terça-feira, 14 de abril de 2009

Três crónicas sobre o "dressing code"

-
I
Conta-me como foi
Por Helena Roseta
-
COMECEI POR TER um problema de mangas. Quando era miúda, menina que ousasse ir à missa no verão com vestido sem mangas era imediatamente admoestada. Tínhamos de andar sempre com um casaco de malha à mão, coisa que até hoje me deixou de mal com semelhante acessório.
.
Mais tarde apareceu o problema das meias. Pelos meus quinze anos, comecei a largar os soquetes pelas meias de vidro (ainda não havia collants). À porta do liceu Maria Amália as vigilantes investigavam-nos com muita atenção para verificar se trazíamos as pernas cobertas, mesmo que apenas de nylon transparente. Por fim veio o problema das calças. Foi já na universidade, em 1969, que decidi ir pela primeira vez de calças para as aulas. Era um par de jeans de bombazina, amarelo-torrado, que tinha trazido de Espanha. Foi um acontecimento. Mulheres de calças só no verão e na praia, de preferência em estilo “corsário”, mas nunca na Baixa, onde se situava a Escola de Belas Artes em que eu estudava arquitectura. A coisa passou como uma extravagância “artística”, mas ainda recordo os olhares de censura sobre mim, Chiado acima, nesse funesto dia.
.
Por estas e por outras o 25 de Abril acabou por ser também uma libertação no tocante ao vestuário. Uma das primeiras grandes decisões que tomei lá em casa, ainda antes daquele inesquecível 1.º de Maio de 1974, com Lisboa toda na rua e a primavera a rebentar, foi decretar o fim do uso das botas da escola das crianças: dali em diante, a liberdade passava por sandálias. Mas a verdade é que os meus problemas não acabaram com a instalação do novo regime democrático. Já nos anos 80, era eu Presidente de Câmara em Cascais, onde costumava chegar todos os dias muito cedo. Um belo dia resolvi levar umas bermudas, último grito da moda, compradas em França. Horas mais tarde a minha mãe telefonava-me muito aflita. Alma caridosa tinha alertado o prior para o “escândalo” e o “mau exemplo” que eu estava a dar. Nesse dia, com 36 anos, fiz uma jura solene: nem padre, nem mãe, nem ninguém me haveria nunca mais de dizer o que podia ou não vestir.
.
Entretanto a sociedade evoluiu e os hábitos de vestuário também. Os jeans, que eram um adereço informal difícil de comprar em Lisboa há 40 anos, são hoje uma peça universal e um símbolo de moda apropriado pelas melhores marcas. O mesmo aconteceu com as sapatilhas, antes só imagináveis para uso desportivo e que agora, para grande conforto dos pés das mulheres, se calçam todos os dias.
.
Por tudo isso, a notícia de que uma tal Agência de Modernização Administrativa está a impor um dressing code na Loja do Cidadão de Faro, que inclui a proibição de “saias curtas, decotes exagerados, gangas e perfumes agressivos” soou-me a um impensável regresso ao passado. Há “modernizações” que mais não são que uma espécie de “extreme make-over” directamente inspirado pelos códigos pseudo-puritanos e repressivos do salazarismo. Presumo que o toque “moderno” tem sobretudo a ver com os “perfumes agressivos”. Seja como for, a imposição de tais normas de vestuário, ainda por cima só para mulheres, é serôdia e inaceitável.
.
Ora aqui está um caso para a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego se pronunciar. Por mim sugiro às funcionárias da Loja do Cidadão de Faro uma forma especial de luta: exigir que o Estado lhes ofereça fardas de corte Armani. Só assim poderão brilhar nas inaugurações oficiais que o engenheiro gosta de nos servir todas as noites pelo telejornal.
-
II
Saias e decotes
Por Joaquim Letria
-
VAI POR AÍ MUITO BARULHO a propósito da proibição de decotes pronunciados e saias demasiado curtas nas repartições oficiais. Sou totalmente a favor desta disposição governamental!
.
Se as mulheres não sabem vestir-se de acordo com as circunstâncias, bom é que as orientem. E não tem nada a ver com moral, do meu ponto de vista. Trata-se de bom gosto e de boas maneiras, para não nadarmos nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
..
O problema é originado, como tudo o resto, na falta de instrução e de educação. Basta ver a maioria das fotos que este jornal publica: as meninas apresentam-se nas festas como se trabalhassem em casas de alterne e trabalham nas repartições como se fossem vendedoras de sex-shops. Por estas e por outras é que acho bem que haja um “dress code”. E que tal os padres voltarem ao cabeção?! E os militares ao uniforme?
.
Se as freiras e as mulheres polícias soubessem a ponta que as fardas fazem, nunca mais andavam à paisana!...
.
III
Decoro
Por João Paulo Guerra

Uma onda de pudicícia percorre o país. Portugal está muito preocupado com algumas exterioridades. Primeiro foram as regras de decoro na Loja do Cidadão de Faro. Agora são as ‘neps’ do atavio da tropa.
.
UMAS E OUTRAS são normas contra o atrevimento, a bardinice, a pouca-vergonha. Sobem as dificuldades das vidas dos portugueses? Pois que baixem as bainhas das saias, que se acabe com a garridice e o desaforo. É que pelo caminho das minissaias, dos decotes, das gangas, e também das tatuagens, ‘piercings' e maquilhagens, qualquer dia os portugueses... estavam fumando.
.
E isso não pode ser. Os portugueses têm que tomar consciência que isso do descoco, da desfaçatez e da frescura pertence a um passado de desregramento e deboche. Este país tem os seus maiores como exemplos: homens e mulheres resguardados, modestos, metidos consigo, embiocados e pudendos. Homens e mulheres arredios às frivolidades das modas, às doudices das ciências e aos devaneios das tecnologias. Homens e mulheres de "hábitos morigerados", "brandos costumes", xailes ou lenços pela cabeça, saias abaixo do joelho, jaquetão preto, calças de fantasia e chapéu no toutiço, para o tirar quando se cumprimentam os superiores.
.
Isso mesmo: o país salazarento, das regras de recolhimento para uso externo e cenografia de aparências. Porque a liberdade tomada por libertinagem foi apenas uma aragem que passou por aqui. E agora, que se aproxima a celebração de uma data folclórica e utópica, há que esquecer as quimeras e retomar a modéstia das ambições e o decoro dos costumes. Para o que, graças a Deus, ainda há dirigentes com vergonha.
.
Há mesmo dirigentes com vergonha do 25 de Abril. Quando o 25 de Abril é que teria razões para ter vergonha deles.
-
NOTA: Estas três crónicas foram publicadas em 14 Abril de 2009 - respectivamente: no «Público», no «24 Horas» e no «DE». Eventuais comentários deverão ser afixados no Sorumbático, [aqui].