sábado, 31 de outubro de 2009

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A Face Descoberta

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Por Antunes Ferreira

DIZ-SE POR AÍ que este País já não tem ponta por que se lhe pegue; outros, um tanto mais radicais, afirmam mesmo que Portugal já não tem remédio. E citam-se exemplos os mais diversos para justificar tais afirmações. Que, como bastas vezes por aqui, não têm face, são fruto desse diz-se de que nós, Portugueses, tanto gostamos e que utilizamos por dá cá aquela palha. É uma das faces nacionais. A outra reside na maneira de respondermos a um simples «como vais?»
De há muito adoptámos o assim, assim. Enquanto por esse Mundo fora, as pessoas andam bem ou andam mal, frontalmente, nós refugiamo-nos nessa vaga referência, que, de resto, não se confina ao eterno assim, assim, antes se reveste de outras fórmulas: nem tanto ao mar, nem tanto à terra, antes assim do que pelo contrário, vai-se indo como se pode, etc.

A «Face Oculta», como se sabe agora, é uma operação desencadeada pela Polícia Judiciária e que investiga uma alegada rede de corrupção entre diversas pessoas e entidades, através de modalidades como o tráfico de influências, as contrapartidas políticas de favores, as luvas, tudo isso que configura práticas com características criminosas.

O caso complexo continua em averiguação e já há treze arguidos, um dos quais, o empresário Manuel Godinho, de Ovar, se encontra detido. Na base do procedimento estará a «02 – Tratamentos e Limpeza Ambientais». Outras haverá. A expressão «rede tentacular» foi usada sem que a PJ a tivesse desmentido.

Entre os outros doze, encontram-se nomes sonantes: Armando Vara, José Penedos e Paulo Penedos. Sobretudo os dois primeiros – que já fizeram parte de Governos do PS – estão na berlinda, que o mesmo é dizer andam nas bocas do Mundo. Numa situação que popularmente era classificada como tem-te-maria-não-caias, hoje um tanto caída em desuso, Vara já veio a público declarar que está inocente. Outra coisa não seria de esperar…

Repudio energicamente os julgamentos populares, os juízes da praça pública, as acusações bombásticas, nomeadamente as veiculadas através de órgãos da Comunicação Social. No meio século que levo de jornalista, se há algo que não me pesa na consciência, coisas dessas nunca pratiquei. Poderei ter feito algumas coisas menos boas, mesmo más. Mas, adiantar-me ao que são as decisões dos tribunais não consta do currículo que julgo possuir.

Porém, cada vez mais há que alimentar as massas populares – expressão que não aprecio muito – com géneros os mais sangrentos possíveis. Com a feroz concorrência que existe no mercado da Informação, com a necessidade de angariar mais consumidores e, daí decorrente, a cada vez maior precisão de publicidade que ajude a minorar as gestões deficitárias (quase todas), uma escandaleira destas sabe que nem ginjas.

É difícil controlar esses apetites da sociedade em que vivemos e que todos nós ajudámos a construir, de uma forma ou de outra. Para além dessa dificuldade, seria preciso um verdadeiro trabalho de Hércules para que tal acontecesse. Por isso, a pena antes do julgamento e da sentença judicial é fruto tão apetecido que, perante ele, a maçã do Paraíso nem sequer poderia aspirar a corresponder à normalização comunitária.

Está aqui colocado mais um desafio – e de que dimensões – à Justiça portuguesa, acusada de morosa e desacreditada e em muitos casos ineficaz. Se não avançar com a celeridade que se exige, não faltará quem diga que ela não vai assim, assim: vai de mal a pior. Ou, mais grave: não tem remédio.

Abaixo o Ruído!

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Por Maria Filomena Mónica

A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE considera que o limite de ruído ambiental a partir do qual começam a existir efeitos nocivos para os seres humanos é de 55 decibéis. Vários estudos demonstraram recentemente que metade dos portugueses está exposta a estes níveis de barulho, sendo o trânsito a sua principal fonte, mas não é deste factor que desejo falar mas do tipo de ruído que nos cerca sem que lhe prestemos atenção.

Hoje, raro é o restaurante onde, enquanto almoço, não tenha de suportar música de fundo; não há antecâmara de consultório médico, onde não seja forçada a conviver com doentes falando ao telemóvel; não há jantares com amigos que não sejam interrompidos por SMS; não há sala de espera de aeroporto - com relevo particular para as VIPs - em que não ouça o bipbipbip dos mails recebidos pelos garotos que habitam estes espaços; não há elevador que não me ofereça uma musiquinha idiota; não há serviço, público ou privado, o qual, antes de me pôr em contacto com quem desejo falar, não me obrigue a escutar uma melodia; não há lanche de crianças em que não ouça os ringringring dos «Nitendos». Descendo na escala social, defronto-me, nas tascas, com aparelhos de televisão eternamente ligadas, nos hipermercados com os nininini das máquinas registadores e, nos logradouros de Lisboa, com os cães que passam o dia e a noite a ladrar.

Se exceptuar a sala de leitura da Biblioteca Nacional – e mesmo esta, devido à rota dos aviões, sabe Deus! – o meu quotidiano foi invadido por uma multiplicidade de ruídos. Isto chegou a um ponto tal que, há dias, indaguei da possibilidade de ingressar na Cartuxa onde, como se sabe, o silêncio é de regra. Ao tomarem conhecimento desta decisão, alguns amigos preveniram-me que a Ordem exigia uma condição, a obediência, que se não coadunava com o meu carácter. Sinceramente, não sei o que fazer para manter a sanidade mental. Se pudesse, comprava uma ilha na Escócia, o que mostra até que ponto o silêncio se tornou num privilégio dos muito, muito, ricos.

Maio de 2008
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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Saramago e os nossos elbonianos - Prémios

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Um interessante livro, cujo título é homónimo...
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Uma obra de Antropologia sobre as origens do Homem
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Um best-seller de 1517/18
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História das Religiões (obra em 3 volumes)

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

As luzes e a mariposa

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Por Baptista-Bastos

O BOM GOVERNO é aquele cuja acção se não sente. O axioma é bom; mas é um equívoco. Todos os Governos têm a mão pesada; logo, não há Governos bons. Sobretudo para a arraia-miúda. E é esta miuçalha que ainda gosta dos que com ela se preocupam. Acredito que a função da escrita reside nesta modesta epítome. Levo tantos anos de batucar prosa que se desenvolveu fortemente em mim algumas induções rudimentares. Por exemplo: os Governos são todos iguais, com as ligeiras diferenças nascidas dos voos dos seus hábitos. Pragmáticos, dizem. A definição mais acabada de indiferença para com os laços sociais.

Este, agora, é uma mariposa encandeada pelas luzes das câmaras de televisão. Viu-se a esfuziante alegria dos "novos" ministros, limpos e asseados, na passarela da Ajuda, e os grupinhos dos excluídos, ligeiramente acabrunhados, a fazer contraste. José Sócrates, com o encanto secreto e frio que o distingue, apenas mudou de pele. Lá dentro, é o mesmo. E o discurso que proferiu no-lo reafirmou.

É estranho, ou não o será, o facto de os comentadores do óbvio terem passado, rápidos, sobre a aspereza das palavras do engenheiro. A debilidade do dr. Cavaco, depois do melancólico fiasco das falsas escutas, e da sua triste fuga às responsabilidades, foi sobrepujada pelo que Sócrates disse. E disse, muito naturalmente, ser ele quem manda, com os seus obedientes discípulos e com os áulicos que o incensam. Como "autoridade moral", o dr. Cavaco acabou. Desapareceu no funil por ele próprio construído. Aliás, o que disse foi pouco mais do que uma banalidade assustada. O dr. Cavaco está sempre mal neste tipo de cerimónias. Na Ajuda esteve pessimamente: ele era o indivíduo convidado a contragosto, o parente indesejado numa festa de arlequins.

José Sócrates tem as coisas na mão e a seu bel-prazer. Tudo vai gravitar à sua volta: a moral como ele a entende, e a ideologia da classe dominante, a que finalmente ascendeu. O PSD é um saco de lacraus, um ringue [Marcelo dixit] onde as questões se resolvem a murro, um concentrado de medíocres ambições. Não conta para nada, a não ser para a implícita conspiração permanente em que se enreda. Com os outros três do Parlamento pode ele muito bem. Aqui e ali estabelecerá relações de "civilidade", outra palavra no circuito de quem claudica ante todas as vergonhas. Ali e acolá inventará práticas e conivências que lhe permitirão sobrenadar numa sociedade sem debates, num país sem pudor, sem respeito e sem dimensão colectiva.

As coisas são o que são. E parece impossível escapar a estas tensões e às implacáveis exigências de um tempo que perdeu de vista o reconhecimento da solidariedade e da igualdade. O horizonte da democracia avançada está cada vez mais distante. Mas há quem não desista.

«DN» de 28 Out 09

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Passatempo Calimero - Solução (discutível...)

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Solução (ver NOTA)
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Os dados que aqui se vêem (e que têm 3 faces visíveis) respeitam a regra acima indicada.
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Imagem "A", depois de invertida "ao espelho".
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NOTA: O que aqui se diz, em termos de "regra", pode não estar correcto. No entanto, uma pesquisa em "dados", "pintas", "dice", "dots", etc, levou-me a concluir que, pelo menos os dados "comerciais", parecem segui-la:

Quando as três faces de menor valor estão visíveis, a sequência 1-2-3 aparece no sentido oposto ao movimento dos ponteiros do relógio.

