quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O «Bolonhês» não existe, afinal?

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Por Nuno Crato

1. Com o título «Ficamo-nos pelo ‘Bolonhês’?», assinei um artigo que saiu no número 31 desta Revista [Ensino Superior, do Sindicato Nacional do Ensino Superior, SNESup], no primeiro trimestre de 2009, nas páginas 9 a 13. Nele criticava alguns aspectos do processo de Bolonha, em especial três: a forma como as licenciaturas foram reduzidos para três anos, a estrutura dos ECTS e a moda do ensino por competências. No número seguinte da revista, os meus colegas João Vasconcelos Costa e Rui Pulido Valente fizeram o favor de criticar algumas das minhas observações. Digo bem: fizeram-me e fizeram-nos esse favor, pois nada é mais estéril do que semear ideias sem que haja contraditório. Quando este existe, percebe-se melhor o que cada um dos intervenientes defende. Não temos a ilusão de convencer os leitores, mas temos a ambição de ajudar alguns a perceberem melhor o que está em causa. E o que está em causa são algumas ideias tão repetidas e tão pouco discutidas que podem parecer intocáveis.

2. Uma ideia que aparece como consensual, tão consensual que o nosso colega Vasconcelos e Costa, que é, noutros aspectos, crítico dos consensos pedagógicos, a repete como sendo «a competência máxima, síntese de todas as tais outras competências que a moderna educação superior deve facultar» é a ideia de que «é preciso aprender a aprender» (p.13, col.1).

O que vou dizer em seguida é capaz de ser uma surpresa para muitos leitores: essa ideia, pelo menos na sua versão radical e em alguns aspectos testáveis, é contrariada pelas pesquisas recentes da psicologia cognitiva. Está pois muito longe de ser uma ideia consensual, excepto na sua versão corriqueira.

Seria óptimo ter espaço, tempo e conhecimento para poder explicar cabalmente o tema. Não os tendo, vou limitar-me a dois ou três pontos essenciais. Comecemos pela versão corriqueira do «aprender a aprender». Nesta versão, uma das funções do ensino será fornecer aos jovens indicações sobre processos de pesquisa de informação, ensinar-lhes métodos de estudo, ajudá-los a controlar e auto-avaliar os processos de aprendizagem, tentar incutir-lhes curiosidade, espírito racional e capacidade de dúvida, explicar-lhes o método de investigação científica. Aqui estamos todos de acordo, pelo menos em palavras. Se chamarmos a isto «aprender a aprender», não vale a pena perder tempo com o problema. Duvido que essa seja a «competência máxima» e julgo que a ninguém serve desenvolvê-la se não tiver conhecimento substantivo em alguma área do saber. Também duvido que a tão apregoada volatilidade do conhecimento (p.13, col.1) transforme em obsoleta uma fracção imensa do que se aprende nas escolas — conhecer bem a mecânica de Newton ajuda, e muito, a perceber a mecânica de Einstein; e a ninguém passa pela cabeça, espero, deixar de ensinar a mecânica clássica. Mas isso são outros desentendimentos.

Onde começa o verdadeiro desacordo é no que se pensa ser a maneira de atingir o objectivo de «saber aprender». Todos ouvimos já a parábola do peixe e da cana de pesca: se vires um homem com fome, não lhe dês um peixe, ensina-o a pescar. Transpondo esta parábola para o ensino, como é vulgar nas correntes pedagógicas românticas, coloca-se em oposição «aprender» e «aprender a aprender». A parábola traduz-se então nesta ideia fantasiosa: não o ensines, ensina-o a aprender.

Jean Piaget, um dos maiores vultos do construtivismo, tinha já exposto ideias semelhantes. Conhece-se-lhe a frase infeliz «cada vez que se ensina prematuramente a uma criança algo que ela poderia ter descoberto por si, ela fica impedida de a inventar e, por isso, de a compreender completamente». É uma frase que alguns teóricos da pedagogia portuguesa têm transformado num logro perigoso. Entre nós, o Ministério da Educação pôs em prática a parábola do peixe através dos computadores Magalhães: não os ensines, dá-lhes um instrumento com que possam aprender.

Estou a caricaturar, como me acusam os meus críticos (p.10) de ser meu hábito? Claro que estou, mas por trás da caricatura estão duas ideias: primeiro, o Ministério tem-se preocupado mais com os equipamentos do que com as aprendizagens; segundo, essa política encontra fundamentação teórica no «aprender a aprender».

