domingo, 11 de janeiro de 2009

BALADA DA NEVE

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Por Nuno Brederode Santos
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NUMA EUROPA ENREGELADA, ainda há dois dias Lisboa era, por uma luxuosa diferença de três graus, a mais quentinha das capitais europeias: onze graus contra oito de Roma, com Madrid e Atenas bem abaixo. Não diz nada mais do que isso: Port-au-Prince é bem mais quente do que Toronto. Mas, nos estritos limites daquilo em que o clima nos envolve, era talvez a boa nova possível. Mas não serviu e não chegou. O frio da noite confinou-nos à legítima defesa das nossas casas, que é onde, às primeiras castanholas da dentição que nos restar, sabemos onde jaz um cobertor suplementar e podemos aquecer à temperatura dos infernos uma sopinha da véspera. Pasmamos, assim, sofá abaixo, sem coragem para brandir livro ou jornal, para que as mãos não congelem. No meu caso, acresce até a singularidade de o frio intenso, tal como o seu putativo adversário que é o calor em excesso, me trazer a sonolência. Penso até que isso demonstra que o sono, em mim, mais do que pretexto, é mesmo ideologia. Mas, voltando ao fado: em frente da nossa tiritante imobilidade, só vive e mexe um televisor, onde, libérrima, infrene, se exercita o melhor da criatividade, privada e pública, de que, velha nação, somos capazes.
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Vai daí, surgem as tão esperadas notícias. Derramam-se estagiários pelo país inteiro, que perguntam aos transeuntes, nas afogueadas horas da corrida para os empregos, o que têm a dizer do frio. Que sim, que é muito, dizem os coitados em trânsito. “E como é que se preveniu?”, perguntam jovens jornalistas, vibrando na paixão do seu futuro múnus. “Trago uma camisola por baixo”, responde o português médio (aquele que até então julgávamos meramente estatístico), impante nos seus minutos de Warhol. “E em casa?”, insiste o jovem. “Em casa ligo o aquecimento”, diz a presa. “Mas é caro…”, sugere o tirocinante. “Pois é, mas tem de ser”, fataliza o cidadão. “E pronto, Fulano”, remata a glória prometida, dirigindo-se ao pivot, “daqui, de Poiares de Mim, onde a neve surpreendeu as pessoas, mas a vida tem de continuar, é tudo. Para o Canal Tal, Cicrano, com imagens de Beltrano”. Volta o pivot, para, enfim, sabermos do parlamento, ou da crise na Europa, ou da empresa em dificuldade, ou do martirológio de Gaza, ou da vaga de fundo de Soares Franco. Mas não: “vamos agora ligar a Fulana, que se encontra em Lugar de Mourejos”. E lá vêem cabras e granitos e xailes negros e cafés de aldeia, onde a bica se serve ao balcão de alumínio a clientes de luva e gorro de lã. A atenção já se esvai, arrasta-se viscosamente pelos objectos que nos circundam o sofá. A quase meia hora que lá vai, somada à certeza de que ainda faltam estradas bloqueadas, limpa-neves e gente simpática que visita idosos, parece-nos - e é – mais longa do que qualquer cerco de Lisboa. As pálpebras descem devagar, como, no último mastro, a bandeira do vencido. A cidadania escoa-se num negrume consentido (e, afinal, libertador).
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Acordamos, aos gritos do festejo de um golo tardio. E percebemos que o parlamento, a crise, as empresas e Gaza, se foram, já lá não estão – pois, no meu caso, para a vaga de fundo, já não sobra a paciência. Passaram-se quarenta e cinco minutos, mas o noticiário seguinte devotará novamente a primeira meia hora ao esplendor da neve e aos rancores das criaturas. Notícias? Lá para a semana. Porque até lá, mesmo que eu veja três noticiários seguidos, continuarei a adormecer com a neve e a acordar com o golo. Nada sei, pois, do que se passa. O que também tem a sua dimensão de serviço público.
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Saio à rua, desafiando este gélido nono círculo do inferno. Penso na crise e na melhor forma de a enfrentar. E tomo uma decisão: a minha estratégia para ela vai ser, com excepção de três eleições em que irei votar, a de me tornar num velhinho intratável. Egoísmo pertinaz, solidariedade zero. Um sociopata, mesmo que não consume violências maiores do que o legítimo resmungo. Encontro, por acaso, o José Duarte. Esse mesmo: “um, dois, três, quatro, cinco minutos de jazz”. “'tás bom?”, pergunta ele. “'tou. Já sei como defender-me da crise. Vou transformar-me num velhinho intratável”, respondo, muito brioso. Nem nos western spaghetti se sacava tão depressa quanto ele o fez: “Isso já és”.
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«DN» de 11 de Janeiro de 2009