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Alguém sabe alguma coisa sobre isso? Ou tem à mão dados que possam confirmar (ou infirmar) essa "regra"?

Passatempo Calimero de 27 Out 09

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Imagem A
.Imagem B
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Uma destas imagens corresponde à outra 'vista num espelho'.
Pergunta-se:

Qual das duas mostra os dados correctos?
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A de cima?
A de baixo?
Ambas?
Nenhuma?
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E porquê?

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Só nos faltava mais esta!

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Por Maria Filomena Mónica

AO LONGO DOS SÉCULOS, enquanto o adultério feminino era fortemente criticado, o masculino era visto com tolerância, uma posição tanto mais cómica quanto era muitas vezes acompanhada da tese de que as mulheres não tinham prazer na cama, ou, alternativamente, como dizia Proudhon, que haveria dois tipos de mulher, a esposa e a prostituta. Do orgasmo, não queria saber a primeira; a segunda não pensava noutra coisa.

Depois que, em 1970, Germaine Greer publicou The Female Eunuch, o prazer feminino foi afirmado à exaustão. Assustados com tal possibilidade, os homens encolheram. A sua reacção, quer na versão simples quer na recalcada, foi sobretudo visível no macho latino, a que o género português pertence. Com a sua habitual lucidez, A. B. Kotter dizia há tempos: «Os homens portugueses ficam meninos toda a vida e finalmente acabam com complexos de masculinidade». Ninguém o expôs melhor.

De facto, os homens não podiam ficar inertes, pelo que recorreram ao velho truque de tornar científica a primeira palermice que lhe ocorresse. Uma equipa de investigação sueca acaba de afirmar que o adultério masculino estaria associado a uma variante genética, ou seja, que, de cada vez que um marido põe os palitos à mulher, isso não significa que tenha deixado de gostar dela, mas apenas que tem, no cérebro, um gene regulando a acção de uma hormona, a vasopressina, que o obriga a ser promíscuo. Num ápice, a sua responsabilidade desapareceu.

Perante isto, as mulheres têm um caminho a seguir: exigir dos noivos que se sujeitem a um teste que presumivelmente detectará se, no respectivo organismo, existem vestígios da tal vasopressina. Dado que, em cada cinco, apenas dois são potenciais adúlteros, fica ainda uma maioria de entre a qual poderão escolher. Uma vez que ninguém gosta de levar para casa uma mercadoria danificada – e um marido geneticamente infiel como tal deve ser rotulado – aconselho as jovens a seguir o meu conselho.

Setembro de 2008

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

O PSD TORNOU-SE UM PARTIDO errático e em roda livre. Em poucos dias, vimos dois vice-presidentes da actual e agonizante direcção, Aguiar Branco e Paulo Mota Pinto entrarem em confronto público sobre o preenchimento do cargo de líder parlamentar, com Aguiar Branco a antecipar-se e a ocupar o terreno. Assistimos à inacreditável renúncia de Deus Pinheiro ao mandato de deputado para o qual acabara de ser eleito como cabeça-de-lista por Braga, em sobranceiro desrespeito e menosprezo pelos que o elegeram, pelo prestígio do Parlamento e pela imagem de seriedade do seu partido (depois dos casos António Preto e Helena Lopes da Costa, foi mais uma machadada na tão propalada política de verdade e rectidão de Manuela Ferreira Leite). E fomos, ainda, confrontados com o disparatado fundamentalismo nacionalista e religioso de um eurodeputado do PSD, à margem de qualquer espírito de tolerância social-democrata, a embarcar na promoção involuntária do último livro de Saramago (e a fazer lembrar tristes episódios de semelhante radicalismo perante uma obra de Saramago, por parte de um delirante e medieval subsecretário de Estado da Cultura, que se pensava estarem enterrados e resolvidos há mais de 17 anos).

É um espectáculo deprimente e pouco recomendável este que o PSD vem dando aos portugueses nos últimos dias.

Politicamente ferida de morte com a severa derrota nas legislativas, que deixou o partido abaixo dos 30%, a direcção de Manuela Ferreira Leite arrasta-se sem decidir o seu fim. Entretanto, eclipsou-se do palco político e abriu um vazio de liderança que dá lugar a esta balbúrdia partidária: cada qual fala para seu lado, ninguém presta contas a ninguém, tomam-se decisões impróprias e prejudiciais, dizem-se enormidades embaraçosas e contraproducentes. É um partido que deambula à rédea solta, sem rei nem roque.

Rui Machete, presidente da mesa do Congresso do PSD, defende a mudança da liderança o mais depressa possível. Pinto Balsemão diz que é preciso decidir «sem pressas». E os presumíveis candidatos à liderança, não querendo o ónus da ruptura, esperam na sombra que o poder lhes caia no colo.

Manuela Ferreira Leite parece disposta a prolongar esta agonia até à votação do Programa do Governo e do Orçamento. Sem perceber que ninguém ligará ao que irá dizer ou dará alguma importância à posição que tomar. Porque já ninguém lhe reconhece qualquer réstia de autoridade – a ela ou a este desacreditado PSD.

«SOL» de 23 de Outubro de 2009

domingo, 25 de outubro de 2009

«Caim» - Quanto indica a balança?

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1ª parte: A resposta mais aproximada parece ter sido a de João Rodrigues (2745g, erro de 36g), que tem agora 24h para escrever para premiosdepassatempos@iol.pt, indicando morada.

2ª parte: Na pág 84, na 1ª linha, está «em papos-de-aranha» em vez de «em palpos-de-aranha». Na pág 123, na 2ª linha, está «...por muita boa estampa...» em vez de - julgo eu... - «... por muito boa estampa...». Ninguém deu as respostas certas, pelo que não há prémio a atribuir.

3ª parte: (Desafio adicional): Nunormg deu a resposta correcta, e a explicação é a seguinte:

Na realidade, entre as muitas discussões teológicas 'bizantinas' (como «qual o sexo dos anjos?» ou «quantos anjos cabem numa cabeça de alfinete?») havia uma curiosa: «Adão e Eva tinham umbigo?». Dado que o umbigo é consequência do cordão umbilical, (e eles não nasceram de parto normal), não o deveriam ter!

Resolver esse dilema foi, em tempos, mais importante do que parece, por causa da arte sacra: como representá-los (nomeadamente em tela e em vitral)? Com ou sem umbigo?
A resposta acabou por ser "com". No seu livro, Saramago dá uma explicação curiosa para isso.

Noites de Galileu

Por Nuno Crato

EM TODO O MUNDO, entre as noites da passada quinta e a de hoje, muitos milhares ou mesmo milhões de olhos estiveram virados para o céu, numa das mais espectaculares realizações deste Ano Internacional da Astronomia. Esperemos que hoje, finalmente, não chova e que possamos juntar-nos aos cidadãos de todo o mundo que estão a replicar as observações que Galileu fez há 400 anos.

Sabemos que em Outubro de 1609 o grande físico italiano tinha já construído uma luneta com a qual começara a olhar para o céu. Com esse novo instrumento, fez várias descobertas extraordinárias no espaço de poucos meses. Entre Novembro de 1609 e Março de 1610 viu os relevos lunares, de onde concluiu que a Lua não era um astro perfeito e perfeitamente esférico como se pensava, notou que havia no céu muito mais estrelas do que as que são visíveis a olho nu, o que foi uma revelação surpreendente, e descobriu que Júpiter tinha pequenos satélites, abalando a crença num centro único do universo.

Basta que a noite esteja limpa para que tudo isso seja agora visível por quem se arme de um telescópio modesto ou mesmo de vulgares binóculos. A Lua está a aproximar-se do quarto crescente, o que significa que a luz solar incide lateralmente sobre a superfície visível, projectando sombras pronunciadas e mostrando melhor os relevos do nosso satélite. A separação entre a parte iluminada e a não iluminada, o chamado terminador, mostra as irregularidades da Lua de forma ainda mais nítida. Quem nunca viu o nosso satélite através de binóculos terá sorte: a primeira vez é inesquecível.

Enquanto a Lua é apenas observável no princípio da noite, Júpiter estará alto no céu até bastante tarde. É muito fácil descobri-lo. Basta olhar alto para sul ao princípio da noite e para perto do horizonte sudoeste pela meia-noite. Vê-se um ponto de luz branca, fixa e ofuscante. Com Vénus agora invisível até de madrugada e a Lua desaparecida, não há nenhum outro astro tão brilhante no céu nocturno.

Em redor de Júpiter vêem-se quatro pequenos pontos de luz. A visão foi surpreendente para Galileu, pois o planeta e os outros quatro pontos aparecem perfeitamente alinhados. Seguindo-os noite após noite, o físico italiano notou que os quatro astros, que primeiramente pensou serem estrelas, seguiam Júpiter de perto, mas mudavam de posição relativa. Orbitam o planeta, concluiu acertadamente Galileu. Se o leitor esta noite seguir as posições destes astros notará o mesmo que o grande astrónomo notou há 400 anos. Pelas 21h verá um ponto do lado esquerdo de Júpiter e três do seu lado direito. Uma hora depois verá que os dois extremos da direita se aproximam. Pela meia noite verá que estão já muito perto. Se conseguir prolongar a sua observação, verá que estes dois praticamente se sobrepõem. Trata-se, da esquerda para a direita, dos satélites Calisto, Io, Ganimedes e Europa.

