sábado, 18 de abril de 2009

Cantigas, leva-as o vento

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Por Antunes Ferreira
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PARA COMEMORAR os seus 30 anos de carreira, os Xutos & Pontapés editaram um novo disco. Tim e os seus acompanhantes tornaram-se uma referência da música portuguesa e o seu estilo continua a defender bravamente o rock da pesada. Isto não teria nada de especial, seria mais uma notícia a juntar às milhentas que o grupo tem coleccionado.
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Porém, do álbum consta uma canção intitulada Sem eira nem beira, expressão que, é bem sabido, rotula normalmente situações muito desagradáveis em especial no que diz respeito ao desgoverno em que muita gente vive. Não ter eira nem beira é motivo para a piedade, mas também para a reprovação de quem não… sabe por onde vai e, pior, para onde vai.
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Durante o salazarismo surgiu em Portugal a canção de intervenção, que tinha absoluta razão de ser. Vivia-se numa ditadura, a maioria dos Portugueses (como é nossa característica principal) estava agarrada ao fatalismo. De tal sorte que nem um Dom Sebastião era buscado, tamanho era o nevoeiro. Somos, real e infelizmente, assim: passivos e resignados.
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O aparecimento de lutadores através do canto, Francisco Fanhais, José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira e tantos outros, encabeçados por José Afonso, o Zeca, veio dar o maior abanão ao que era o que então vingava – e que seria apelidado como o nacional-canconetismo, exemplo do nosso aberrante nacional-porreirismo.
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É nessa corrente que os Xutos se pretendem integrar. Ainda que, felizmente, não vivamos sob a pata de um qualquer ditador de meia-tijela. Mas, memo assim, o grupo nortenho entende que a canção de intervenção e de protesto tem justificação. O seu a seu dono. Em Democracia – quer se queira, quer não, é nela que vivemos – a opinião não é crime. Os Pontapés têm o direito de a ter. Ponto.
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Sem eira nem beira está a motivar uma polémica que vem subindo de tom na nossa sociedade. Apontada com ataque ao primeiro-ministro, ela já originou o esclarecimento do grupo de que era, na verdade, uma forma de protesto contra a maneira como vão as coisas em Portugal – mas não contra José Sócrates. No fundo, ainda que não o tenham dito, só gente de má-fé ou de raciocínio lento, poderá fazer tal associação.
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O certo é que a letra da canção parece ser suficiente para que uma esmagadora fatia dos Portugueses entenda que se trata de um ataque ad homine. Tome-se apenas o refrão: «Senhor engenheiro; Dê-me um pouco de atenção; Há dez anos que estou preso; Há trinta que sou ladrão; Não tenho eira nem beira; Mas ainda consigo ver; Quem anda na roubalheira; E quem me anda a comer».
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Coincidência? Os Xutos admitem-na, mas continuam a afirmar que não se trata de personalizar a crítica veiculada pela canção. Vistas bem as coisas, tudo indica que no entender deles, nós, os Portugueses, para além de sermos estúpidos por incapazes de entender o verdadeiro sentido e a intenção da Sem eira nem beira, ainda somos piores, ou seja, vemos o diabo onde apenas existe um protesto angélico. Somos, na verdade, intriguistas militantes.
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Não sejamos ingénuos. Ontem mesmo, o primeiro-ministro foi recebido em Viseu, onde se deslocara para inaugurar uma nova Pousada, por uns quantos manifestantes, professores e enfermeiros que entoavam a canção como bandeira do protesto que faziam. Os membros do grupo continuarão a negar a ligação? Contestem, protestem, insurjam-se – mas sejam coerentes.
Um assessor do chefe do Governo tinha vindo, antes, declarar que Sócrates não processaria os Xutos, o que, sendo simpático, é redundante. Ainda que o recurso à via judicial já tenha sido utilizado pelo titular de São Bento – em meu entender mal, como já neste blogue o expressei face ao caso do jornalista João Miguel Tavares – parece-me obviamente bem que o não seja utilizado agora. É a danada da Democracia.
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Temos, portanto, mais um motivo de mexericos e outros ditos neste triste quotidiano que é a nosso. Em meio de uma crise que cada vez mais se acentua e a que os números do Banco de Portugal vieram dar tonalidade muito próxima do negro. Mas, a memória dos homens, bem como a política, é curta, melhor, é curtíssima. Já ninguém parece lembrar-se, neste nosso País, do Lehman Brothers. Que foi o detonador de tudo o que vem acontecendo.
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Se calhar, já ninguém se quer lembrar de que a caixa de Pandora não foi aberta em Portugal. Anda muita gente mais preocupada com o Sem eira nem beira. O Povo, que cheirava mal dos sovacos e dos pés, diz que cantigas, leva-as o vento. Levará?