terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Metro em hora de ponta

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Por Alice Vieira
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“ACHAS que ele é o meu destino?”
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A carruagem do metro vai cheia e eu penso que é bom - neste tempo de desgraças diárias, de fraudes verdadeiras e inventadas a rebentarem a toda a hora – haver alguém que, numa tarde de chuva, esteja mais interessado nos desígnios dos astros do que nas chatices terrenas.
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“Achas que ele é o meu destino?”, repete, mas a amiga limita-se a encolher os ombros e então ela desata num discurso perfeitamente ininteligível, com números e mapas e conjunções de planetas e, com o ar sério das verdades indiscutíveis, garante à outra que nunca sabe em que tempo está, há alturas em que de repente é levada para 2034 (não sei se a data terá algum significado), e depois volta e depois recua séculos, sempre, sempre assim.
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Mas agora o que verdadeiramente a aflige é saber se ele é ou não o seu destino. A conjunção astral diz-lhe que não, mas a dúvida persiste.
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A amiga não está com muita paciência para a conversa, devem interessar-lhe problemas mais corriqueiros, se calhar a perspectiva de desemprego, se calhar a renda atrasada, enfim, coisas comezinhas que não se podem comparar a altas dissertações astrais.
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“Porque não lhe contas?”, pergunta.
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Então a outra explode, contar como, ela não pode contar a ninguém o que sente, o que se passa com ela, ela tem aquele dom, “porque isto é um dom”, repete, “ viajar pelo tempo é um dom que muito poucos têm, e se eu contasse quem é que me acreditava?, ainda diziam que eu era doida”.
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A outra até estremece, “credo!”, mas ela continua, “podes crer, por isso é que eu ando aqui tão calada, mas olha, há bocado tu não deste por nada mas eu não estava aqui! tu a falares comigo e eu sem te ouvir, muito longe!, mas depois voltei, tás a ver, agora estou aqui, mas não sei até quando”.
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As pessoas estão todas a olhar para ela, que fala muito alto, e é claro que o segredo, que quer tão guardado, já está espalhado pela carruagem inteira, mas ela não percebe, ela continua naquela angústia, será ele o seu destino?
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Porque se não for, diz, então tem de fugir, “não posso partilhar com ele um dom que é só de eleitos, e ele não é eleito”.
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“Eleito por quem?”
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A amiga decididamente está noutra onda, e ela irrita-se, “não percebes nada, pega mas é nos sacos, que saímos agora”.
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Os que continuam viagem olham uns para os outros com aquele ar de cumplicidade que estas coisas geram sempre.
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“Anda tudo doido…”, diz então um velho.
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“O meu marido é que sabe”, murmura uma senhora ao seu lado, “ele diz que as pessoas andam assim por causa de uma coisa que há no ar e que a gente respira sem dar por isso…”
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“Também já ouvi falar”, diz o velhote. “ Acho que é o buraco do ozono.”
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”Isso”, diz ela, encostando a cabeça ao vidro, e fechando os olhos.
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«JN» de 1 de Fevereiro de 2009

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