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Por Alice Vieira
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FILHOS SÃO BICHOS RAROS. Dizemos “são tal qual a minha cara”, ou “são iguais a mim em tudo”— e depois um dia descobrimos que, em (aparentemente) insignificantes pormenores, são verdadeiros estranhos.
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A minha filha, que é das pessoas com quem eu me dou melhor, que é uma cópia de mim em tantas coisas — noutras é diametralmente oposta.
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Uma das coisas que irremediavelmente nos separam é “a tralha”. Ou aquilo a que ela chama “tralha”.
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“Palavra que não sei como consegues viver no meio desta tralha toda”, diz ela muitas vezes quando vem cá a casa.
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Acontece que a minha filha ainda não viveu tempo suficiente para ter a casa dela cheia de tralha e, pior do que isso, para não poder viver sem ela.
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Aquilo a que ela desdenhosamente chama “tralha” são objectos que marcaram a minha vida. Que me foram dados por pessoas muito amadas e que já morreram. Ou que estão vivas mas desapareceram do meu lado. Ou que estão longe e assim parecem mais perto. Ou que aparecem pouco, mas são muito importantes para mim. Coisas que não servem para nada — a não ser para me ajudarem a suportar a vida.
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Não seria capaz de viver numa casa decorada por profissionais—que decerto não iriam encher as minhas mesas de pedras, folhas secas, búzios, postais, desenhos dos netos, frascos cheios de canetas, etc.
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Tudo o que eu tenho em casa—tirando os objectos necessários à nossa vida quotidiana — tem uma história, recorda alguém, lembra um lugar ou marca um tempo.
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Um dos homens da minha vida deu-me esta pedra achada na rua, que é tal qual a cara de uma pessoa a rir. “Quando eu cá não estiver”, disse, “já tens quem se ria como eu”.E como tinha a paixão das folhas, enchia-me a casa com elas. Às vezes abro um livro e lá cai uma folha seca. E eu sei exactamente de que árvore veio, em que dia, e por que razão a guardei.
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Esta coisa estranha de madeira, a tapar um espelho, deu-me a minha amiga Mara em Timor, explicando-me que os espelhos têm de estar sempre bem tapados para que não nos roubem a alma.
Por Alice Vieira
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FILHOS SÃO BICHOS RAROS. Dizemos “são tal qual a minha cara”, ou “são iguais a mim em tudo”— e depois um dia descobrimos que, em (aparentemente) insignificantes pormenores, são verdadeiros estranhos.
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A minha filha, que é das pessoas com quem eu me dou melhor, que é uma cópia de mim em tantas coisas — noutras é diametralmente oposta.
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Uma das coisas que irremediavelmente nos separam é “a tralha”. Ou aquilo a que ela chama “tralha”.
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“Palavra que não sei como consegues viver no meio desta tralha toda”, diz ela muitas vezes quando vem cá a casa.
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Acontece que a minha filha ainda não viveu tempo suficiente para ter a casa dela cheia de tralha e, pior do que isso, para não poder viver sem ela.
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Aquilo a que ela desdenhosamente chama “tralha” são objectos que marcaram a minha vida. Que me foram dados por pessoas muito amadas e que já morreram. Ou que estão vivas mas desapareceram do meu lado. Ou que estão longe e assim parecem mais perto. Ou que aparecem pouco, mas são muito importantes para mim. Coisas que não servem para nada — a não ser para me ajudarem a suportar a vida.
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Não seria capaz de viver numa casa decorada por profissionais—que decerto não iriam encher as minhas mesas de pedras, folhas secas, búzios, postais, desenhos dos netos, frascos cheios de canetas, etc.
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Tudo o que eu tenho em casa—tirando os objectos necessários à nossa vida quotidiana — tem uma história, recorda alguém, lembra um lugar ou marca um tempo.
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Um dos homens da minha vida deu-me esta pedra achada na rua, que é tal qual a cara de uma pessoa a rir. “Quando eu cá não estiver”, disse, “já tens quem se ria como eu”.E como tinha a paixão das folhas, enchia-me a casa com elas. Às vezes abro um livro e lá cai uma folha seca. E eu sei exactamente de que árvore veio, em que dia, e por que razão a guardei.
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Esta coisa estranha de madeira, a tapar um espelho, deu-me a minha amiga Mara em Timor, explicando-me que os espelhos têm de estar sempre bem tapados para que não nos roubem a alma.
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Este postal, com flores a rebentarem pelo meio de pedras, mandou-me a minha amiga Dina, com uma frase que me ajuda sempre nos dias maus.
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Este coração de vidro deu-me a Ana Gabriela, que enfrentou comigo maleitas complicadas, de que nos safámos ambas porque somos difíceis de abater.
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E ao lado está um minúsculo sino de metal que me deu o António, num dia em que chorámos baba e ranho no ombro um do outro.
E que seria eu sem os retratos que me espreitam de todos os cantos? Como poderia andar pela casa se eles não olhassem para mim? Se eu não ouvisse as suas vozes, tão nítidas, rebentando das molduras?
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E agora digam-me lá como é que eu posso chamar “tralha” a isto.
Este postal, com flores a rebentarem pelo meio de pedras, mandou-me a minha amiga Dina, com uma frase que me ajuda sempre nos dias maus.
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Este coração de vidro deu-me a Ana Gabriela, que enfrentou comigo maleitas complicadas, de que nos safámos ambas porque somos difíceis de abater.
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E ao lado está um minúsculo sino de metal que me deu o António, num dia em que chorámos baba e ranho no ombro um do outro.
E que seria eu sem os retratos que me espreitam de todos os cantos? Como poderia andar pela casa se eles não olhassem para mim? Se eu não ouvisse as suas vozes, tão nítidas, rebentando das molduras?
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E agora digam-me lá como é que eu posso chamar “tralha” a isto.
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«JN» de 4 de Janeiro de 2009. Este post é uma extensão do que será publicado no Sorumbático [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.
«JN» de 4 de Janeiro de 2009. Este post é uma extensão do que será publicado no Sorumbático [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.