar, por caminhos mais ínvios do que os do Senhor, no czar de todas as Rússias. E talvez também MFL acredite na tese ousada de que, afinal, Cleópatra não se suicidou. Quando o camponês lhe levou a mortífera áspide e lhe disse (na versão de Shakespeare) "Senhora, deveis lembrar-vos de que a serpente fará sempre o que o instinto lhe ditar", ela olhou tensamente o viperídeo, mirou-lhe a boca, a língua, os dentes e adivinhou-lhe o veneno. E então pensou (na minha versão): "Ná! És perigosa de mais para andares aí a passear pela cama. Mais vale ter-te do meu lado" E aconchegou-a ao seio que a áspide, sucumbindo ao instinto, lhe mordeu.
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Daí talvez a tentação, racionalmente inexplicável, de chamar Santana a si ou de o neutralizar pela sedução política. Incorrendo no mesmo - mas então bendito - erro de Menezes que, ao abrir-lhe a liderança da bancada parlamentar, fez a voz dele mais audível do que a sua. Com a agravante, para MFL, de que o derrotou no campo aberto democrático, para agora se render nas vielas escuras do tacticismo, do eleiçoeiro, do mediático. No campo, em suma, da denegação de tudo aquilo por que e para o que a elegeram em Congresso.
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Encontraram-se, portanto, nas supostas conveniências do imediatismo. Santana escolheu bem: o curto prazo é o terreno onde o predador político pode ter por armas a rapidez e o improviso. Mas MFL escolheu também - e mal - o curto prazo. Provavelmente porque já se convenceu de não ter outro.
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É certo que tudo isto pressupõe que ela já não poderá voltar atrás, desfeiteando a distrital de Lisboa. Só que agora, mesmo que o faça, optará apenas pelo mal menor. O excesso de recato e de distância já a pôs na situação de não ter qualquer saída sem danos.
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«DN» de 19 de Outubro de 2008 - Este texto é uma extensão do que está publicado no Sorumbático [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Relembrando Gomes Freire de Andrade

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Última residência de Gomes Freire de Andarde (na Rua do Salitre, em Lisboa), onde foi preso na madrugada de 26 de Maio de 1817.
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C. M. da Pátria - instalações da autarquia, com o inevitável erro de português na tabuleta
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Parque infantil
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Estátua homenageando um cavalheiro - decerto muito ilustre
. Estátua do Dr. Sousa Martins, promovido a santo-milagreiro bem contra sua vontade...
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NOTA: Este post é uma extensão dos que serão afixados nos blogues «O Carmo e a Trindade» e «Sorumbático», onde eventuais comentários deverão ser afixados.

