sábado, 24 de outubro de 2009

O Psicólogo

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Por Alice Vieira

HÁ MUITO TEMPO que não via a Lurdes, minha antiga colega de faculdade.

Daí a gargalhada de ambas quando esbarrámos no café, e lá abancámos diante de uma bica, a pôr a vida em dia.

Saltaram as fotografias da carteira, e o relato fatal das gracinhas infantis.

É então que ela me diz, apontando para a cara risonha do seu neto de três anos, “este até já anda no psicólogo”.

Eu fiquei sem saber o que dizer, tanto mais que a Lurdes falara com um indisfarçável orgulho na voz, assim como se dissesse, “este já anda no judo e é cinturão negro”.

Que eu soubesse não tinha havido revolução de maior na vida da criança, nem pais separados, nem um novo irmão, nem nenhum morto, mas a Lurdes, com um sorriso condescendente, lá explicou que o recurso ao psicólogo se devia ao facto de a criança ir entrar agora pela primeira vez para a escola infantil: “ eventualmente poderá haver um problema de rejeição da escola, e é preciso tratar.”

Ainda perguntei por que não eram os pais a ocupar-se disso — mas logo a Lurdes disse que nem pensar, porque os pais não tinham “preparação técnica”.

E pronto. Lá vai a criança, de três anos de idade, todas as semanas ao psicólogo, que a ajuda a resolver um problema que muito possivelmente ela nem nunca terá.

Ou seja: que lhe dirá (espero…) aquilo que nós todos dizemos às nossas crianças em alturas semelhantes: vais gostar muito de brincar com os outros meninos, vais aprender muitos jogos, e muitas cantigas, etc, etc…

Mas hoje os pais já quase não sabem falar ou brincar com as crianças.

Pensam que brincar é uma coisa que só se faz diante de um écran. Brincar com uma criança é, cada vez mais, pô-las a ver televisão, ou atirar-lhes com um computador para que fiquem horas a fazer jogos.

E não há nada mais triste do que uma pessoa que não sabe conversar nem brincar com uma criança.

Uma pessoa que olha para uma criança como se ela fosse um país estrangeiro. Um país inimigo.

Por isso, despeço-me da Lurdes e chego a casa estupidamente cheia de saudades da minha mesa da casa de jantar, que range mal se lhe toca, que tem a tábua do meio partida e as pernas desengonçadas — mas que os meus filhos me proíbem de substituir, porque foi nela que o pai os ensinou a jogar ping-pong; e nem me importo com os buracos ainda visíveis na parede ao fundo do corredor, do tempo em que lá estava pregado um cesto de basquete onde todos exercitavam a pontaria; e lembro a choradeira que foi no dia em que decidimos lavar a parede do quarto do meu filho (o rapaz já tinha entrado na faculdade!) onde ele e o pai escreviam todas as coisas que queriam dizer um ao outro e às vezes não tinham coragem.

E nunca sequer nos passou pela cabeça saber se tínhamos ou não preparação técnica.

«JN» de 24 de Outubro de 2009