Tudo isto é fascinante. Ainda mais o é se pensarmos que há 400 anos Galileu viu o mesmo que agora estamos a ver. Não estamos apenas a observar curiosidades astronómicas. Estamos a presenciar um episódio importante da nossa história e da nossa cultura.

«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 24 de Outubro de 2009

sábado, 24 de outubro de 2009

O Psicólogo

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Por Alice Vieira

HÁ MUITO TEMPO que não via a Lurdes, minha antiga colega de faculdade.

Daí a gargalhada de ambas quando esbarrámos no café, e lá abancámos diante de uma bica, a pôr a vida em dia.

Saltaram as fotografias da carteira, e o relato fatal das gracinhas infantis.

É então que ela me diz, apontando para a cara risonha do seu neto de três anos, “este até já anda no psicólogo”.

Eu fiquei sem saber o que dizer, tanto mais que a Lurdes falara com um indisfarçável orgulho na voz, assim como se dissesse, “este já anda no judo e é cinturão negro”.

Que eu soubesse não tinha havido revolução de maior na vida da criança, nem pais separados, nem um novo irmão, nem nenhum morto, mas a Lurdes, com um sorriso condescendente, lá explicou que o recurso ao psicólogo se devia ao facto de a criança ir entrar agora pela primeira vez para a escola infantil: “ eventualmente poderá haver um problema de rejeição da escola, e é preciso tratar.”

Ainda perguntei por que não eram os pais a ocupar-se disso — mas logo a Lurdes disse que nem pensar, porque os pais não tinham “preparação técnica”.

E pronto. Lá vai a criança, de três anos de idade, todas as semanas ao psicólogo, que a ajuda a resolver um problema que muito possivelmente ela nem nunca terá.

Ou seja: que lhe dirá (espero…) aquilo que nós todos dizemos às nossas crianças em alturas semelhantes: vais gostar muito de brincar com os outros meninos, vais aprender muitos jogos, e muitas cantigas, etc, etc…

Mas hoje os pais já quase não sabem falar ou brincar com as crianças.

Pensam que brincar é uma coisa que só se faz diante de um écran. Brincar com uma criança é, cada vez mais, pô-las a ver televisão, ou atirar-lhes com um computador para que fiquem horas a fazer jogos.

E não há nada mais triste do que uma pessoa que não sabe conversar nem brincar com uma criança.

Uma pessoa que olha para uma criança como se ela fosse um país estrangeiro. Um país inimigo.

Por isso, despeço-me da Lurdes e chego a casa estupidamente cheia de saudades da minha mesa da casa de jantar, que range mal se lhe toca, que tem a tábua do meio partida e as pernas desengonçadas — mas que os meus filhos me proíbem de substituir, porque foi nela que o pai os ensinou a jogar ping-pong; e nem me importo com os buracos ainda visíveis na parede ao fundo do corredor, do tempo em que lá estava pregado um cesto de basquete onde todos exercitavam a pontaria; e lembro a choradeira que foi no dia em que decidimos lavar a parede do quarto do meu filho (o rapaz já tinha entrado na faculdade!) onde ele e o pai escreviam todas as coisas que queriam dizer um ao outro e às vezes não tinham coragem.

E nunca sequer nos passou pela cabeça saber se tínhamos ou não preparação técnica.

«JN» de 24 de Outubro de 2009

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

"Receita" - Passatempo-relâmpago

As questões a que vai ser preciso responder (mas uma de cada vez) são duas:
Quem será o autor destas linhas, em boa hora intercaladas num livro policial? E que livro é esse?

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Saramago critica a Bíblia?
Então, a atitude mais sensata é ler (e, já agora, vender...) ambos - ou não será?

A Europa das desigualdades

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Por Baptista-Bastos

O QUE RESTA da "Europa Social" está a ser destruído, com implacável persistência. Mas, pergunto-me: alguma vez houve "Europa Social", ou tudo não passou de um sonho, alimentado por mentiras, ilusões e fraudes? E cada um dos europeus sabe, rigorosamente, em que consiste a União? A ideia era boa. No entanto, todos sabemos que a bondade não possui um escalão elevado nos escalões constitutivos da condição humana. Os fundadores alimentavam em si muito de poetas; porém, as estruturas delineadas para a "construção europeia" já continham, difusas, embora, na retórica dos discursos, o princípio de que as nações não eram iguais.

Neutralizar a Alemanha e o "espírito belicista" do grande país; impedir guerras no imenso território (o que se revelou, desde logo, um mito absurdo); e, sobretudo, impedir a hegemonia imperialista norte-americana - eis a cálida e grata intenção. Tem-se visto ao que isto chegou. As desigualdades e os desequilíbrios na Europa da União são ostensivos. Os grandes são cada vez maiores e os pequenos são cada vez mais pequenos.

A Europa só poderia ser outra, acaso mudasse de paradigma. Mas o sistema económico, sob o qual dificultosamente sobrevivemos, não só não foi abalado como se tornou no mimetismo cabisbaixo da oligarquia burocrática, dos bancos e dos ocultos interesses das grandes companhias. A Europa é gerida como se fora uma enorme empresa, distraindo a cidadania dos problemas históricos, seculares e nunca resolvidos.

As pessoas são cifras e cifrões. Não há políticos: há "gestores." Os vinte e cinco suicidas na France Telecom; os vinte milhões de desempregados na União com os seus os setenta e nove milhões de pobres (dois milhões são portugueses) são o trágico espelho da falência europeia e da catástrofe moral de uma civilização que se ufanava da sua supremacia. A lógica do lucro é insensível ao sofrimento humano. O quadriculado que se organizou para esse fim teve teóricos e estipendiados que serviram os amos com desenvolta subserviência. Bastava que lhes pagassem. Conheço alguns desses tunantes. Traíram os testamentos que lhes foram legados por jornalistas e escritores impolutos, e colocaram-se às ordens dos senhores do mando. No que dizem e escrevem estão ausentes a temperatura humana, o prazer do risco, os prestígios do desafio. Presente, o receio de desagradarem ao dono.

Pairam sobre as nossas cabeças os milhões de europeus desgraçados por esta doutrina económica e pela prática aberrante de um capitalismo nojento sem interrupção. A fragilidade dos povos europeus advém do facto de haver políticos que lhes retiraram o poder e as forças, através de controlos, ameaças, pressões e castigos. Se uma certa Esquerda se confunde, hoje, com os postulados da Direita, é porque não só deixou de ser uma maneira de pensar como abandonou a ideia de decidir.

«DN» de 21 de Outubro de 2009

terça-feira, 20 de outubro de 2009

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

SANTANA LOPES queixou-se da transferência de milhares de votos da CDU para o PS, entre os boletins para a eleição das freguesias e os boletins para a escolha do presidente da Câmara, como uma das principais causas para a sua derrota em Lisboa. É verdade que quase 15 mil eleitores da CDU e mais de 5 mil do BE votaram nos seus partidos para as juntas de freguesia e, ao mesmo tempo, em António Costa na lista para a Câmara. E que, curiosa e coincidentemente, Santana perdeu Lisboa para Costa por menos de 15 mil votos.

Mas a explicação para tal facto não reside em qualquer acordo secreto, inverosímil e inexequível. Ela encontra-se na capacidade de Costa para potenciar o voto útil no PS dos eleitores do BE e do PCP, com uma imagem que sempre se afirmou na ala esquerda dos socialistas e uma lista aberta a movimentos e dissidentes de esquerda, como Helena Roseta e Sá Fernandes.

A mãozinha que Carvalho da Silva deu a Costa no encontro de ambos para as televisões também ajudou. E os anticorpos que Santana suscita epidermicamente em grande parte da esquerda, reforçados depois da sua memorável passagem pelo cargo de primeiro-ministro, deram um contributo suplementar para mobilizar muitos votantes do BE e do PCP e incentivá-los a passarem o seu voto para Costa.

A votação de domingo em Lisboa acabou por traçar dois destinos políticos a prazo.

Santana Lopes, que construíra uma imagem de triunfador quase imbatível com as vitórias eleitorais na Figueira da Foz e em Lisboa (que o catapultaram para a fugaz liderança do PSD e do Governo), vem somando derrotas em série: perdeu, e de que maneira, as legislativas de 2005; ficou em terceiro e último lugar na corrida à liderança do PSD contra Ferreira Leite e Passos Coelho; foi agora vencido em Lisboa (com bastante menos votos do que tivera em 2001, então sem o apoio do CDS). Passou, pois, de temível vencedor a crónico perdedor. Como já ficou demonstrado, com Santana Lopes não há mortes políticas. Mas na próxima meia-dúzia de anos Santana só pode mesmo continuar a andar por aí.

Por seu lado, António Costa ganhou, no noite de domingo, os galões e o estatuto de sucessor de Sócrates e próximo líder do PS. Não se vê, entre os socialistas, qualquer figura que lhe possa fazer sombra.