O que a psicologia cognitiva moderna concluiu é que, com excepção das recomendações simples de apoio ao estudo acima enunciadas, não há oposição entre «aprender» e «aprender a aprender». Mais, a única maneira de «aprender a aprender», que não reafirma este slogan como uma frase vazia, vaga e enganadora, é aprendendo algo. De onde resulta que «aprender a aprender» é apenas uma de duas coisas: ou um aspecto consensual, quase técnico e quase acessório no ensino, sobre o qual não vale a pena argumentar, ou um erro brutal que condena o jovem à ignorância.

Quem estiver curioso em perceber melhor este tema pode, por exemplo, ler o recente survey de John Sweller «What human cognitive architecture tells us about constructivism» [1], e as referências nele citadas, ou alguns trabalhos-síntese de David Geary [2] e John Anderson [3], dois dos maiores nomes da psicologia cognitiva da actualidade.

3. Outro consenso, que o meu colega Vasconcelos Costa considera «claramente dominante» e transforma em «máxima», que se dispensa de «justificar, tão extensa seria a simples citação de trabalhos sobre este tema» é o seguinte: «o estudante deixou de ser o agente passivo do ensino para ser o agente activo da aprendizagem» (p.11, col.1). A resposta mais honesta que posso dar é a seguinte: não sei o que isto significa na mente do meu crítico, pois há milhares de versões desta «máxima». O que posso garantir é o seguinte: as ideias em causa são tudo menos consensuais. Há quem considere que o aluno é sempre um agente activo, pois a aprendizagem é sempre activa, mesmo no ensino mais passivo e tradicional [4], quem note que a pedagogia dita activa, com tarefas pouco estruturadas, conduz a aprendizagens ineficientes e pouco profundas [5] e quem defenda, com base em experiências estatisticamente validadas, que o problema está mal colocado [6].

É verdade que «extensa seria a simples citação de trabalhos sobre este tema» defendendo a «máxima» do «agente activo». Mas em estudos educativos passa-se algo difícil de acreditar para quem tem uma formação científica, como é o caso dos meus dois críticos. O que se passa é que os estudos educativos, talvez sobretudo os portugueses, estão pejados de ensaios, de artigos medíocres sem qualquer valor científico e de citações de citações, numa espiral confirmatória que muitos julgam colocar esses estudos do lado da verdade, por tão extensa ser «a simples citação de trabalhos sobre o tema». Os ensaios e artigos de opinião são necessários, mas seria ridículo considerar, por exemplo, que estes textos modestos que escrevi para a revista Ensino Superior são textos de investigação em educação. Vão ler os currículos de muitos dos nossos ditos «cientistas da educação» e verão como simples opiniões deste estilo são acumuladas de forma acrítica e apresentadas como investigação confirmatória. Dado o apelo que as ideias românticas ditas «progressistas», do ensino dito «activo», despertam entre os nossos professores interessados e generosos — como tenho a certeza ser o caso de Vasconcelos Costa e de Pulido Valente —, é muitas vezes fácil fazer passar por ciência o que não passa de acumulação acrítica e repetitiva de ideias vagas e sem fundamento científico.

Muito gostaria de poder desenvolver este tema, que foi já bastante discutido no meu livrinho O Eduquês. Em breve colocarei na Internet uma primeira versão do trabalho «Melhorar o Ensino da Matemática com Ferramentas do Século XXI» e tentarei completá-lo e publicá-lo em 2010. Dentro de poucas semanas irão sair os contributos da conferência internacional da Gulbenkian de 2008 Ensino da Matemática: Questões e Soluções, que inclui, nomeadamente, sínteses críticas dos psicólogos David Geary e José Morais. Recomendo entretanto, para quem sabe francês, os estudos de Clermont Gauthier e da sua equipa sobre a eficácia dos diferentes métodos de ensino [7] e, para quem prefere o inglês, uma extensa discussão sobre o construtivismo editada este ano por dois investigadores insuspeitos de «superficialidade anti-construtivista» [8]. Quem julga que existe um consenso sobre a dita «pedagogia activa», a «aprendizagem pela descoberta» e o «ensino por projectos» ficará certamente surpreendido. Sobretudo, ficará surpreendido com duas coisas. Uma é o número esmagador de estudos científicos bem delineados e organizados que criticam fundamentadamente os resultados do consenso pedagógico romântico que sofremos. Outra é a fraqueza de resposta do «consenso pedagógico»: poucos ou nenhuns estudos científicos e muita argumentação ideológica.