A Quadratura do Circo – A Banca dos Imbecis

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Por Pedro Barroso
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O SISTEMA faliu.
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E agora, ao propor um prémio monumental, leia-se gigantesco, que cubra os prejuízos das instituições bancárias há uma óbvia imoralidade cívica, económica e política.
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Em primeiro lugar, porque a cobertura do erro vem da riqueza do país, isto é, de nós, do nosso dinheiro. Em milhões. Biliões. Pago em impostos, traduzidos no sangue, suor e lágrimas da nossa sofrida poupança. Quantas vezes na fímbria da falência pessoal. Da lágrima por tudo o que se abdica, desde o sonho, ao justo e merecido conforto.
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Que ficaram, para isso, adiados pela injustiça de uma fiscalidade, para nós, curiosamente, sempre implacável. E tapam-se e toleram-se magnanimamente os erros bancários porquê?
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Ganhando infinidades imorais como se fossem grandes especialistas da engenharia financeira, as grandes cabeças da bancarrota são, afinal, gestores e economistas de pacotilha que representam um papel de teatralidade óbvia, demasiado elementar até, assumindo alguns erros de sistema e que proferem agora o discurso da calma e da competência.
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Quando é óbvio que não promovem uma, nem revelam outra.
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Ao accionar uma gigantesca ajuda, afinal, os Governos deixam cair a máscara miserabilista e premeiam os imbecis que provocaram o caos. Com dinheiro que não era suposto existir para a cultura, a saúde, a justiça, a educação. Tais imbecis, pagos pelos depositantes cidadãos a peso de ouro, limitam-se a mover o dinheiro de um lado para o outro especulando, reinvestindo e dissociando. Segurando e ressegurando, comprando, colocando em off-shores, inventando e vendendo produtos de nome estudadamente credível, que nada significam na realidade em termos de segurança remuneratória. Ou de fiabilidade como produtos. Viu-se.
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As instituições financeiras, com efeito, sabedoras da nossa dependência num mundo de insegurança crescente, sabem que jamais as pessoas voltarão a poder guardar o dinheiro no colchão. E valem-se disso. Onde pôr o ordenado, a poupança? Onde fazer os pagamentos? Onde pagar as letras? Onde pedir emprestado? Os Bancos sabem-se imprescindíveis e intocáveis na estratégia financeira montada pela vida moderna. Como viver sem eles?
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Impunes e imbecis, com todo aquele ar de difícil crédito, tão triado e tão complicado, afinal os banqueiros erravam todos os dias. Emprestaram mal. Mas depois, será que emendaram a mão? Não. Os juros subiram. O convite permanente ao consumo continuou. O autismo continuou. Você quer - você tem.
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Qualquer comentador mais atento, mesmo sem ser da área financeira, se apercebia desse logro e desse perigoso destemor. Qualquer um de nós, se fizesse na sua economia doméstica o que a maioria dos Bancos tem andado a fazer, já tinha falido há muito tempo.
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Deste modo não. Artificialmente. Premeia-se o dolo. Premeia-se e desculpa-se a incompetência. Afinal era tudo a brincar. Tal como nós em miúdos a jogar à apanhada. Havia coito. Ali não vale. Ou seja, isto dos Bancos serem instituições sérias afinal não era bem assim. Era a brincar. Afinal são uns gajos porreiros, tesos como nós. Com milhões anuais de lucro. Mas tesos como nós. Dá para perceber?
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Os bancos putativamente tão sérios, tão exigentes, tão honestos, tão ricos, tão fiáveis, tão credíveis e seguros, afinal não são nada disso.
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São instituições comandadas por cérebros convencidos que sabem; que usam termos muito complicados para nos impressionar; que escrevem contratos em letra minúscula para nos levar a assinar o que não queremos; que nos prometem o que nunca será em nosso favor; que nos asseguram apoio que eles próprios não podem garantir.
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Neste caso ficamos impotentes. Não sabemos como reagir. Não há, com efeito, reacção recomendável.
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E as suas olímpicas serenidades apenas nos convencem da sua diluviana culpa. A opereta, em versão portuguesa, abanou o Teatro operativo, mas não caiu a graça dos protagonistas. Que humanos são, coitados. Afinal… que medíocres. Uns tesos! A gente a confiar-lhes a massa e eles até abrem falência e tudo. Se não fosse aquele fato Armani até poderiam passar por sem-abrigo. Assim é fácil. Cobertas as asneiras pelo Governo, como filhos da mamã, mimados, imbecis.
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O problema que fica é o seguinte: que fazer? A quem entregar a poupança envergonhada que ao longo do tempo tenhamos conseguido? À avó Matilde, para pôr no mealheiro? Ao dono da pastelaria, garantindo pequeno-almoço vitalício com meia de leite e um croissant?
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Como proceder? Comprar a eito tudo, mesmo o que não precisamos, só para converter trocos - uma vez que o que temos no Banco pode de um momento para o outro deixar de ser nosso?
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Comprar segundas e terceiras casas na esperança de investir no escuro? Oferecer um carro à porteira ucraniana, coitada, em paga pelo deleite secreto que as suas formas esculturais nos proporcionam todos os dias? Mudar o colégio dos miúdos para um mais caro, só para termos a vaidosa ilusão de sermos, também nós, banqueiros imbecis?
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Creio que não podemos fazer mais que aguardar. Lançar o pânico ainda seria pior. O circuito está montado para que, mais tarde ou mais cedo, regressemos à nossa normal e impudica relação bancária. À mais promíscua e total dependência desses comprovados imbecis para prosseguirmos a nossa vida. Com o pormenor que eles continuarão de Bentley e nós a comprar o Fiat Punto a prestações.
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Digamos que os presunçosos cinzentos apanharam um susto. Mas eles voltam sempre. Estão cobertos por um escudo que felizmente passou a ser mais visível, mais perverso, mais profano. À nossa custa.
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Mas uma coisa ficamos nós a saber, de tão claramente exposto:
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É que eles, afinal, nada sabem. Agora já podemos chamá-los justificadamente de imbecis. Não viram o que todos nós andávamos a ver há tanto tempo.
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São mesmo actores de terceira numa opera buffa cheia de contornos de mau gosto.
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Cantam mal, desafinam. Representam e mentem mal. E nem sequer sabem fazer contas.
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NOTA: este texto é uma extensão do que está publicado no Sorumbático [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Prémio «Orçamento de Estado»

O livro de cima é um hino aos infor-trôpegos deste mundo; o outro, a avaliar pelo título, deve ter sido inspirado por algum obscuro burocrata...

