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Por Nuno Brederode Santos
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PARECE O CACIMBO AFRICANO, mas não é. É um capacete de humidade que abafa e que o paisano não estranha, tanta é a chuvinha que nos vai gelando os ossos. Mas acresce-lhe uma espécie de fuligem, daquela que nos devorava a garganta, quando, no Verão, a Malveira ardia. Não tenho explicação, mas incomoda. Só que, como tantos outros percalços da existência, não tem remédio ao nosso alcance.
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Sondei a Sara, o canídeo iluminado que devotou prazenteiramente a oportunidade, que a vida é, a disfrutar a sucessão dos seus momentos. Há entre nós uma afinidade filosófica. Mas foi em vão. Ansiosa e obsessiva, ela grudou-se ao fluir do tempo, à espera da eventual entrada de uma prima de sangue na Casa Branca. (Digo "prima" porque um senhor vizinho que, prudentemente, transferiu para a criação canina os rigores do sangue azul, asseverou que a Sara é a versão andaluza da eleita. Por mim, está bem. Porque, com Cervantes e Unamuno e outras prendas, a tanto monta o meu iberismo). Levantou os olhos por entre a franja preta e despejou em mim o antiquíssimo enfado dos animais domésticos perante donos que, para eles, o são também. Decidi, por isso, resignar-me. Porque é esse o exercício de que mais sólida tarimba guarda esta velha linhagem de rei, capitão, soldado, ladrão, menina bonita e os demais, em que me incluo. E deixei-a nos seus milenares langores mediterrânicos.
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Mas, se ouvir um médico, diz-me que saia de casa. E que ande muito e coma bróculos e deixe de fumar. Nada de novo, além de que nunca entenderei por que hei-de ser eu a pagar as más notícias. Se fizer um protesto oficial, ainda é pior. Desde logo, porque Deus não me ouve (e eu não posso censurá-lO, porque não sou um retribuinte exemplar). Depois, porque me sujeitava a tomadas de posição públicas da meteorologia, do Governo, dos partidos da oposição, do site de Santana Lopes e, com sorte, de um despacho-editorial de Alberto João Jardim. Se não merecesse até uma atroadora ambiguidade do Presidente da República, que logo me prantaria na mesa dos programas televisivos de debate. De ideias, creio.
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Perdido por mil, passei aos jornais. E dei com "PSD acusa sondagens de manipulação política". No texto de Paula Sá, "o PSD tinha prometido que não iria reagir a sondagens. Mas não resistiu" perante a da SIC e RR de sexta-feira, também publicada no Expresso de sábado. Agostinho Branquinho, "director executivo das campanhas do partido," reage, em jeito varonil: "Ou há manipulação ou essas campanhas não são de confiança." Claro que já meio mundo assinalou a consistência desses números da Eurosondagem - ou da tendência que revelam - com os demais, da Aximagem e da Intercampus, revelados na mesma mãozinha cheia de quarenta e oito horas (fora da qual, até se lhe podiam juntar outros números e indícios). Mas o mais surpreendente é aquela disjuntiva. Ou há manipulação ou não são de confiança. À primeira vista, poder-se-ia até pensar que, havendo manipulação, seriam de confiança. Ou que só havendo a confiança, que é do seu pessoalíssimo e discricionário critério, é que uma sondagem está isenta de suspeitas de manipulação. O critério, reconheço, é tentador: tivesse-me eu lembrado dele e já me teria feito muito jeito nos cruzamentos anónimos da minha vida privada. Mas o facto é que nem me ocorreu e o mérito vai inteirinho para esse olhar vigilante de rapace com que Agostinho Branquinho observa o mundo à nossa volta. A coisa tem tradição: Santana Lopes, na campanha eleitoral em que o PSD se atolou e perdeu, chegou a notificar a humanidade de que iria processar judicialmente as agências que davam números parecidos. E só o imenso fair-play que o partido assumiu na derrota é que as livrou do cumprimento da ameaça. Felizmente, a democracia vive muito de sabermos perdoar os factos irreversíveis. Mas tudo isto, repito, é à primeira vista. Só que eu não tenho aqui espaço, nem agora tempo, para uma segunda.
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Por isso, voltei atrás e contei à Sara. Sem mexer a cabeça, ela levantou os olhos, no mesmo jeito displicente com que me ouvira há bocado. Mas, agora, fez-se Lassie, Milou ou Rim-Tim-Tim, e deu à cauda.
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«DN» de 8 de Fevereiro de 2009. NOTA: Este post é uma extensão do que está publicado no Sorumbático [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.