4. Na viragem de século, o romantismo pedagógico e o construtivismo dogmático inventaram uma nova abordagem aos objectivos de ensino: o ensino por competências. A moda pegou, mas como teve muitas versões e os seus promotores em Portugal exacerbaram as confusões terminológicas [9], será preciso referirmo-nos a uma teoria determinada para sabermos do que estamos a falar. Julgava que o tinha feito no meu artigo publicado nesta revista, mas as críticas dos meus colegas levam-me a acreditar valer a pena ser mais preciso. Não se trata de confundir «competências» com «skills», interpretando estas como «aptidões», nem de dizer que as competências não incluem os conteúdos, como contestam os meus colegas. É algo mais profundo.
A teoria que critico é a formulada por Perrenoud [10] e defendida em alguns dos documentos oficiais portugueses, nomeadamente no «Currículo Nacional do Ensino Básico: Competências Essenciais», aprovado pelo Ministério da Educação em 2001. Esta teoria de organização do ensino por competências pode caracterizar-se da seguinte maneira:

(1) o que importa não é o conhecimento puro, mas sim o conhecimento em acção;
(2) os objectivos curriculares devem ser formulados em termos de capacidades de aplicação, envolvendo os conhecimentos como subsidiários dessas capacidades;
(3) as competências são uma categoria englobante dos conhecimentos, das atitudes, da capacidade de aplicação e de outros objectivos do ensino.

Como o sintetizou uma vez um dos defensores desta teoria, «não importa que os alunos saibam quanto é dois mais dois, o que importa é que saibam calcular quantas cadeiras há numa sala em que há duas cadeiras de um lado e duas do outro». Estou em total desacordo.

As críticas que têm sido formuladas a estas ideias são essencialmente as seguintes:

(1) há valor no conhecimento puro, mesmo que não se visualize ou não se alcance a aplicação desse mesmo conhecimento;
(2) as ditas competências não devem pois ser apresentadas como categoria que engloba todos os objectivos de aprendizagem, devendo estes ser claramente decompostos em conhecimentos e capacidades;
(3) ao estabelecer a categoria de competências como orientadora de todo o ensino, substituem-se objectivos claros, precisos e mensuráveis por objectivos aparentemente grandiosos, mas vagos e difíceis, quando não impossíveis de aferir.

Para se perceber que estas críticas não são uma excentricidade minha [11] ver a discussão sobre as orientações pedagógicas no Canadá [12] os países melhor colocados no TIMSS e no PISA, ou toda a insistência na decomposição de aprendizagens defendida pelos cognitivistas modernos [13].

Na proposta inicial do Estatuto da Carreira Docente Universitária preconizava-se a «passagem de um ensino baseado na transmissão de conhecimentos para um ensino baseado no desenvolvimento de competências». A Sociedade Portuguesa de Matemática emitiu em 27 de Maio deste ano um parecer crítico sobre esta formulação [14] felizmente foi então abandonada.

5. Uma das medidas infelizes de Bolonha é a forma como foi concebido o sistema de créditos pelos ECTS, que são a moeda de troca dos estudos obtidos nas universidades. Tem-se em vista, e muito bem, a mobilidade, mas não se concretiza esse objectivo da melhor maneira. Perdoem-me repetir o que escrevi nesta revista sobre esse tema: «o que parece mais criticável é a forma como esses créditos são medidos. Não se destacam acima de tudo os conteúdos académicos, que se revelam pelos programas de estudo cumpridos. Não se usa uma medida objectiva, como, por exemplo, o número de horas de aulas, teóricas, práticas e outras (as chamadas horas de contacto). Ao invés, usa-se uma avaliação complexa, impossível de aferir com objectividade, em que se estimam as horas de trabalho que os estudantes dedicam a uma determinada cadeira. É uma completa ficção.»

Trata-se de novo, julgo, de uma aplicação do princípio «eduquês» de substituir objectivos modestos, claros e mensuráveis por finalidades grandiosas e difíceis de medir com objectividade. Os meus colegas contestam-me que não sei o que se está a fazer no país (p.14, col.2) — e terão alguma razão pois não saberei o que se passa em todo o Portugal, apesar de conhecer bem o que acontece em algumas escolas. Não é isso que está em causa: trata-se de uma escolha que foi feita pela congregação burocrática bolonhesa e da qual discordo pelos aspectos listados acima.

