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Por Alice Vieira
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ANA DAVA AULAS numa escola no meio do nada, para lá do sol posto, sem as mínimas condições para nela se ensinar fosse o que fosse. Ana dizia muitas vezes que aquilo devia ser o Ministério a testar as suas capacidades pedagógicas e a sua resistência física.
Por Alice Vieira
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ANA DAVA AULAS numa escola no meio do nada, para lá do sol posto, sem as mínimas condições para nela se ensinar fosse o que fosse. Ana dizia muitas vezes que aquilo devia ser o Ministério a testar as suas capacidades pedagógicas e a sua resistência física.
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A escola não tinha nada, absolutamente nada, do mínimo que uma escola devia ter: não tinha mapas, não tinha a caixa de sólidos para ensinar geometria, não tinha nenhuma espécie de material, até mesmo o quadro preto já se limpava com dificuldade, tantos os anos de uso.
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Mas a Ana foi sempre de um optimismo inquebrantável: todos os meses, aliando uma perseverança notável a uma ainda mais notável caligrafia, escrevia uma carta ao Ministério, pedindo material, dizendo que era impossível ensinar fosse o que fosse - acrescentando, para ver se os comovia - que a escola nem sequer tinha na parede os retratos do Senhor Presidente da República nem do Senhor Presidente do Conselho, e que aquilo era uma vergonha.
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A D. Cândida, que de manhãzinha limpava a escola, até se ria, “eu nem sei para que é que gasta tanto dinheiro em selos se eles não ligam nenhuma”.
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Mas todos os meses Ana escrevia a carta, e todos os meses o Ministério respondia com o mais profundo silêncio.
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Até que um dia, ao chegar à escola, Ana viu D. Cândida numa imensa euforia, correndo até ela, gritando que o material tinha chegado, milagre!, ela nem queria acreditar mas a verdade é que estava ali um caixote, vindo do Ministério, que uns homens tinham largado logo de manhã.
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Ana também não queria acreditar, finalmente ia ser professora a sério e ensinar a sério.
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Feliz diante do milagre, D. Cândida não parava de falar, dizendo que a única coisa esquisita tinha sido a pressa dos homens, nem tinham saído da carrinha,” abriram a porta e zás!, atiraram com o caixote”, e ela a perguntar “então não é preciso assinar uma guia nem nada?”, e eles a berrarem que depois se via, que aquilo em Lisboa ia uma grande confusão, que eles nem sabiam bem o que era, mas não devia ser nada de bom e o melhor era porem-se a andar depressa.
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D. Cândida ria e quase jurava que eles tinham falado em revolução. Ana deu uma gargalhada, “ó D. Cândida, revoluções em Lisboa?”, mas logo deixou de rir: no caixote, o único “material escolar” que o Ministério lhe mandava eram os retratos do Senhor Presidente da República e do Senhor Presidente do Conselho. Nem um mapa, nem sequer um pauzinho de giz. Os retratos, mais nada.
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E é por isso que hoje, quando lhe perguntam “onde é que estava no 25 de Abril?”, Ana responde sempre: “ a olhar para dois retratos, que nunca foram pendurados.”
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«JN» de 25 de Abril de 2009
A escola não tinha nada, absolutamente nada, do mínimo que uma escola devia ter: não tinha mapas, não tinha a caixa de sólidos para ensinar geometria, não tinha nenhuma espécie de material, até mesmo o quadro preto já se limpava com dificuldade, tantos os anos de uso.
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Mas a Ana foi sempre de um optimismo inquebrantável: todos os meses, aliando uma perseverança notável a uma ainda mais notável caligrafia, escrevia uma carta ao Ministério, pedindo material, dizendo que era impossível ensinar fosse o que fosse - acrescentando, para ver se os comovia - que a escola nem sequer tinha na parede os retratos do Senhor Presidente da República nem do Senhor Presidente do Conselho, e que aquilo era uma vergonha.
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A D. Cândida, que de manhãzinha limpava a escola, até se ria, “eu nem sei para que é que gasta tanto dinheiro em selos se eles não ligam nenhuma”.
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Mas todos os meses Ana escrevia a carta, e todos os meses o Ministério respondia com o mais profundo silêncio.
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Até que um dia, ao chegar à escola, Ana viu D. Cândida numa imensa euforia, correndo até ela, gritando que o material tinha chegado, milagre!, ela nem queria acreditar mas a verdade é que estava ali um caixote, vindo do Ministério, que uns homens tinham largado logo de manhã.
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Ana também não queria acreditar, finalmente ia ser professora a sério e ensinar a sério.
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Feliz diante do milagre, D. Cândida não parava de falar, dizendo que a única coisa esquisita tinha sido a pressa dos homens, nem tinham saído da carrinha,” abriram a porta e zás!, atiraram com o caixote”, e ela a perguntar “então não é preciso assinar uma guia nem nada?”, e eles a berrarem que depois se via, que aquilo em Lisboa ia uma grande confusão, que eles nem sabiam bem o que era, mas não devia ser nada de bom e o melhor era porem-se a andar depressa.
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D. Cândida ria e quase jurava que eles tinham falado em revolução. Ana deu uma gargalhada, “ó D. Cândida, revoluções em Lisboa?”, mas logo deixou de rir: no caixote, o único “material escolar” que o Ministério lhe mandava eram os retratos do Senhor Presidente da República e do Senhor Presidente do Conselho. Nem um mapa, nem sequer um pauzinho de giz. Os retratos, mais nada.
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E é por isso que hoje, quando lhe perguntam “onde é que estava no 25 de Abril?”, Ana responde sempre: “ a olhar para dois retratos, que nunca foram pendurados.”
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«JN» de 25 de Abril de 2009
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NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.
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