sábado, 12 de setembro de 2009

Maria Clara

Por Alice Vieira
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A MORTE DE MARIA CLARA foi tão discreta que por momentos cheguei a pensar que se calhar eu tinha ouvido mal, que o amigo que me avisara também tinha ouvido mal, e que tudo não passava de uma lastimável confusão de nomes.

Durante dias procurei nos jornais, mas em lado nenhum a notícia aparecia, e as rádios não estavam a transmitir a “Figueira da Foz”, como seria normal.

Mas não era mentira: a discrição, que sempre a acompanhou em vida, seria a discrição que a acompanhou na morte.

A Maria Clara foi uma pessoa muito presente na minha infância e adolescência. Sempre me lembro de mim a ouvi-la na rádio, a vê-la no teatro, a trautear-lhe as canções.

Para além disso, os mexericos familiares (ainda não havia televisão, era preciso preencher os serões de qualquer maneira) muitas vezes recaíam nela: como era possível que um neto do Bernardino Machado (um dos heróis dos tios lá de casa) tivesse casado com…uma artista! (E nem vos descrevo a expressão das minhas tias ao pronunciarem esta palavra).

Mas já aí a discrição de Maria Clara se manifestava: não se divorciava, nem aparecia nas páginas da “Plateia” em declarações desbragadas.

E, no mês em que foi capa da revista “Os Nossos Filhos”, com um filho pequeno às cavalitas, as velhas renderam-se.

“Os Nossos Filhos” era uma publicação prestigiada, onde colaborava gente importante de várias áreas — e dirigida pela Maria Lúcia Namorado, nossa prima.

A partir dessa altura, a Maria Clara, lá em casa, passou à condição de ”artista-mas-nem-parece”.
Ideia reforçada muito tempo depois quando, num festival de televisão de que nem recordo o nome, o apresentador Pedro Moutinho se lembrou de se meter com ela de maneira considerada menos própria--e ela, ao vivo e em directo, se mostrou visivelmente desagradada.

Mas o que a levou, definitivamente, a entrar na galeria das pessoas que as minhas tias olhavam com respeito foi a decisão de largar as cantigas e ficar em casa a cuidar da família.

Isso sim, isso era de uma senhora! Isso era digno de uma neta (ainda que por afinidade…) do Bernardino Machado.

À distância destes anos todos, lembro-me que foi exactamente isso que eu então não entendi: como era possível que uma mulher, com aquela carreira, aquela voz, abdicasse de tudo para ser dona de casa.

Eu, que sonhava começar a trabalhar depressa para me livrar daquilo tudo, nunca lhe perdoei ter “prejudicado” a minha causa…

Mas foi tudo há muitos anos.

Hoje só sei que tenho passado os dias a ouvir a “Figueira” no Youtube e que, apesar de todos os lugares comuns, e as finas areias a rimar com as sereias, e essas coisas mil vezes cantadas e recantadas — choro que nem uma parva.

A minha filha tem razão: preciso mesmo de ir ao médico.

«JN» de 12 de Setembro de 2009