«SOL» de 16 de Outubro de 2009

domingo, 18 de outubro de 2009

Cepticismo saudável

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Por Nuno Crato

A UNIVERSIDADE COLUMBIA, em Nova Iorque, uma das melhores e mais antigas universidades norte-americanas, lançou há já alguns anos um programa de formação científica para professores do ensino secundário. É um projecto ambicioso, que aceita apenas 10 a 13 professores por ano, seleccionados entre os muitos candidatos. Paga-lhes cerca de quatro mil euros por Verão e oferece-lhes várias regalias, tais como viagens para participação em conferências, dinheiro para materiais de laboratório e acesso às bases de dados da universidade. No total, os custos por professor ascendem a quase vinte mil euros.

Os candidatos aceites são colocados em contacto com laboratórios e actividades de investigação científica. Espera-se por isso que desenvolvam uma melhor apreciação da ciência e que percebam melhor os limites das conclusões que se podem tirar de experiências demonstrativas. Como o reconhecem os promotores da iniciativa, ao regressarem parcialmente ao papel de estudantes, os professores ganham também uma maior apreciação pelas dificuldades da aprendizagem e aprendem a ensinar melhor.

O grande efeito deste programa, contudo, pode ser o de aumentar os conhecimentos dos professores e, com isso, permitir-lhes transmitir melhor os conceitos que ensinam. Pode ser também o de lhes desenvolver a capacidade de organização do trabalho de laboratório, que é fundamental para o ensino experimental das ciências. Pode ser ainda o de lhes permitir transmitir melhor o entusiasmo pela ciência.

Este programa existe desde 1994, pelo que se pode começar a ir além dos comentários gerais e das suposições. Pode-se começar a avaliar os seus resultados de forma objectiva. É o que o tentaram agora os seus responsáveis, num estudo publicado esta semana na “Science” (362, pp. 440–442).

Inúmeras vezes, em muitos ditos «estudos de educação», este tipo de experiências, ou mesmo experiências muito mais modestas, são avaliadas de forma leviana. Muitas vezes, as simples boas intenções são tomadas como prova da validade da iniciativa. Outras vezes, fazem-se apenas inquéritos aos professores e alunos, que declaram terem-se entusiasmado e melhorado com o projecto. Mas as declarações de interesse e de entusiasmo não bastam. O que falha com frequência assustadora é a simples formulação da pergunta: «no fim de tudo, os alunos aprenderam mais?»

Não é o que se passa neste caso. Os autores do estudo foram analisar esses resultados. Os estudantes dos professores que passaram por este programa revelaram uma melhoria modesta, em cerca de 10%, na aprovação nas notas dos exames externos (Regents). Curiosamente, isso só aconteceu de forma significativa três a quatro anos depois da sua passagem pelo programa, o que leva a crer ter sido necessário tempo para os professores experimentarem as novas ideias, interiorizá-las e adaptá-las com sucesso.

Mesmo assim, as conclusões têm um senão que os próprios autores reconhecem: o factor «motivação, que subsiste como a principal variável não controlada» (p. 441). Na realidade, professores motivados podem conseguir ensinar melhor os seus estudantes apenas por esse facto: o de estarem motivados.

Os cuidados com que os autores deste estudo analisam o seu programa dão-nos um exemplo de saudável cepticismo — o cepticismo próprio dos verdadeiros cientistas.
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 17 de Outubro de 2009

Passatempo-relâmpago de 17-18 Out 09 - Solução e prémio

sábado, 17 de outubro de 2009

Maitê - o verdadeiro caso da semana

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Por Antunes Ferreira

ESTA SEMANA que hoje termina foi dominada pelo caso Maitê Proença. O assunto, de tão divulgado, comentado e criticado, é do conhecimento generalizado. Mesmo assim, aqui o resumo. A «senhora», que já por várias vezes este por cá – para representar em palco e promover os livros de sua autoria, ou seja, para aumentar a sua conta bancária com a colaboração dos Portugueses – tinha feito um vídeo sobre o nosso País em que escarnecia dos Tugas, ou seja, nos insultava com a gozação, e que passara na TV Globo já em 2007, mais precisamente no programa «Saia Justa».

Mas, ainda que com um belo atraso, o episódio chegou aqui. Um chorrilho de asneiras, umas atrás das outras que culminavam com a «distinta» actriz a cuspir na água da fonte existente nos Jerónimos. Coisa pouca, por conseguinte. Sabem-no todos: existe neste País um ditado que reza que quem não se sente, não é filho de boa gente. E os Lusos sentiram que tinham sido ofendidos – e de que maneira.

As televisões passaram o desgraçado vídeo, no qual um grupo feminino (ao que parece constituído pelos elementos do programa e pela própria Maitê Proença) gozava com as alarvidades que a Dona fabricara. A internet, em consonância com os ecrãs, ampliou o miserável assunto, com a força que se lhe reconhece. Os cidadãos aumentaram o tom dos comentários, excedendo-se até em muitas circunstâncias.

A «ilustre» veio a terreiro, pedir desculpa aos Portugueses. Afinal, fora apenas uma «brincadeira». A actriz disse que tudo não passou de uma brincadeira, já que, segundo ela, no Brasil, brinca-se com tudo. «Brinco com minha filha do mesmo modo com que brinco com a foto oficial do presidente da República. Não foi nada ofensivo até porque não houve intenção de ofender». Porém, sempre foi acrescentando que em Portugal (que ama com todas as veras da alma dela) há muita falta de sentido de humor.

As coisas são o que são. Correm pela blogosfera inúmeras listas de censura às estúpidas afirmações da «senhora», algumas como atrás disse, usando termos impróprios para consumo… Voam abaixo-assinados a dizer aos cidadãos que não comprem qualquer livro dela, que não assistam a nenhuma peça teatral, se ela tentar cá voltar e que, pasme-se, mudem de canal quando esteja a ser passada telenovela que ela interprete. E, até, que seja proibida de entrar no nosso País. Somos assim, ou oito ou oitenta.

O único (ou quase) sujeito a defender a sua dama, foi o Miguel Sousa Tavares, ex-namorado de curta permanência dela. Alinhou na alegação da «brincadeira» e reforçou a falta de humor lusitana. Foi o Carmo e a Trindade. Malharam-lhe com ganas, mais do que a expressão de Augusto Santos Silva.

Tenho para mim que uma tal onda de protestos e lamentações já exorbitou das dimensões que deveria ter. Com «desculpas» hipócritas, oportunistas e mal-educadas. É retintamente o caso de fazer o mal e a caramunha. Não adianta revolver o punhal na ferida, mas sim, curá-la, mesmo que não fique nunca cicatrizada.

Singularmente, nos dias que hoje culminam, José Sócrates, indigitado pelo triste de Belém para formar Governo, depois de ter ouvido os quatro principais partidos da oposição, declarou que o PS ia governar sozinho. Poucos deram atenção. Se o primeiro-ministro tivesse pedido desculpa por ter ganho as eleições – outro galo cantaria.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O Cartel Municipal

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Por JL Saldanha Sanches

SÃO 16 AS AUTARQUIAS que já optaram por reduzir em 5% o IRS em favor dos residentes no seu concelho: uma possibilidade atribuída aos municípios da qual o presidente do grémio municipal discorda.

Segundo o Sr. Fernando Ruas, um homem de ideias originais e profundas, o que o Estado deveria fazer era dar mais dinheiro aos municípios.

O sentido principal desta medida, contida na última versão da Lei das Finanças Locais, em que o município renuncia a uma parte do que iria receber da partilha das receitas gerais do Estado reduzindo a carga fiscal do seu residente é que os municípios deverão fazer mais e melhor com menos recursos.

Para a maior parte deles, esta ideia de eficiência administrativa e de combate ao desperdício é deplorável: o que é preciso é que o Estado lhes dê mais dinheiro, mesmo que para isso tenha de aumentar os impostos. Mas não os impostos municipais para que os contribuintes não sintam que o fausto autárquico é pago por eles.

O Município deve construir rotundas ornamentadas com mostrengos (obras de arte segundo o esclarecido gosto dos Senhores Presidentes), pavilhões multi-usos sem uso nenhum, subsidiar clubes de futebol e criar empresas públicas municipais para dar emprego aos familiares e clientes.

Se os munícipes acham que isso é pago com o dinheiro “que vem do Estado” nem lhes parece mal. O Presidente tem obra. Se percebesse que era ele, o contribuinte municipal, quem pagava. talvez não gostasse.

Percebe-se. por isso. a aversão à possibilidade de renúncia à redistribuição do IRS. Os autarcas que o fazem recebem chamadas cheias de censuras de colegas de vários partidos. O Presidente do cartel, que tentou a todo o custo que o Tribunal Constitucional matasse o projecto logo à nascença, apela à união sagrada contra os contribuintes.

Nem daquelas velhíssimas lamúrias sobre o interior desertificado (os portugueses deveriam ser proibidos de se deslocar) se esqueceu.

Os municípios conservam aquela mentalidade típica de fidalgos arruinados: por maior que se já a penúria não se deve ligar ao dinheiro e a outras coisas mesquinhas.

