Por Antunes Ferreira
TINHA IDO À ROMÉNIA em 1985 para entrevistar para o DN o tovarich (camarada) Niculae Ceauşescu. Um Amigo que me pediu para não revelar o seu nome, à cause des mouches, proporcionou-me um encontro com o jornalista e escritor Keno Verseck, que fora por diversas vezes preso pela todo-poderosa Securitate, a PIDE lá do sítio. Estabeceu-se, de repente, uma empatia que duraria ao longo dos anos. Fomos tomar umas ţuicăs (aguardente de ameixa) ao Ateneul Român, no centro da capital e Keno convidou-me para em seguida almoçar.
Tiro e queda. Uns sarmale para começar, uma ciorba de pui e mititei cu mămăligă acompanhado por um Murfatlar de estalo e, no final um prăjitură: clătite cu brinză de vaci. Cafea e rechiu vechi. Um monumento gastronómico. Traduzo: uns rolinhos de folhas de videira recheados de carne (na Grécia, na Turquia, na Bulgária também existem e já ali os provei); sopa ácida de galinha; croquetes de carne grelhados com papas de milho encorpadas; vinho de muito boa qualidade; bolo; crepes com queijo branco; café e aguardente velha.
O Ateneul (ul é o artigo o, desculpem o pleonasmo repetitivo. O Romeno tem declinações, porra!) já então era um santuário de escritores, jornalistas, poetas, músicos, pintores, enfim, gente ligada às Artes. Saboreávamos o néctar que eu julgava final, quando se aproximou uma Senhora. Keno levantou-se, deu-lhe três beijos nas faces e abraçou-a. Ela correspondeu na mesma medida.
Voltando-se para mim: «Quero apresentar-te a Herta Müller.» Confesso que não sabia absolutamente quem ela era e o meu ar interrogativo fez rir os dois. «Falas um pouco de alemão, penso?» Respondi-lhe «Ein wenige…» E acrescentei um macarrónico «Ich kan verstehen, klein, klein…» Então, o riso tornou-se em gargalhadas, as dela mais sonantes.
Resumindo: falámos em francês que todos dominávamos e o Verseck informou-me que se tratava de uma escritora romena, excelente, de cultura alemã. E a ela, ele sublinhou «este Senhor é um grande jornalista Português…», ao que atalhei «Só se for no tamanho» o que deu fruto: novas casquinadas.
A conversa prolongou-se pela tarde. Ela também fora e era perseguida durante o reinado do presidente comunista. Trocámos ideias sobre essas coisas da privação da liberdade, dos crimes de opinião – ela sabia algo sobre o regime salazarento – e fomos por aí fora, entre a aguardente de ameixa e o conhaque. E as recordações. O Romeno é a única língua – que eu conheça – que tem a palavra saudade igualzinha à nossa no sentimento. Dizem… dor. Assim mesmo.
Jantei com a Herta e o Keno quatro dias depois, no «Pescăruş» (Gaivota) na margem do Lago Herăstrău, no parque urbano de Bucareste com o mesmo nome. Keno, eufórico de alegria, disse que ela, ainda um dia, receberia o Nobel. E não é que recebeu mesmo?
Mandei-lhe anteontem um mail: «Felicităre!» - parabéns! E logo me respondeu «Obrigado». Tinha-lhe dito que era assim que se agradecia em Português. Ela lembrou-se.
TINHA IDO À ROMÉNIA em 1985 para entrevistar para o DN o tovarich (camarada) Niculae Ceauşescu. Um Amigo que me pediu para não revelar o seu nome, à cause des mouches, proporcionou-me um encontro com o jornalista e escritor Keno Verseck, que fora por diversas vezes preso pela todo-poderosa Securitate, a PIDE lá do sítio. Estabeceu-se, de repente, uma empatia que duraria ao longo dos anos. Fomos tomar umas ţuicăs (aguardente de ameixa) ao Ateneul Român, no centro da capital e Keno convidou-me para em seguida almoçar.
Tiro e queda. Uns sarmale para começar, uma ciorba de pui e mititei cu mămăligă acompanhado por um Murfatlar de estalo e, no final um prăjitură: clătite cu brinză de vaci. Cafea e rechiu vechi. Um monumento gastronómico. Traduzo: uns rolinhos de folhas de videira recheados de carne (na Grécia, na Turquia, na Bulgária também existem e já ali os provei); sopa ácida de galinha; croquetes de carne grelhados com papas de milho encorpadas; vinho de muito boa qualidade; bolo; crepes com queijo branco; café e aguardente velha.
O Ateneul (ul é o artigo o, desculpem o pleonasmo repetitivo. O Romeno tem declinações, porra!) já então era um santuário de escritores, jornalistas, poetas, músicos, pintores, enfim, gente ligada às Artes. Saboreávamos o néctar que eu julgava final, quando se aproximou uma Senhora. Keno levantou-se, deu-lhe três beijos nas faces e abraçou-a. Ela correspondeu na mesma medida.
Voltando-se para mim: «Quero apresentar-te a Herta Müller.» Confesso que não sabia absolutamente quem ela era e o meu ar interrogativo fez rir os dois. «Falas um pouco de alemão, penso?» Respondi-lhe «Ein wenige…» E acrescentei um macarrónico «Ich kan verstehen, klein, klein…» Então, o riso tornou-se em gargalhadas, as dela mais sonantes.
Resumindo: falámos em francês que todos dominávamos e o Verseck informou-me que se tratava de uma escritora romena, excelente, de cultura alemã. E a ela, ele sublinhou «este Senhor é um grande jornalista Português…», ao que atalhei «Só se for no tamanho» o que deu fruto: novas casquinadas.
A conversa prolongou-se pela tarde. Ela também fora e era perseguida durante o reinado do presidente comunista. Trocámos ideias sobre essas coisas da privação da liberdade, dos crimes de opinião – ela sabia algo sobre o regime salazarento – e fomos por aí fora, entre a aguardente de ameixa e o conhaque. E as recordações. O Romeno é a única língua – que eu conheça – que tem a palavra saudade igualzinha à nossa no sentimento. Dizem… dor. Assim mesmo.
Jantei com a Herta e o Keno quatro dias depois, no «Pescăruş» (Gaivota) na margem do Lago Herăstrău, no parque urbano de Bucareste com o mesmo nome. Keno, eufórico de alegria, disse que ela, ainda um dia, receberia o Nobel. E não é que recebeu mesmo?
Mandei-lhe anteontem um mail: «Felicităre!» - parabéns! E logo me respondeu «Obrigado». Tinha-lhe dito que era assim que se agradecia em Português. Ela lembrou-se.