sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

«A TROCA»

Por António-Pedro Vasconcelos
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TODA A GENTE DEVIA TIRAR DUAS HORAS na sua vida para ir ver o último opus de Clint Eastwood (C.E.): “A Troca”. O antigo cow-boy dos filmes de Sergio Leone tornou-se o último grande autor do cinema americano - como Almodovar é o último grande autor do lado de cá do Atlântico. Há dias, escrevi nesta coluna um artigo onde questionava o que é um mestre. É altura de discorrer sobre o que é um autor. Não há mestres que não sejam autores, mas há autores que não são mestres. C.E. pode não ser um mestre; o seu estilo não se distingue em muito do estilo de Ford, que, juntamente com Hawks, fixou os códigos do clacissismo americano, ou mesmo de Don Siegel, com quem ele aprendeu a filmar. Mas C.E. é indiscutivelmente um autor, porque tem uma obra: cada filme é uma peça num conjunto a partir do qual é possível identificar um estilo e um discurso.
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O percurso de C.E. é admirável. Como actor, primeiro nos westerns-spaguetti de Sergio Leone, depois sobretudo nos filmes de Siegel, cujo ponto mais alto é a criação do inspector “Dirty” Harry, cujo papel lhe vai render mais três filmes, C.E. afirma-se como o último dos primitivos – numa galeria onde cabem John Wayne, Gary Cooper e Randolph Scott -, actores lacónicos e sóbrios, que viviam do magnetismo da sua presença e onde o acting era limitado ao essencial. Em 67 cria a sua própria companhia de produção, a Malpaso;, e, em 71, ano em que morre o pai, lança-se finalmente na realização, assinando westerns ou filmes de intriga policial onde só retrospectivamente é possível vislumbrar uma coerência e uma ambição.
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E, finalmente, aos 58 anos, com “Bird”, que lhe dá a possibilidade de ilustrar a vida de Charlie Parker, C.E. dá largas ao que são as duas grandes paixões da sua vida: o cinema e o jazz, e atrai definitivamente as atenções da crítica. Daí para a frente, ganha direito a escolher os temas que quer e constrói uma obra.
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Hoje é fácil perceber que este percurso, mesmo se não foi planeado, revela um desejo: o de fazer o ”seu” retrato da América, um retrato pós-fordiano, ou seja, o retrato da América depois da conquista do oeste e a da consolidação da União, uma América da miscigenação e também das perversões da “law and order”, do desprezo dos direitos, da paranóia do patriotismo, dos abusos imperialistas e das ameaças à liberdade; uma América da corrupção, do racismo, da violência e daquilo que é a sua obsessão maior: o abuso do poder.
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Mas o que faz do cinema americano o mais importante do mundo, e de C.E. o mais importante dos cineastas vivos é, como cidadão, a luta inabalável pela matriz liberal dos valores fundadores da nação americana e, como cineasta, a sua fé, também inabalável, na matriz aristotélica da ficção ocidental. Mas sobre isso, proponho-me falar para a semana, até porque C.E. e “A Troca” justificam que lhes dediquemos um pouco mais de atenção.
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«Sol» de 17 de Janeiro de 2009
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NA SEMANA PASSADA, deixei em aberto duas questões, a propósito do mais recente filme de Clint Eastwood (CE): “A Troca”. Uma dizia respeito à eminência do cinema americano, a outra à importância da obra de CE. .

Vamos à primeira: porque é que o cinema americano é o mais importante do mundo (apesar de alguns extraordinários autores que povoaram a cinematografia europeia ou da crescente importância do cinema asiático)? Porque Hollywood manteve sempre uma fé inabalável na tradição republicana dos seus pais fundadores e na matriz liberal do seu sistema democrático: a liberdade, a justiça e o equilíbrio dos poderes, aquilo a que Lincoln chamou “o governo do povo pelo povo e para o povo”. .

Mesmo nos períodos de maior intervenção social, a denúncia das perversões e injustiças do funcionamento das instituições foram sempre feitos em nome desses valores. Capra, depois Brooks, Rossen, Dassin, ou seja, a geração dos anos 50, mais tarde Lumet e a “geração do Vietnam”, mais recentemente os cineastas do final da era Bush, assinaram filmes onde denunciavam os abusos do poder, a violência racista, a opressão social, as perversões da justiça ou a arrogância imperialista do seu país. O melhor exemplo e o mais recente desse cinema é precisamente CE. Mas (com excepção de um ou outro realizador comunista que, nos anos 50, atacando as raízes do capitalismo, pretendia abalar os alicerces da democracia liberal) nunca esses filmes puseram em causa o próprio sistema. Há uma espécie de consenso em Hollywood, que reflecte e consolida a consciência do homem comum, de que a liberdade é o valor supremo e a Declaração dos Direitos a Bíblia do sistema democrático. .