Num debate sobre a câmara de Lisboa Santana Lopes ilustrava brilhantemente o tipo autarca-com-obra-e-muitas-dívidas quando sustentava que a grande vantagem de António Costa era (segundo dizia) poder contrair empréstimos. Não lhe passava pela cabecinha que os empréstimos têm que ser pagos.

Nem que as despesas municipais, mesmo em obras tão úteis como piscinas. são, pela natureza das coisas, investimentos pouco reprodutivos (do ponto de vista estritamente económico). Não falamos já das obras inteiramente inúteis para todos excepto para os empreiteiros com boas ligações com a Praça do Município.

As despesas – e as decisões – municipais são a condição para podermos viver em cidades ou vilas que sejam espaços agradáveis. Para conservar a história e a memória das cidades.

São a condição da conservação dos residentes e da atracção de turistas. Mas têm de ser pagas e devem ser pagas por quem beneficia delas e pode julgar a acção dos seus autarcas.

«Expresso» de 10 de Outubro de 2009

A gnomónica das borboletas

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Por Nuno Crato

O SOL É UM ASTRO PRECIOSO para a navegação. Mas é preciso saber usá-lo. Diz-se que aponta para sul, mas isso nem sempre assim é. De madrugada aparece a leste, e ao cair da noite está a oeste. Só ao meio-dia aponta exactamente para sul. Mesmo assim, isto só é verdade no nosso hemisfério, pois quando passamos para baixo do equador, aponta para norte. E só fora dos trópicos assim se passa durante todo o ano. Confuso? Pois isto é apenas o começo.

Em tempos idos, quando seguíamos o tempo pelos relógios de sol, havia especialistas que percebiam todos os aparentes do Sol e sabiam construir aparelhos que marcavam a hora com grande precisão. O tema é tão intrincado, envolvendo tantos conhecimentos, da trigonometria à astronomia, que tinha um nome especial. Falava-se de gnomónica.

É um nome curioso. Vem de gnómon, uma palavra de origem grega que significa «ponteiro», ou «o que indica». Os ponteiros dos relógios de sol recebem o nome de gnómones e podemos usá-los para orientação, desde que saibamos o que estamos a fazer.

Para fixar ideias, imaginemos que nos encontramos sempre a norte do trópico de Câncer — o sol do meio-dia está pois sempre a sul. Tentemos agora fazer uma viagem de 4000 quilómetros usando apenas o Sol como bússola. Não deve ser fácil. De manhã, o Sol aparece-nos a leste e teremos de navegar com ele à nossa esquerda. Enquanto as horas avançam, o Sol vai-se deslocando para sul e teremos de viajar com ele à nossa frente. Passado o meio-dia, o Sol começa a deslocar-se para oeste e teremos de avançar com ele à nossa direita.

Teremos pois, no decorrer do dia, que ir compensando o movimento aparente do astro. Com um relógio e tabelas da posição do Sol, isso é fácil. Mas se não tivermos nem um relógio nem tabelas a tarefa complica-se. Teremos de o fazer de maneira muito aproximada, usando o relógio interno que todos temos algures no cérebro.

Pois é perante uma tarefa destas que se encontram as borboletas monarcas (Danaus plexippus) que, todos os anos, pelo Outono, guiando-se pelo Sol, fazem uma viagem heróica desde o Canadá e as e planícies norte-americanas até aos planaltos centrais do México. São mais de 4000 quilómetros de voo praticamente ininterrupto.

Sabemos que essas borboletas, que há alguns anos começaram a estabelecer colónias também no sul de Portugal, se orientam pelo sol. Colocando-as num ambiente escuro elas viajam sem direcção preferencial e colocando-as face a uma luz seguem-na, mudando de orientação ao longo do dia. Recentemente, três investigadores da Universidade de Massachusetts, conseguiram determinar o órgão das borboletas que controla este complexo mecanismo de orientação. Ao contrário do que se pensava, não se situa no seu diminuto cérebro. Está nas suas antenas. São estas que permitem ao animal orientar-se pelo sol.

O estudo dos investigadores norte-americanos acaba de sair na «Science» (DOI: 10.1126/science.1176221). Relatam como removeram as antenas de alguns insectos e estes passaram a não conseguir orientar-se no voo, apesar de manterem o seu relógio interno no cérebro. Cobrindo as antenas com uma tinta preta, obtiveram o mesmo resultado. Confundindo-as, expondo as antenas ao sol apenas após o meio dia, notaram que as borboletas seguiam voo perpendicularmente à direcção do Sol, como fariam normalmente quando este está a nascer.

As borboletas monarcas são mestres na gnomónica.

«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 10 de Outubro de 2009

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

MANUEL ALEGRE viu-se obrigado a apressar o seu calendário político e a retirar o véu diáfano com que vinha encobrindo (pouco) o desígnio que o tem movido nos últimos dois anos: ser o candidato unitário do PS e de toda a esquerda às presidenciais de 2011. Desde já, Alegre veio assumir a sua disponibilidade presidencial e apontar o dedo a «uma parte da direcção do PS, como os chamados soaristas», àqueles que «tudo farão para que eu não seja o candidato do PS». E adverte os recalcitrantes: «Agora, todas as semanas vai aparecer um candidato. Desde já eu aviso: estou prevenido».

A verdade é que, só nas últimas semanas, já apareceram, lançados do PS como alternativas a Alegre, os nomes de Jaime Gama, de António Guterres e até de Jorge Sampaio. Ora, a sugestão da candidatura de Sampaio é, no mínimo, delirante (ninguém está a ver o ex-Presidente a macular a carreira e o prestígio que conquistou com uma quimera fora de prazo e destinada ao fiasco, como a de Mário Soares em 2006) e a de Guterres vem a destempo (se, porventura, acalenta o sonho de chegar a Belém, o seu momento será em 2016 e nunca em 2011). Mas já a hipótese Jaime Gama pode ir fazendo o seu curso no seio do PS. E estorvar a caminhada frentista de Alegre.

Alegre tem dois problemas difíceis de superar na sua ambição presidencial. O primeiro é que, curiosamente, suscita mais anticorpos no aparelho e nas bases do PS do que entre os dirigentes e militantes do Bloco de Esquerda. O segundo é que, reunindo características ideais para fazer o rassemblement do povo de esquerda, dificilmente disputará a Cavaco Silva os votos decisivos do eleitorado do centro.

Jaime Gama, reconheça-se, reúne melhores condições para ultrapassar qualquer um destes problemas. Ainda que fique muito longe da capacidade de Alegre para mobilizar e empolgar a esquerda numa corrida presidencial contra a direita.

Por tudo isto, Manuel Alegre vai reconhecendo que Cavaco será «um adversário muito difícil. Não menorizava o Presidente, como estão já a fazer, dando-o como derrotado. Isso é um disparate». E vai lançando avisos para o interior do PS: «O Vítor Ramalho já começou, depois veio o Sérgio Sousa Pinto... Não estou disponível para esses jogos nem para essas armadilhas». Não está disponível, mas é bom estar preparado...

«SOL» de 9 de Outubro de 2009

sábado, 10 de outubro de 2009

Eleições - Parte 2

Por Alice Vieira

E LÁ TEMOS de novo eleições.

E lá temos de novo as mesmas esperanças, as mesmas angústias, as mesmas horas que têm todas muito mais de sessenta minutos.

E lá encontramos de novo as mesmas pessoas, “cá estamos outra vez”, “então, tem de ser”, arrastando-se até às mesas, enganando-se de vez em quando, “então tu não me disseste que era na 5?”, “da outra vez acho que foi”, “mas a outra vez foi a outra vez, esta vez é esta vez”, “anda lá para a frente e não me chateies!”, tudo em prol da democracia e da harmonia familiar.

E de novo ficamos plantados diante do televisor, que nos informa que o político A foi passar a tarde ao cinema, que o B foi andar de bicicleta para o Parque das Nações, que o C anda com os filhos pela “Kidzania” a mostrar-lhes o que a vida custa a ganhar, que o D está de visita à avozinha que se encontra num lar, que o E aproveitou para pôr em dia as palavras cruzadas de uma data de jornais atrasados — ou seja, que só nós é que somos parvos ao ponto de ficarmos agarrados ao écran a roer as unhas.

E de novo ouvimos as mesmas análises, as mesmas desculpas, as mesmas justificações.

E de novo nos admiramos com as declarações que já devíamos saber de cor, e esperamos pelas oito horas por causa dos Açores, e mesmo em cima das oito horas já as televisões anunciam os resultados, e toda a gente fica a saber tudo, menos os desgraçados que estão a contar os votos das urnas, esses são, como os maridos enganados, os últimos a saber — o que não deixa de ser estranho, e nunca entrou na cabeça da minha tia Clara que, até morrer, coitadinha, perguntava sempre, em alturas destas:

- Se só agora é que estão a abrir as urnas, como é que na televisão já sabem quantos boletins havia dentro de cada uma?

Acho que pensou sempre que ali havia um bruxedo qualquer, quem sabe se não terá mesmo suspeitado de um intrincado sistema de escutas dentro das urnas ou qualquer outro plano igualmente diabólico.

E de novo os que ganharem, ganham; e os que perderem também ganham – mas quem na verdade ganha é o chinês da minha rua, que é o único restaurante aberto em todo o bairro em dia de eleições.

