Por Antunes Ferreira
JÁ LÁ VÃO UNS LARGOS ANOS, mesmo muito largos. Tive a oportunidade de conhecer o Raul Solnado, aliás, soldado, tal qual ele se me apresentou. Foi no Diário de Notícias, era eu ainda chefe de Redacção adjunto do Mário Zambujal, compincha dos sete costados, o primeiro dos bons malandros, prenúncio de um best-seller a cujo trabalho de parto assisti. Mas, no qual juro que não participei.
O Raul – a partir de então passei a tratá-lo apenas desta maneira singela – ainda não tínhamos desapertado a bacalhauzada, já estava a tratar-me por tu. E pegava na deixa do Mário, ou seja, para ele eu passava a ser o Antunes-sem-mais-nada. Com o teu tamanho, não precisas do Ferreira para nada. Nem esbocei uma mísera tentativa de protesto por esse atentado ao meu apelido de guerra. O Raul dissera, estava dito.
A empatia estabeleceu-se definitiva e para durar. Ambos assim o entendemos. Porra! Qual entendemos? Praticámos, militámos, assim é que foi, assim é que é, assim é que será. Não digo até à eternidade, por dois motivos. Primeiro, porque não acredito nela; segundo porque, mesmo que a aceitasse, eu estava definitivamente eliminado, o Raul levava já a camisola amarela.
Meses depois, fomos almoçar à Fonte dos Passarinhos, ali ao Calvário. Ou antes, mandibular – verbo que era uma criação dele. Eu ia fazer o Anuário do DN, nas oficinas do antigo Anuário Comercial, nas instalações amplas e libertárias que naquela zona existiam, depois adquiridas pela Mirandela. Ele aceitou a Minho honesta proposta e veio para una jaquinzinhos com arroz de tomate com ervilhas, especialidade da Dona Helena, cozinheira aprimorada, casada com um dos sócios do estabelecimento.
A receita por tais alturas era muito simples e claramente enunciada. Os bicharocos absolutamente fugidos às normas comunitárias, ou seja miseravelmente minúsculos. Só não traziam os biberões, na expressão do Raul. Mas tinham que vir ao prato esturricadinhos, para desinfectar alguma fralda esquecida no amanhar a que se sujeitavam antes da frigideira. O arroz devia ter o qb de pimento aliado ao tomate, ambos estrugidos e as ervilhas tenrinhas. A minha Mãe fora a criadora do pitéu e dado o mesmo a provar ao Raul, ele próprio declarara-se soldado de tal rancho.
Era no tempo em que o Raul descobrira petróleo no Beato. Todas as noites o seu Teatro Villaret esgotava a lotação. Um público rendido ao talento de um dos maiores músicos portugueses de sempre seguia à gargalhada as peripécias do taxista Juvenal Costa que encontrara no subsolo do seu quintal o precioso ouro negro que tanta falta fazia e tamanha mossa originava na frágil economia (?) portuguesa.
O Fernando Mata era para também vir amesendar connosco, mas porque tinha a unha do dedo mindinho pisada não compareceu. Os carapauzinhos neo-natos estavam um mimo, comiam-se inteirinhos, as cabeças foram particularmente aplaudidas e deglutidas. O arroz triunfante. Nem o de favas do Jacintinho de Tormes se lhe igualava, fomos unânimes.
Contou-me, sublinhou que em primeira mão, que a RTP ia transmitir a peça. Naturalmente com as necessárias adaptações exigidas pela transmissão no pequeno ecrã. Deixa-te de merdas, Antunes, isto é entre amigos, não é para publicar já, não te armes em parvo com cachas e essas coisas. Jurei-lhe pela minha virgindade que nunca praticaria um tal desatino. E ele, virgem? Só se for nas solas dos pés.
Respeitosamente o informei de que nunca pensara – ó sacrilégio – equiparar-me à Senhora de Fátima, mas que nascera a 20 de Setembro de 41, daí que fosse Virgem. Referes-te, portanto ao horóscopo. E sorriu. A minha tia que gostava de dizer coisas também era e teve três rapazes e duas raparigas.
Há bocado, a Alice Vieira mandou-me um mail (um imeile, como eu uso) a dizer só Morreu o Solnado. Pronto. Assim sendo, antes do funeral, lá vou passar na Fonte dos Passarinhos em busca dos jaquinzinhos, mesmo sem arroz de tomate com ervilhas e uns niquinhos de pimentos.