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Por Nuno Crato
NUM LIVRO POLÉMICO acabado de sair em tradução portuguesa, Liping Ma defendeu algumas ideias sobre o ensino da matemática que tiveram o mérito de colocar um debate antigo em bases novas. Durante anos, uma polémica opôs, num extremo, os que pensavam que ao professor bastava ter estudado a ciência que ensinava e, noutro extremo, os que pensavam que lhe bastava saber muito de didáctica e de pedagogia. De um lado, ensinou-se aos futuros professores tópicos avançados, sem qualquer preocupação com as matérias que iriam ensinar. De outro, ensinaram-se sobretudo teorias pedagógicas, como se elas pudessem suprir a falta de conhecimento substantivo dos professores.
Como sempre, os exageros floresceram. Em algumas faculdades, os futuros professores estudaram literatura comparada, mas não tiveram práticas de escrita; noutras passaram anos a digerir ensaios de sociologia pós-moderna sobre a «metáfora educativa», mas pouco estudaram do que iriam ensinar. Há casos grotescos. Num documento recomendado em alguns departamentos de educação defende-se, por exemplo, que «o problema actual pode estar no nível de sofisticação do conhecimento matemático dos professores», e que uma «grande diferença entre o conhecimento abstracto dos professores e o conhecimento abstracto dos alunos causam [sic] um desajustamento». Ou seja, «o fosso entre o conhecimento dos alunos e o dos professores é muito grande» para «estabelecer conexões» (p. 6), pelo que seria necessário, em vez de ensinar, «ajudar os alunos a inventar a Matemática» (p. 22). Para quem possa julgar que tenho estado a beber demais, [aqui] vai a referência exacta.
Liping Ma trouxe ideias novas que ultrapassam estes debates poeirentos. Depois de ter ensinado matemática elementar na China rural e ter começado uma investigação sobre o ensino nos Estados Unidos, esta professora chinesa entrevistou colegas dos dois países e notou que os melhores eram os que acabavam por conhecer profundamente a matemática que ensinavam, ou seja, os que a tinham estudado, na universidade ou individualmente, mas num nível superior. No seu livro, intitulado «Saber e Ensinar Matemática Elementar» (Gradiva), Liping Ma desenvolve esta ideia, mas faz muito mais do que isso. Fornece indicações preciosas a quem queira ensinar matemática e mostra, com muitos exemplos, que a matemática dos primeiros anos de escolaridade pode ser elementar, mas tem raízes profundas e deve ser profundamente dominada por quem a ensina.
Quem se deve estar a sorrir no túmulo é Felix Klein (1849–1925), um matemático alemão que marcou o programa de investigação do fim do século XIX e princípio do XX e que estendeu a sua influência até à actualidade. Pioneiro na introdução da álgebra abstracta para a organização da geometria, Klein dedicou os últimos anos da sua vida à organização de um centro de investigação em Goettingen e à reorganização do ensino. A sua obra mais conhecida neste último domínio foi tão influente e tão bem estruturada que tem sido continuamente editada em várias línguas. É lançada agora em português na colecção Leituras em Matemática da SPM e continua actual. Chama-se «Matemática Elementar de um Ponto de Vista Superior». Nem de propósito.
Por Nuno Crato
NUM LIVRO POLÉMICO acabado de sair em tradução portuguesa, Liping Ma defendeu algumas ideias sobre o ensino da matemática que tiveram o mérito de colocar um debate antigo em bases novas. Durante anos, uma polémica opôs, num extremo, os que pensavam que ao professor bastava ter estudado a ciência que ensinava e, noutro extremo, os que pensavam que lhe bastava saber muito de didáctica e de pedagogia. De um lado, ensinou-se aos futuros professores tópicos avançados, sem qualquer preocupação com as matérias que iriam ensinar. De outro, ensinaram-se sobretudo teorias pedagógicas, como se elas pudessem suprir a falta de conhecimento substantivo dos professores.
Como sempre, os exageros floresceram. Em algumas faculdades, os futuros professores estudaram literatura comparada, mas não tiveram práticas de escrita; noutras passaram anos a digerir ensaios de sociologia pós-moderna sobre a «metáfora educativa», mas pouco estudaram do que iriam ensinar. Há casos grotescos. Num documento recomendado em alguns departamentos de educação defende-se, por exemplo, que «o problema actual pode estar no nível de sofisticação do conhecimento matemático dos professores», e que uma «grande diferença entre o conhecimento abstracto dos professores e o conhecimento abstracto dos alunos causam [sic] um desajustamento». Ou seja, «o fosso entre o conhecimento dos alunos e o dos professores é muito grande» para «estabelecer conexões» (p. 6), pelo que seria necessário, em vez de ensinar, «ajudar os alunos a inventar a Matemática» (p. 22). Para quem possa julgar que tenho estado a beber demais, [aqui] vai a referência exacta.
Liping Ma trouxe ideias novas que ultrapassam estes debates poeirentos. Depois de ter ensinado matemática elementar na China rural e ter começado uma investigação sobre o ensino nos Estados Unidos, esta professora chinesa entrevistou colegas dos dois países e notou que os melhores eram os que acabavam por conhecer profundamente a matemática que ensinavam, ou seja, os que a tinham estudado, na universidade ou individualmente, mas num nível superior. No seu livro, intitulado «Saber e Ensinar Matemática Elementar» (Gradiva), Liping Ma desenvolve esta ideia, mas faz muito mais do que isso. Fornece indicações preciosas a quem queira ensinar matemática e mostra, com muitos exemplos, que a matemática dos primeiros anos de escolaridade pode ser elementar, mas tem raízes profundas e deve ser profundamente dominada por quem a ensina.
Quem se deve estar a sorrir no túmulo é Felix Klein (1849–1925), um matemático alemão que marcou o programa de investigação do fim do século XIX e princípio do XX e que estendeu a sua influência até à actualidade. Pioneiro na introdução da álgebra abstracta para a organização da geometria, Klein dedicou os últimos anos da sua vida à organização de um centro de investigação em Goettingen e à reorganização do ensino. A sua obra mais conhecida neste último domínio foi tão influente e tão bem estruturada que tem sido continuamente editada em várias línguas. É lançada agora em português na colecção Leituras em Matemática da SPM e continua actual. Chama-se «Matemática Elementar de um Ponto de Vista Superior». Nem de propósito.
«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 19 Set 09