sábado, 28 de fevereiro de 2009

Violência

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Por Alice Vieira
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AINDA HOJE ME LEMBRO dos gritos dela. Vivia no andar acima do meu, mas mal a conhecia. Eu chegava tarde do jornal; ela chegava ainda muito mais tarde de um qualquer trabalho que eu não sabia qual era; eu saía muito cedo para apanhar o comboio para Lisboa, ela ainda ficava.
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Havia noites em que o choro e os gritos se ouviam na praceta inteira. Nós vínhamos à janela, olhávamos uns para os outros, e não sabíamos o que fazer.
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A polícia, sempre tão presente quando os clientes do bar ao fundo faziam mais barulho do que deviam, inexplicavelmente estava sempre distraída quando, daquele terceiro andar, rebentavam os gritos, as imprecações dele, e o barulho de vidros e louça que se partia.
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Numa das noites em que tudo foi (ainda mais) insuportável, no patamar da escada eu disse aos outros vizinhos, parados às suas portas, que ia telefonar para a polícia.
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Iam-me matando.
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Se eu não sabia que aquilo era zanga de marido e mulher.
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Se eu não sabia que não tinha nada que me meter pelo meio.
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Se eu não via os dois sempre juntos, e com ar muito feliz .
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Se ela quisesse denunciar, que denunciasse ela, isto é assim mesmo, nunca se sabe o que se passa dentro das casas dos outros.
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E rematavam sempre com aquela frase que justifica todo o nosso egoísmo:
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“ Cada um sabe de si.”
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Se calhar eu não lhes devia ter dado ouvidos e devia mesmo ter chamado a polícia.
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Nunca chamei.
Um dia o casal desapareceu, nunca soubemos para onde.
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Recordava eu esta história há dias entre amigos quando, para surpresa minha, um deles veio outra vez com essa ideia de “eles lá sabem, não nos devemos meter, não temos nada com isso”.
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Pelos vistos, nem todos os cartazes, nem toda a publicidade, nem todas as campanhas chegam para chamar a atenção sobre o dever de denunciar a violência doméstica — que aumenta assustadoramente, e se esconde, e se mascara, e tantas vezes se nega a si própria.
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Denunciar a violência que se exerce contra as mulheres - não!
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Até porque temos de poupar as nossas forças para denunciarmos — e aí sim, com toda a nossa energia! os que ao nosso lado contam anedotas contra o governo, ou os que lançam imagens no “Magalhães” em tempo de Carnaval, ou os que a medo rapam de um cigarrito envergonhado, ou os que põem à venda livros com capas que não agradam ao pacato chefe de família que vai a passar e que, se calhar, no remanso do seu lar, até vê sites que não devia …
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Nesses, sim. Nesses é malhar, vilanagem!


«JN» de 28 de Fevereiro de 2009 - NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.