terça-feira, 23 de março de 2010

Ebay, mercado e religião

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Por Nuno Crato

A PRIMEIRA VEZ que fiz um negócio no Ebay fi-lo com receio. Fi-lo, porque qui-lo, eu sei, mas a oportunidade não deveria ser perdida. Não sou coleccionador maníaco, mas um disco de cálculo russo de meados do século passado por um preço base de 10 dólares era demasiado tentador para quem, como eu, sempre gostou de réguas de cálculo e nunca teve oportunidade de brincar com uma que fosse circular. Registei-me no ebay.com, introduzi o número de cartão de crédito e entrei no leilão. Acabei por comprar o instrumento por cerca de 20 euros, incluindo portes de correio de Moscovo para Lisboa.

O meu grande medo não foi introduzir o número do cartão de crédito. Sei que há sistemas criptográficos muito avançados, baseados numa invenção matemática que permite a troca de informação de forma absolutamente segura. O meu medo foi que gastasse dinheiro sem ver o meu objecto de desejo. Ou vê-lo apenas em fotografia.

Dias depois, chegou-me por correio uma pequena caixa com escritos em russo. O “N” do meu nome vinha ao contrário, mas chegou. A minha confiança num vendedor russo de quem nem sequer percebia o nome trouxe-me às mãos um magnífico aparelho muito parecido com um relógio, mas que permite fazer multiplicações ajustando com um manípulo as escalas logarítimicas.

Pensando melhor, não foi um tiro no escuro. Os leilões do Ebay são um mercado de trocas frequentes. E são um mercado muito transparente. Se a mercadoria não me chegasse às mãos eu poderia deixar um comentário negativo sobre o comerciante e ele, pelo menos com o mesmo registo legal, não voltaria a ter clientes. O funcionamento regular do mercado estimula a confiança nos seus agentes, foi o que eu assumi sem o saber.

Mas esta semana saiu na “Science” um estudo surpreendente (10.1126/science.1182238). Catorze economistas e psicólogos, liderados por um cientista canadiano, fizeram experiências em sociedades diversas, com graus de desenvolvimento e integração muito diferentes. Foram a regiões remotas do globo, onde os mercados ainda funcionam mal e onde ainda existem normas sociais que, para nós, são resquícios de um passado remoto, em alguns casos pré-histórico. E mediram o nível de egoísmo e de altruísmo vigentes nas diferentes sociedades.

Nos diversos locais, os investigadores fizeram experiências com jogos que têm sido muito estudados. Usaram o Jogo do Ditador, em que uma pessoa tem a possibilidade de escolher ficar com uma soma de dinheiro ou partilhá-la com outro jogador; praticaram o Jogo do Ultimato, em que dois jogadores podem partilhar uma soma de dinheiro se se conseguirem entender na regra de divisão; e jogaram o Jogo da Punição por Terceiros, em que três jogadores se têm de entender para a partilha de uma quantia. Dos resultados dos jogos praticados por muitos habitantes locais, ficaram com uma medida do grau de altruísmo e do grau de confiança mútua existentes nas diversas sociedades.

Cruzaram depois os dados com diversas variáveis sociais, tais como a dimensão da comunidade, as actividades económicas e o rendimento das famílias. Feito o estudo estatístico com os usuais métodos de regressão, há dois factores que aparecem como decisivos para o desenvolvimento da confiança social e do sentido de justiça. Esses factores são: a penetração de uma religião mundial, como é o caso do cristianismo ou do islamismo, e o desenvolvimento do mercado! Senti-me muito evoluído, por ter confiança num vendedor russo de quem nunca percebi o nome.
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 20 Mar 10