Mas ainda estou para saber por que é que a gente anda para aqui com eleições, se todos nós sabemos (porque há anos que os ouvimos…) que os melhores candidatos a deputados, a presidentes da República, e de câmaras, e de juntas de freguesia, aqueles mesmo perfeitos, aqueles que a gente tem a certeza de que nunca se hão-de enganar e que hão-de ter sempre a solução certa para todos os problemas — estão a arrumar carros, a escanhoar barbas e a guiar táxis. Íamos buscá-los, resolvíamos alguns problemas de desemprego, e o país era, finalmente, governável.

«JN» de 10 de Outubro de 2009

Nobel ao almoço

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Por Antunes Ferreira

TINHA IDO À ROMÉNIA em 1985 para entrevistar para o DN o tovarich (camarada) Niculae Ceauşescu. Um Amigo que me pediu para não revelar o seu nome, à cause des mouches, proporcionou-me um encontro com o jornalista e escritor Keno Verseck, que fora por diversas vezes preso pela todo-poderosa Securitate, a PIDE lá do sítio. Estabeceu-se, de repente, uma empatia que duraria ao longo dos anos. Fomos tomar umas ţuicăs (aguardente de ameixa) ao Ateneul Român, no centro da capital e Keno convidou-me para em seguida almoçar.

Tiro e queda. Uns sarmale para começar, uma ciorba de pui e mititei cu mămăligă acompanhado por um Murfatlar de estalo e, no final um prăjitură: clătite cu brinză de vaci. Cafea e rechiu vechi. Um monumento gastronómico. Traduzo: uns rolinhos de folhas de videira recheados de carne (na Grécia, na Turquia, na Bulgária também existem e já ali os provei); sopa ácida de galinha; croquetes de carne grelhados com papas de milho encorpadas; vinho de muito boa qualidade; bolo; crepes com queijo branco; café e aguardente velha.

O Ateneul (ul é o artigo o, desculpem o pleonasmo repetitivo. O Romeno tem declinações, porra!) já então era um santuário de escritores, jornalistas, poetas, músicos, pintores, enfim, gente ligada às Artes. Saboreávamos o néctar que eu julgava final, quando se aproximou uma Senhora. Keno levantou-se, deu-lhe três beijos nas faces e abraçou-a. Ela correspondeu na mesma medida.

Voltando-se para mim: «Quero apresentar-te a Herta Müller.» Confesso que não sabia absolutamente quem ela era e o meu ar interrogativo fez rir os dois. «Falas um pouco de alemão, penso?» Respondi-lhe «Ein wenige…» E acrescentei um macarrónico «Ich kan verstehen, klein, klein…» Então, o riso tornou-se em gargalhadas, as dela mais sonantes.

Resumindo: falámos em francês que todos dominávamos e o Verseck informou-me que se tratava de uma escritora romena, excelente, de cultura alemã. E a ela, ele sublinhou «este Senhor é um grande jornalista Português…», ao que atalhei «Só se for no tamanho» o que deu fruto: novas casquinadas.

A conversa prolongou-se pela tarde. Ela também fora e era perseguida durante o reinado do presidente comunista. Trocámos ideias sobre essas coisas da privação da liberdade, dos crimes de opinião – ela sabia algo sobre o regime salazarento – e fomos por aí fora, entre a aguardente de ameixa e o conhaque. E as recordações. O Romeno é a única língua – que eu conheça – que tem a palavra saudade igualzinha à nossa no sentimento. Dizem… dor. Assim mesmo.

Jantei com a Herta e o Keno quatro dias depois, no «Pescăruş» (Gaivota) na margem do Lago Herăstrău, no parque urbano de Bucareste com o mesmo nome. Keno, eufórico de alegria, disse que ela, ainda um dia, receberia o Nobel. E não é que recebeu mesmo?

Mandei-lhe anteontem um mail: «Felicităre!» - parabéns! E logo me respondeu «Obrigado». Tinha-lhe dito que era assim que se agradecia em Português. Ela lembrou-se.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O «Bolonhês» não existe, afinal?

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Por Nuno Crato

1. Com o título «Ficamo-nos pelo ‘Bolonhês’?», assinei um artigo que saiu no número 31 desta Revista [Ensino Superior, do Sindicato Nacional do Ensino Superior, SNESup], no primeiro trimestre de 2009, nas páginas 9 a 13. Nele criticava alguns aspectos do processo de Bolonha, em especial três: a forma como as licenciaturas foram reduzidos para três anos, a estrutura dos ECTS e a moda do ensino por competências. No número seguinte da revista, os meus colegas João Vasconcelos Costa e Rui Pulido Valente fizeram o favor de criticar algumas das minhas observações. Digo bem: fizeram-me e fizeram-nos esse favor, pois nada é mais estéril do que semear ideias sem que haja contraditório. Quando este existe, percebe-se melhor o que cada um dos intervenientes defende. Não temos a ilusão de convencer os leitores, mas temos a ambição de ajudar alguns a perceberem melhor o que está em causa. E o que está em causa são algumas ideias tão repetidas e tão pouco discutidas que podem parecer intocáveis.

2. Uma ideia que aparece como consensual, tão consensual que o nosso colega Vasconcelos e Costa, que é, noutros aspectos, crítico dos consensos pedagógicos, a repete como sendo «a competência máxima, síntese de todas as tais outras competências que a moderna educação superior deve facultar» é a ideia de que «é preciso aprender a aprender» (p.13, col.1).

O que vou dizer em seguida é capaz de ser uma surpresa para muitos leitores: essa ideia, pelo menos na sua versão radical e em alguns aspectos testáveis, é contrariada pelas pesquisas recentes da psicologia cognitiva. Está pois muito longe de ser uma ideia consensual, excepto na sua versão corriqueira.

Seria óptimo ter espaço, tempo e conhecimento para poder explicar cabalmente o tema. Não os tendo, vou limitar-me a dois ou três pontos essenciais. Comecemos pela versão corriqueira do «aprender a aprender». Nesta versão, uma das funções do ensino será fornecer aos jovens indicações sobre processos de pesquisa de informação, ensinar-lhes métodos de estudo, ajudá-los a controlar e auto-avaliar os processos de aprendizagem, tentar incutir-lhes curiosidade, espírito racional e capacidade de dúvida, explicar-lhes o método de investigação científica. Aqui estamos todos de acordo, pelo menos em palavras. Se chamarmos a isto «aprender a aprender», não vale a pena perder tempo com o problema. Duvido que essa seja a «competência máxima» e julgo que a ninguém serve desenvolvê-la se não tiver conhecimento substantivo em alguma área do saber. Também duvido que a tão apregoada volatilidade do conhecimento (p.13, col.1) transforme em obsoleta uma fracção imensa do que se aprende nas escolas — conhecer bem a mecânica de Newton ajuda, e muito, a perceber a mecânica de Einstein; e a ninguém passa pela cabeça, espero, deixar de ensinar a mecânica clássica. Mas isso são outros desentendimentos.

Onde começa o verdadeiro desacordo é no que se pensa ser a maneira de atingir o objectivo de «saber aprender». Todos ouvimos já a parábola do peixe e da cana de pesca: se vires um homem com fome, não lhe dês um peixe, ensina-o a pescar. Transpondo esta parábola para o ensino, como é vulgar nas correntes pedagógicas românticas, coloca-se em oposição «aprender» e «aprender a aprender». A parábola traduz-se então nesta ideia fantasiosa: não o ensines, ensina-o a aprender.

Jean Piaget, um dos maiores vultos do construtivismo, tinha já exposto ideias semelhantes. Conhece-se-lhe a frase infeliz «cada vez que se ensina prematuramente a uma criança algo que ela poderia ter descoberto por si, ela fica impedida de a inventar e, por isso, de a compreender completamente». É uma frase que alguns teóricos da pedagogia portuguesa têm transformado num logro perigoso. Entre nós, o Ministério da Educação pôs em prática a parábola do peixe através dos computadores Magalhães: não os ensines, dá-lhes um instrumento com que possam aprender.

Estou a caricaturar, como me acusam os meus críticos (p.10) de ser meu hábito? Claro que estou, mas por trás da caricatura estão duas ideias: primeiro, o Ministério tem-se preocupado mais com os equipamentos do que com as aprendizagens; segundo, essa política encontra fundamentação teórica no «aprender a aprender».

O que a psicologia cognitiva moderna concluiu é que, com excepção das recomendações simples de apoio ao estudo acima enunciadas, não há oposição entre «aprender» e «aprender a aprender». Mais, a única maneira de «aprender a aprender», que não reafirma este slogan como uma frase vazia, vaga e enganadora, é aprendendo algo. De onde resulta que «aprender a aprender» é apenas uma de duas coisas: ou um aspecto consensual, quase técnico e quase acessório no ensino, sobre o qual não vale a pena argumentar, ou um erro brutal que condena o jovem à ignorância.

Quem estiver curioso em perceber melhor este tema pode, por exemplo, ler o recente survey de John Sweller «What human cognitive architecture tells us about constructivism» [1], e as referências nele citadas, ou alguns trabalhos-síntese de David Geary [2] e John Anderson [3], dois dos maiores nomes da psicologia cognitiva da actualidade.