A segunda afirmação era que a popularidade do cinema americano está ligada ao facto de nunca ter contestado a sua origem aristotélica, o que implica o respeito pela estrutura dramática que o filósofo grego enunciou de uma vez por todas (os famosos três actos): um filme, como qualquer obra de ficção, tem necessariamente “um princípio, um meio e um fim” (e por esta ordem). Também nesse aspecto, CE é hoje o mais americano dos cineastas, na medida em que é o mais aristotélico. A ideia de que o cinema, e em geral a “arte moderna”, puseram em questão esta regra, é um embuste. No caso do cinema, tomemos o exemplo de dois cineastas - Welles e Rossellini - aos quais o epíteto de “moderno” é aplicado a torto e a direito, quando são, um e outro, dois dos mais sólidos cineastas aristotélicos. .

Mas há outra razão para evocar Aristóteles no caso de CE: nas palavras do autor da “Poética”, o espectáculo dramático deve provocar no espectador dois sentimentos propícios à catarsis: o terror e a compaixão. Quem não os reconhece em cada filme de CE?Eis um tema que me é caro: o autor como demiurgo. Mas isso, que me desculpe o leitor, terá ainda que ficar para a próxima semana. .

«Sol» de 24 de Janeiro de 2009

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QUE ME DESCULPEM OS LEITORES se eu já vou na terceira semana a escrever sobre “A Troca”, de Clint Eastwood (CE), mas o filme merece mais do que isso. CE filma a uma velocidade alucinante (já terminou outro filme, “Gran Torino”, que, diz-me quem o viu, é uma obra-prima), o que só pode acontecer, ou com um realizador comercial (que despacha encomendas com rapidez e eficácia), ou com os grandes autores quando atingem a maturidade, isto é, quando dominam os seus meios e encontraram o olhar justo sobre o mundo à sua volta. Tal como os grandes primitivos - Ford, Walsh, Hawks, Vidor -, que foram os primeiros a saber conviver com o sistema, CE conseguiu adquirir uma margem ilimitada de liberdade, respeitando as regras do jogo: um filme é um produto que se destina a satisfazer o máximo de espectadores no máximo de continentes..

Dizia eu na semana passada que CE, como qualquer grande cineasta, tinha atingido o estatuto do demiurgo. O realizador, como qualquer ficcionista, ocupa o lugar de Deus: não só cria os seus personagens e lhes atribui um papel num drama em que se jogam as grandes paixões - o amor e o ódio, o medo e o desejo, a vida e a morte -, como, sobretudo, é o senhor dos seus destinos. Diria mesmo que o que caracteriza os verdadeiros autores é essa capacidade de fazer justiça aos seus personagens: decidir, no final, quem merece salvar-se e quem merece ser condenado, quem não tem perdão, quem merece uma segunda chance, quem merece compaixão, quem merece ser exaltado e dado como exemplo. Numa palavra, como fez Dante na “Divina Comédia”, quem merece ir para o Inferno, para o Purgatório e para o Céu..

Durante anos interroguei-me sobre as razões que me levavam a admirar certos autores e certos filmes, e não outros: Preminger, Hawks, o Orson Welles tardio, o Renoir depois de “A Regra do Jogo” ou agora Clint Eastwood. E a razão é simples: um grande filme é aquele onde, a partir de um conflito irreparável, todos os personagens têm o que merecem. Não é esse, afinal, o segredo de “Casablanca”? .

Em “A Troca”, a partir do que é talvez o mais terrível dos conflitos - a perda de um filho – CE descreve-nos uma galeria de personagens cujo comportamento nos provoca horror e repulsa: mas, enquanto os polícias e o médico do Hospital não merecem perdão, porque a sua maldade é o resultado de uma escolha livre, o assassino das crianças é olhado como ininputável, pelo modo como CE dirige o actor e nos faz assistir ao lento calvário da sua morte na forca, e suscita, por isso, uma espécie de compaixão. .

Pela mão de CE, a mãe torna-se um personagem digno dos trágicos gregos. Que, no meio do seu desespero inconsolável, ela descubra, no fim, que o filho porventura morreu por ter tentado salvar o companheiro, eis uma bênção que CE lança, como um Deus misericordioso, sobre a sua heroína. O que é um grande filme senão um Juízo Final?
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«SOL» de 31 de Janeiro de 2009

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NOTA: Este post é uma extensão do que está publicado no Sorumbático [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

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