A nossa dificuldade de sintonia parece ser da mesma ordem que o desacordo quanto às outras orientações pedagógicas. Não digo que a organização por competências não inclua os conteúdos (p.12, col.1). Digo que não os individualiza devidamente e contesto a forma como os diversos componentes estão organizados. Os meus colegas terão a maior das boas vontades na sua interpretação das recomendações reformistas universitárias, o que sustento é que algumas dessas recomendações, tal como foram formuladas pela congregação bolonhesa, não são acertadas.

6. Finalmente, os meus colegas acusam-me de «superficialidade crítica», de enfatizar «o lado mais negativo de Bolonha» e de ter uma atitude que «não ajuda» (p.14, col.1). São críticas a que não sei responder. Listei dois ou três desacordos de orientação pedagógica e defendi que nos devemos «libertar de algumas ideias estéreis». Não pretendi exercer uma rigorosa exegética crítica nem proceder a um balanço global do processo de Bolonha, que tem aspectos altamente positivos, nomeadamente no incentivo à mobilidade. Espero que as críticas não levem a concluir que não vale a pena trabalhar para que a reforma dê os melhores frutos. Longe de mim tal ideia. Percebo que colegas que tiveram esperanças nas mudanças e que se empenharam generosamente na reforma possam ficar chocados com a minha secura. Digo o que penso, nada mais.

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REFERÊNCIAS:
[1] Publicado em Sigmund Tobias e Thomas M. Duffy (2009), Constructivist Instruction: Success or Failure?, Routledge, pp. 127–143.
[2] Geary, D. C. (2006), Evolutionary developmental psychology: Current status and future directions. Developmental Review, 26, 113-119; Geary, D. C. (2005), Folk knowledge and academic learning, in B. J. Ellis & D. F. Bjorklund (Eds.), Origins of the social mind. (pp. 493-519), Guilford Publications.
[3] Anderson, J.R., Greeno, J.G., Reder, L.M., & Simon, H.A. (2000), Perspectives on Learning, Thinking, and Activity, Educational Researcher, 29(4), 11-13; Anderson, J.R., Reder, L.M., & Simon, H.A. (1998), Radical Constructivism and Cognitive Psychology, in Ravitch, D. (Ed). Brookings Papers on Education Policy: 1998. Washington, D.C. Brookings Institution, pp. 227–255.
[4] V. Richard E. Mayer (2009), Constructivism as a theory of learning versus constructivism as a prescription for instruction, in Sigmund Tobias e Thomas M. Duffy, Constructivist Instruction: Success or Failure?, Nova Iorque e Londres: Routlege, pp. 185–200.
[5] G.D. Borich (2000), Effective Teaching Methods, Merrill-Prentice Hall.
[6] D. Klahr & M. Nigam (2004), The equivalence of learning paths in early science instruction: Effects of direct instruction and discovery learning, Psychological Science 15, pp. 661–667.
[7] V., por exemplo, Steve Bissonnette, Mario Richard & Clermont Gauthier (2005), Échec scolaire et reforme éducative : quand les solutions proposés deviennent la source du problème, Québec: Les Presses de l’Université Laval.
[8] Sigmund Tobias e Thomas M. Duffy, Constructivist Instruction: Success or Failure?, Nova Iorque e Londres: Routlege.
[9] Maria Helena Damião (2004), (Ainda) sobre a noção de competência na educação escolar básica», Gazeta de Física 27–3, 2004, 31–33.
[10] Ver, por exemplo, Philippe Perrenoud (2001), Porquê Construir Competências a partir da Escola?, Porto: Asa.
[11] Nuno Crato (2006), O ‘Eduquês’ em Discurso Directo: Uma Crítica da Pedagogia Romântica e Construtivista, Lisboa: Gradiva, pp. 75–79.
[12] Steve Bissonnette, Mario Richard & Clermont Gauthier (2006), Comment Enseigne-t-on dans les écoles efficaces?, Québec: Les Presses de l’Université Laval, pp. 98–112 e passim.
[13] John R. Anderson & C. Lebiere (1998), The Atomic Components of Thought, Mahwah, NJ: Erlbaum; John R. Anderson, L.M. Reder & H. Simon, Situated learning and education, Educational Researcher 25, 5–11.
[14] http://www.spm.pt/files/outros/ECDU.pdf