sábado, 4 de dezembro de 2010

E vem aí o 'tio' FMI?

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Por João Duque

PORQUE É QUE acusam os mercados de serem impiedosos se não somos capazes de fechar a boca aos bolos e às guloseimas?

O tio FMI foi ajudar a nossa prima irlandesa. Jovem e estouvanada, a nossa prima é uma gastadora como não há. Imaginem que o Orçamento do Estado irlandês é 93% do nosso em termos de despesa total quando eles são um pouco menos de metade que nós em termos de população, mas com a mesma dimensão em termos de PIB. Ainda por cima, a pequena meteu-se com um banqueiro a quem arruinou e a quem a família quis compensar.

Conclusão, como os primos da Irlanda não têm fortuna para tudo, ajoelham aos pés do tio solteirão, para a habitual ajuda: o tio FMI, aquele velho solitário, mas cheio de dinheiro, a quem todos recorrem em caso de aperto sério.

Mas o velho é exigente. Empresta e safa quando necessário, mas depois não larga a porta... Sempre de volta de nós, não deixa fazer mais nada. Não podemos ir passar férias, não podemos jantar fora, não podemos mudar de guarda-roupa, jóias ou automóvel. As festas passam a ser vistas de fora e passados um ou dois anos já suspiramos com saudades do tempo em que nos ríamos na cara dos credores com o descaramento de quem pede e sabe que não vai pagar, pelo menos com o suor do seu rosto...

A Irlanda estava em apuros. Gastava muito mais do que nós. No curto prazo o caso parece mais grave, mas ela tem várias qualidades que invejo. É jovem (a população de jovens abaixo dos 15 anos de idade é de 21% enquanto a nossa é de 16%). Tem menos velhotes para cuidar (a população de idosos acima dos 65 anos de idade é de 12% enquanto a nossa é de 18%). A língua materna é o inglês, faz parte da cultura e da mentalidade anglo-saxónica, e é mais educada. A composição do PIB irlandês ainda depende mais de 50% da agricultura (5%) e da indústria (46%), bens que pode exportar e com isso recuperar a beleza de outrora. O nosso PIB depende 74% dos serviços, a vasta maioria deles não transacionáveis...

Somos mais pobres do que a nossa prima, gastamos menos per capita em termos de despesa pública e não desgraçámos (por enquanto) nenhum banqueiro de vulto (há dois que se queixam, mas nada que se compare com a encrenca irlandesa).

Agora sentimo-nos sós e abandonados ao sabor dos maus investidores que não dão tréguas ao custo da nossa dívida. E a dúvida é saber se seremos capazes de fazer o que prometemos. Até agora, mês a mês, a nossa execução orçamental é uma vergonha no confessionário. A promessa de que "para o mês não voltarei a pecar" esbarra com a nossa incapacidade para estancar a gula pecaminosa... Mais dois pai-nossos e duas avé-marias... O ano de 2010 ainda está para acabar e todos sabemos que não vamos conseguir cumprir as juras prometidas sem malabarismos contabilísticos. E não são os juros... Eles só desequilibram quem já está em queda!

Porque é que acusam então os mercados de serem impiedosos se nós não somos capazes de fechar a boca aos bolos e às guloseimas?

Acabámos de prometer descer os salários e já corremos a excecionar um grupo!

O tio FMI chegou a Dublin e já começou a apertar: 25 mil funcionários borda fora, cortes adicionais ao prometido.

Alguém tem dúvidas que, dado o nosso trajeto de incumprimento sucessivo, vamos mesmo chamar o tio FMI? Então o melhor é gostar dele. Tratá-lo por um carinhoso 'tio' é um bom começo.
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«Expresso» de 27 de Nov 10