3. Outro consenso, que o meu colega Vasconcelos Costa considera «claramente dominante» e transforma em «máxima», que se dispensa de «justificar, tão extensa seria a simples citação de trabalhos sobre este tema» é o seguinte: «o estudante deixou de ser o agente passivo do ensino para ser o agente activo da aprendizagem» (p.11, col.1). A resposta mais honesta que posso dar é a seguinte: não sei o que isto significa na mente do meu crítico, pois há milhares de versões desta «máxima». O que posso garantir é o seguinte: as ideias em causa são tudo menos consensuais. Há quem considere que o aluno é sempre um agente activo, pois a aprendizagem é sempre activa, mesmo no ensino mais passivo e tradicional [4], quem note que a pedagogia dita activa, com tarefas pouco estruturadas, conduz a aprendizagens ineficientes e pouco profundas [5] e quem defenda, com base em experiências estatisticamente validadas, que o problema está mal colocado [6].

É verdade que «extensa seria a simples citação de trabalhos sobre este tema» defendendo a «máxima» do «agente activo». Mas em estudos educativos passa-se algo difícil de acreditar para quem tem uma formação científica, como é o caso dos meus dois críticos. O que se passa é que os estudos educativos, talvez sobretudo os portugueses, estão pejados de ensaios, de artigos medíocres sem qualquer valor científico e de citações de citações, numa espiral confirmatória que muitos julgam colocar esses estudos do lado da verdade, por tão extensa ser «a simples citação de trabalhos sobre o tema». Os ensaios e artigos de opinião são necessários, mas seria ridículo considerar, por exemplo, que estes textos modestos que escrevi para a revista Ensino Superior são textos de investigação em educação. Vão ler os currículos de muitos dos nossos ditos «cientistas da educação» e verão como simples opiniões deste estilo são acumuladas de forma acrítica e apresentadas como investigação confirmatória. Dado o apelo que as ideias românticas ditas «progressistas», do ensino dito «activo», despertam entre os nossos professores interessados e generosos — como tenho a certeza ser o caso de Vasconcelos Costa e de Pulido Valente —, é muitas vezes fácil fazer passar por ciência o que não passa de acumulação acrítica e repetitiva de ideias vagas e sem fundamento científico.

Muito gostaria de poder desenvolver este tema, que foi já bastante discutido no meu livrinho O Eduquês. Em breve colocarei na Internet uma primeira versão do trabalho «Melhorar o Ensino da Matemática com Ferramentas do Século XXI» e tentarei completá-lo e publicá-lo em 2010. Dentro de poucas semanas irão sair os contributos da conferência internacional da Gulbenkian de 2008 Ensino da Matemática: Questões e Soluções, que inclui, nomeadamente, sínteses críticas dos psicólogos David Geary e José Morais. Recomendo entretanto, para quem sabe francês, os estudos de Clermont Gauthier e da sua equipa sobre a eficácia dos diferentes métodos de ensino [7] e, para quem prefere o inglês, uma extensa discussão sobre o construtivismo editada este ano por dois investigadores insuspeitos de «superficialidade anti-construtivista» [8]. Quem julga que existe um consenso sobre a dita «pedagogia activa», a «aprendizagem pela descoberta» e o «ensino por projectos» ficará certamente surpreendido. Sobretudo, ficará surpreendido com duas coisas. Uma é o número esmagador de estudos científicos bem delineados e organizados que criticam fundamentadamente os resultados do consenso pedagógico romântico que sofremos. Outra é a fraqueza de resposta do «consenso pedagógico»: poucos ou nenhuns estudos científicos e muita argumentação ideológica.

4. Na viragem de século, o romantismo pedagógico e o construtivismo dogmático inventaram uma nova abordagem aos objectivos de ensino: o ensino por competências. A moda pegou, mas como teve muitas versões e os seus promotores em Portugal exacerbaram as confusões terminológicas [9], será preciso referirmo-nos a uma teoria determinada para sabermos do que estamos a falar. Julgava que o tinha feito no meu artigo publicado nesta revista, mas as críticas dos meus colegas levam-me a acreditar valer a pena ser mais preciso. Não se trata de confundir «competências» com «skills», interpretando estas como «aptidões», nem de dizer que as competências não incluem os conteúdos, como contestam os meus colegas. É algo mais profundo.
A teoria que critico é a formulada por Perrenoud [10] e defendida em alguns dos documentos oficiais portugueses, nomeadamente no «Currículo Nacional do Ensino Básico: Competências Essenciais», aprovado pelo Ministério da Educação em 2001. Esta teoria de organização do ensino por competências pode caracterizar-se da seguinte maneira:

(1) o que importa não é o conhecimento puro, mas sim o conhecimento em acção;
(2) os objectivos curriculares devem ser formulados em termos de capacidades de aplicação, envolvendo os conhecimentos como subsidiários dessas capacidades;
(3) as competências são uma categoria englobante dos conhecimentos, das atitudes, da capacidade de aplicação e de outros objectivos do ensino.

Como o sintetizou uma vez um dos defensores desta teoria, «não importa que os alunos saibam quanto é dois mais dois, o que importa é que saibam calcular quantas cadeiras há numa sala em que há duas cadeiras de um lado e duas do outro». Estou em total desacordo.

As críticas que têm sido formuladas a estas ideias são essencialmente as seguintes:

(1) há valor no conhecimento puro, mesmo que não se visualize ou não se alcance a aplicação desse mesmo conhecimento;
(2) as ditas competências não devem pois ser apresentadas como categoria que engloba todos os objectivos de aprendizagem, devendo estes ser claramente decompostos em conhecimentos e capacidades;
(3) ao estabelecer a categoria de competências como orientadora de todo o ensino, substituem-se objectivos claros, precisos e mensuráveis por objectivos aparentemente grandiosos, mas vagos e difíceis, quando não impossíveis de aferir.

Para se perceber que estas críticas não são uma excentricidade minha [11] ver a discussão sobre as orientações pedagógicas no Canadá [12] os países melhor colocados no TIMSS e no PISA, ou toda a insistência na decomposição de aprendizagens defendida pelos cognitivistas modernos [13].

Na proposta inicial do Estatuto da Carreira Docente Universitária preconizava-se a «passagem de um ensino baseado na transmissão de conhecimentos para um ensino baseado no desenvolvimento de competências». A Sociedade Portuguesa de Matemática emitiu em 27 de Maio deste ano um parecer crítico sobre esta formulação [14] felizmente foi então abandonada.

5. Uma das medidas infelizes de Bolonha é a forma como foi concebido o sistema de créditos pelos ECTS, que são a moeda de troca dos estudos obtidos nas universidades. Tem-se em vista, e muito bem, a mobilidade, mas não se concretiza esse objectivo da melhor maneira. Perdoem-me repetir o que escrevi nesta revista sobre esse tema: «o que parece mais criticável é a forma como esses créditos são medidos. Não se destacam acima de tudo os conteúdos académicos, que se revelam pelos programas de estudo cumpridos. Não se usa uma medida objectiva, como, por exemplo, o número de horas de aulas, teóricas, práticas e outras (as chamadas horas de contacto). Ao invés, usa-se uma avaliação complexa, impossível de aferir com objectividade, em que se estimam as horas de trabalho que os estudantes dedicam a uma determinada cadeira. É uma completa ficção.»

Trata-se de novo, julgo, de uma aplicação do princípio «eduquês» de substituir objectivos modestos, claros e mensuráveis por finalidades grandiosas e difíceis de medir com objectividade. Os meus colegas contestam-me que não sei o que se está a fazer no país (p.14, col.2) — e terão alguma razão pois não saberei o que se passa em todo o Portugal, apesar de conhecer bem o que acontece em algumas escolas. Não é isso que está em causa: trata-se de uma escolha que foi feita pela congregação burocrática bolonhesa e da qual discordo pelos aspectos listados acima.

A nossa dificuldade de sintonia parece ser da mesma ordem que o desacordo quanto às outras orientações pedagógicas. Não digo que a organização por competências não inclua os conteúdos (p.12, col.1). Digo que não os individualiza devidamente e contesto a forma como os diversos componentes estão organizados. Os meus colegas terão a maior das boas vontades na sua interpretação das recomendações reformistas universitárias, o que sustento é que algumas dessas recomendações, tal como foram formuladas pela congregação bolonhesa, não são acertadas.

6. Finalmente, os meus colegas acusam-me de «superficialidade crítica», de enfatizar «o lado mais negativo de Bolonha» e de ter uma atitude que «não ajuda» (p.14, col.1). São críticas a que não sei responder. Listei dois ou três desacordos de orientação pedagógica e defendi que nos devemos «libertar de algumas ideias estéreis». Não pretendi exercer uma rigorosa exegética crítica nem proceder a um balanço global do processo de Bolonha, que tem aspectos altamente positivos, nomeadamente no incentivo à mobilidade. Espero que as críticas não levem a concluir que não vale a pena trabalhar para que a reforma dê os melhores frutos. Longe de mim tal ideia. Percebo que colegas que tiveram esperanças nas mudanças e que se empenharam generosamente na reforma possam ficar chocados com a minha secura. Digo o que penso, nada mais.