OS LAÇOS RASGADOS

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Por Baptista-Bastos
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PASSÁMOS A VIDA a andar de um lado para o outro. A saída foi sempre determinada pelo sofrimento. E o sofrimento tem várias faces: a miséria, o desemprego, a repressão, a perseguição, a guerra, a ausência de futuro. Criámos um leito de nações e depusemos o espigão da língua um pouco por todo o mundo. E o Tejo, o claro e ledo Tejo de Camões, foi sempre um rio de partida; a chegada envolvia catástrofe: o regresso do que sobrava das caravelas, os caixões dos mortos, o retorno discreto dos estropiados do conflito colonial, a remigração dos que se não haviam adaptado a terras novas. O espelho poliédrico desta história atormentada reflecte algo de transgressivo. O Alpedrinha, que o Eça foi encontrar na Alexandria, é, afinal, um friso de rostos e de signos que formam Portugal. Se o português está em todo o lado, que saiba abrir os braços a quem dele precisa. Um livro, O Negro em Portugal, uma Presença Silenciosa, de José Ramos Tinhorão, revela, sem sorrisos ortopédicos, o que admitimos e o que rejeitámos. E não nos temos portado muito bem. Também muito bem não temos sido tratados. Os bidonvilles dos arrabaldes parisienses não são exemplos únicos. Areámos os metais aos suíços, afagámos os tornos nos acelerados terminais de produção da Alemanha, limpámos a neve em Nova Iorque, abrimos os secos e molhados no Rio de Janeiro, asseámos o sujo em todos os países que precisassem de mão-de-obra barata.
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A imagem devolvida desse imenso tropel de aflição está simbolizada no título "Queremos ficar, ajudar o País e trazer a nossa família", impresso na página 9 do DN de anteontem. É o dramático apelo de um imigrante paquistanês, indocumentado, durante a marcha, em Lisboa, contra a sinistra "política de retorno" da União Europeia. Poderia muito bem ser o grito de um português imigrado em Paris, em Berlim, em Basileia. O indocumentado é um clandestino acossado pela própria sombra: assustado, submisso; a transposição da dignidade numa decomposição sem metáforas. E o carácter da xenofobia associa-se a essa pavorosa moral da servidão, que transforma a antiga vítima num inclemente algoz. A Europa social nunca, realmente, o foi, nem mesmo no vendaval de esperança que a assolou, logo após a II Grande Guerra. E a União é uma parábola de mentiras, embrulhada num sudário de palavras que já não convencem ninguém. Explora oito milhões de indocumentados, criando, entre os imigrados, o terror comum a todos os animais, que reagem violentamente porque apavorados. A Europa está cada vez mais laminada pela selvajaria de uma condição nocturna e tirânica, que se abateu sobre a ideia de democracia e civilização. E os políticos são os primeiros hipnotizados pelo que dizem e pelo que, sabendo-o, recusam desocultar a verdade. Creio que os laços estão definitivamente rasgados.
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«DN» de 15 de Outubro de 2008
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NOTA: este texto é uma extensão do que está publicado no Sorumbático [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Ao lado de um amigo

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Por Alice Vieira
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REGRESSO DA SUÉCIA e encontro o meu computador entupido de mensagens, quase todas começando da mesma maneira, “então o B.B., já soubeste?”
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Lancei-me sobre o telefone, a tentar saber o que de tão terrível teria acontecido ao meu amigo mas confesso que, embora já se tenham passado alguns dias, ainda não entendi a razão do alarido desta história. Deve ser uma questão de fusos horários.
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Porque parece que toda a gente a entendeu - e berra, e grita, e pede a cabeça do B.B., como se fosse ele o responsável pela queda da Bolsa.
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A história, como todos sabem, mete uma casa da câmara que lhe foi atribuída quando a dele, em Alfama, caía aos pedaços.
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E de repente lembro-me de mim há quarenta anos, quando decidi, mesmo no termo de uma gravidez difícil, festejar o Sto. António nas Escadinhas de S. Miguel.
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A gente era tanta, os encontrões eram tantos que eu não sei o que teria sido de mim se, de repente, o B.B. não tivesse surgido de um vão de escada e não me tivesse arrastado para dentro de sua casa.
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Aflita como estava, lembro-me, no entanto, de ter olhado para a sala para onde ele me levara e de pensar, “como é que ele consegue trabalhar aqui?”
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Como é que ele conseguia escrever naquele quase cubículo, naquela mesa, sempre a ser necessária para outras coisas, donde ele constantemente se retirava para dar lugar aos pratos do almoço, ou do jantar, ou do que fosse.
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E é por isso que este bem organizado concerto de protestos contra o B.B. me deixa fora de mim. Porque tenho a certeza de que se ele estivesse agora na situação de há quarenta anos, ninguém levantava a voz.
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É claro que nestas coisas tem de haver transparência e honestidade, e isso tudo. Não contesto.
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Mas tenho a certeza de que o B.B. — que é chato, que é às vezes insuportável, que é incómodo, que é volta e meia inconveniente – é também incapaz de uma desonestidade ou de prejudicar seja quem for. Coisa de que nem todos aqueles que o acusam se podem gabar.
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E mais: tenho a certeza absoluta de que, se em vez de ser o B.B. (ou outro escritor, ou enfim, aquilo a que se costuma chamar “artista”) o caso se passasse com um futebolista, um treinador ou alguém de profissão afim, ninguém se sentiria ofendido. Era até uma honra para a cidade!
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Esta é uma crónica irritada? Uma crónica a tomar partido? É, sim senhora. E com muita raiva de só ter 2.300 caracteres para ficar ao lado de um amigo.

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«JN» de 12 de Outubro de 2008