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REFERÊNCIAS:
[1] Publicado em Sigmund Tobias e Thomas M. Duffy (2009), Constructivist Instruction: Success or Failure?, Routledge, pp. 127–143.
[2] Geary, D. C. (2006), Evolutionary developmental psychology: Current status and future directions. Developmental Review, 26, 113-119; Geary, D. C. (2005), Folk knowledge and academic learning, in B. J. Ellis & D. F. Bjorklund (Eds.), Origins of the social mind. (pp. 493-519), Guilford Publications.
[3] Anderson, J.R., Greeno, J.G., Reder, L.M., & Simon, H.A. (2000), Perspectives on Learning, Thinking, and Activity, Educational Researcher, 29(4), 11-13; Anderson, J.R., Reder, L.M., & Simon, H.A. (1998), Radical Constructivism and Cognitive Psychology, in Ravitch, D. (Ed). Brookings Papers on Education Policy: 1998. Washington, D.C. Brookings Institution, pp. 227–255.
[4] V. Richard E. Mayer (2009), Constructivism as a theory of learning versus constructivism as a prescription for instruction, in Sigmund Tobias e Thomas M. Duffy, Constructivist Instruction: Success or Failure?, Nova Iorque e Londres: Routlege, pp. 185–200.
[5] G.D. Borich (2000), Effective Teaching Methods, Merrill-Prentice Hall.
[6] D. Klahr & M. Nigam (2004), The equivalence of learning paths in early science instruction: Effects of direct instruction and discovery learning, Psychological Science 15, pp. 661–667.
[7] V., por exemplo, Steve Bissonnette, Mario Richard & Clermont Gauthier (2005), Échec scolaire et reforme éducative : quand les solutions proposés deviennent la source du problème, Québec: Les Presses de l’Université Laval.
[8] Sigmund Tobias e Thomas M. Duffy, Constructivist Instruction: Success or Failure?, Nova Iorque e Londres: Routlege.
[9] Maria Helena Damião (2004), (Ainda) sobre a noção de competência na educação escolar básica», Gazeta de Física 27–3, 2004, 31–33.
[10] Ver, por exemplo, Philippe Perrenoud (2001), Porquê Construir Competências a partir da Escola?, Porto: Asa.
[11] Nuno Crato (2006), O ‘Eduquês’ em Discurso Directo: Uma Crítica da Pedagogia Romântica e Construtivista, Lisboa: Gradiva, pp. 75–79.
[12] Steve Bissonnette, Mario Richard & Clermont Gauthier (2006), Comment Enseigne-t-on dans les écoles efficaces?, Québec: Les Presses de l’Université Laval, pp. 98–112 e passim.
[13] John R. Anderson & C. Lebiere (1998), The Atomic Components of Thought, Mahwah, NJ: Erlbaum; John R. Anderson, L.M. Reder & H. Simon, Situated learning and education, Educational Researcher 25, 5–11.
[14] http://www.spm.pt/files/outros/ECDU.pdf

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Malandros e Serafins

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Por Baptista-Bastos

QUAL O PODER DA PALAVRA, numa época não propícia ao prazer da sua fruição? Nenhum. Nota-se que a maioria dos políticos alimenta um conflito insanável com os livros. Como não lê, não sabe escrever e pensa com desmedida dose de preguiça. Se é que pensa. Os discursos proferidos após as eleições legislativas foram tão vazios de sentido quanto de conteúdo. Para consolar um pouco a nação dos desgostos, veio o dr. Cavaco saudar o 99.º aniversário da República invocando a moral política e a ética que se lhe associa. Uma fraca peça de retórica. No entanto, comentadores houve que escabicharam o débil texto, dele extraindo sibilinos avisos a Sócrates e ao próximo Governo. E como o secretário--geral do PS comemorou o aniversário da implantação da República na Câmara Municipal, e o Chefe do Estado no palácio de Belém, logo os comentadores rasparam a notória inutilidade do facto para fazerem o apostolado da intriga. "Ele largou umas farpas ao Cavaco, reparaste?"

A não-notícia converteu-se nos parágrafos da provisão com que a imprensa, as rádios e as televisões nos alimentam, e assim, com alegre ligeireza, desviam de cima das nossas cabeças os horrores que nos ameaçam. Regresso a Jorge de Sena: "Que Portugal se espera em Portugal? Que esperar daqui? O que esta gente não espera porque espera sem esperar? Nada de bom. Chega a ser hilariante o azougue com que se movimenta Paulo Portas. O homem, já de si, é um agitado, um excessivo, um gesticulante. Agora, aureolado de chefe da oposição, é exaustivo, porque carregado de prodigiosa ostentação de si próprio.

É gente deste jaez e estilo que compõe o cenário da nossa desventura política. O CDS inchou proporcionalmente ao emagrecimento do PSD; os votos do PS foram para o Bloco de Esquerda e para o PCP, e a recomposição do quadro parlamentar não vai resolver coisa alguma. Há quem defenda que a "fragmentação" da Assembleia pode inspirar novas opções e agitar a piedosa sonolência dos deputados. Não o creio. Como todos os partidos têm de fazer cedências para se manterem no poder, as coisas vão ficar mais ou menos na mesma - e nós é que suportaremos as penitências.

O paradigma pode ser outro, mas as pessoas não se alteraram. Todos regressaram aos antigos lugares e às antigas rotineiras funções. O discurso não se inova, não se modifica porque a cábula permanece inalterável. Os partidos abandonaram, há muito, a representação do concebível e, hoje, não passam de burocracias cheias de pó, servidas por zelosos funcionários sem grandeza e, acaso, sem honra. Nada de isto me regozija. A teoria do quanto pior, melhor, não faz cama nas minhas ideias. Mas a da imobilidade também me não embala. Vamos esperar para ver. Para ver quê? Os malandros transformarem-se em inesperados serafins?

«DN» de 7 de Outubro de 2009

terça-feira, 6 de outubro de 2009

6 Out 09 - Prémio da 1ª fase

6 Out 09 - Prémio da 2ª fase

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O elo que faltava

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Por Nuno Crato

NA REVISTA «SCIENCE» DE ONTEM, um grupo de cientistas relatava uma das maiores descobertas científicas dos últimos anos: a de uma espécie que recebeu a designação de Ardipithecus ramidus (Ar. ramidus) e que é mais antiga que a dos Australopithecus, situando-se antes deste na longa evolução que nos conduziu até ao que hoje somos. Na realidade, o Ardipithecus foi descrito pela primeira vez em 1994, mas são os estudos agora publicados na «Science» que mostram a sua posição na nossa linhagem evolutiva e trazem a lume muitas das suas características, revolucionando o nosso conhecimento sobre as espécies que nos antecederam.

O Austrolopithecus, descoberto em 1924, tinha já alargado imenso a compreensão sobre a nossa linha evolutiva. Esse grupo, de que o espécimen Lucy é o achado mais famoso, apareceu, ao que se crê, há cerca de quatro milhões de anos e sobreviveu até há cerca de um milhão. O conhecimento do que se anteriormente se passou era, até há pouco, muito fragmentado. Com a nova descoberta, esse conhecimento estende-se até ao antepassado que tivemos em comum com os chimpanzés, há cerca de seis milhões de anos, pois o Ar. ramidus terá vivido desde essa altura até há cerca de quatro milhões de anos.

A descoberta é fascinante para os especialistas e para todos nós. Mas o leigo, ao folhear as páginas da «Science», talvez fique sobretudo espantado com o manancial de informação que os especialistas conseguem retirar de meia dúzia de restos, necessariamente muito deteriorados, encontrados nos últimos anos. Comentário equivalente se aplica aos leitores do interessantíssimo livro de Luísa Pereira e Filipa M. Ribeiro, «O Património Genético Português» lançado há pouco entre nós. Só que este último está muito mais perto de nós no tempo e no espaço.

Por fósseis de sementes e de outros componentes orgânicos e pelo estudo geológico do local onde os restos foram encontrados, em sedimentos na região Afar, da moderna Etiópia, os especialistas concluem que o Ar. ramidus não vivia em savanas, como anteriormente se pensava que acontecia com os antepassados do Austrolopithecus, mas sim num ambiente mais húmido e fresco, com habitats florestais. Desse e de outros dados concluem que a anatomia e comportamento dos primeiros hominídeos não evoluíram em resposta a um ambiente aberto, que facilitasse a postura erecta.

Pela análise dos isótopos de carbono encontrados nos dentes, os cientistas tiraram conclusões sobre os hábitos alimentares destes nossos antepassados, concluindo que se tratavam de omnívoros colectores em que os frutos eram essenciais. Pelo estudo dos ossos das mãos, os especialistas perceberam como se locomoviam e seguravam às árvores. Tiraram ainda conclusões sobre a evolução das nossas mãos, que se terão diferenciado das dos antigos chimpanzés de forma diferente da que se admitia. Finalmente, pelo estudo do esqueleto concluíram que o Ar. ramidus terá evoluído para adoptar simultaneamente uma postura vertical e subir facilmente às árvores.

No total, a «Science» publica 11 artigos sobre estas descobertas. Significativamente, cada artigo é antecedido de um resumo de uma página perceptível para os leigos. É visível, como poucas vezes terá sido, a intenção de a revista se apresentar com uma vertente de divulgação em simultâneo com a vertente puramente científica. É bom que a ciência goste de se dar a conhecer.

«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 3 de Outubro de 2009