Por Nuno Crato
EM CIÊNCIA, como em tudo, há historietas que são mitos ou simplificações da realidade e que, muitas vezes, são ditas porque estão bem apanhadas ou porque servem para enquadrar as ideias numa narrativa sedutora.
Conta-se, por exemplo, que Gauss, ainda criança, conseguiu fazer de cabeça a soma de uma sucessão de números de um a cem, deduzindo a fórmula dessa soma. A estória é curiosa e serve por vezes de intróito à discussão das progressões aritméticas, ou seja, das sucessões de números que progridem somando sempre a mesma quantidade ao número anterior. A sucessão 1, 2, 3, … é uma progressão aritmética, tal como 7, 10, 13, 16, …
Gauss teria reparado que podia somar os números de 1 a 1000 somando 1 com 1000, depois 2 com 999, depois 3 com 998, e por aí adiante. Cada uma destas somas parciais tem 1001 como resultado. Como deveria fazer 500 para esgotar todos os termos de 1 a 1000, Gauss teria simplesmente calculado 500 x 1001 = 500500. Nada mal para uma criança de sete ou oito anos!
A história é engraçada. Tem apenas um senão: é que não existe nada que prove que ela realmente tenha acontecido. Que se deve concluir daqui? Que se trata de uma lenda que deve ser banida dos livros?
Em “Tudo é Relativo e Outras Lendas da Ciência e da Tecnologia”, uma obra acabada de ser traduzida para português pela Gradiva, o físico Tony Rothman apraz-se a contar algumas destas histórias, para a seguir as questionar.
Na realidade… Na realidade, os cálculos de Leverrier que levaram à descoberta de Neptuno em 1846 acertaram na localização do planeta apenas por um acaso feliz — uns anos mais tarde ou uns anos mais cedo, a divergência entre a posição calculada pelo mesmo processo e a posição real do planeta seria demasiadamente grande para que este pudesse ser localizado. Na realidade, não foi Henry Becquerel quem descobriu a radioactividade em 1896 — o oficial de cavalaria Abel Niépce tinha já feito essa descoberta em 1857. Na realidade, não há provas documentais de que Galileu tenha atirado pesos de chumbo e de madeira do topo da Torre de Pisa e, dessa forma, contrariando Aristóteles, tenha chegado à conclusão de que os corpos caem à mesma velocidade, independentemente do seu peso. Na realidade, é questionável que as medidas dos desvios das estrelas no eclipse de 1919 tenham comprovado inequivocamente as previsões de Einstein. Na realidade…
Na sua obra, Tony Rothman, ajuda a reabilitar alguns nomes esquecidos da história da ciência e diverte-nos com muitos dos erros comuns da histórias que, por vezes com a maior boa vontade, nos são contadas. O autor, contudo, não cai no erro muito comum a alguns sociólogos e historiadores pós-modernos, que deduzem da fragilidade dessas histórias a impossibilidade de se saber o que na realidade se passou. Nem cai no erro, ainda mais grave, de dizer que a história da descoberta científica é uma história de arbitrariedades “socialmente construídas”, convencionadas entre os actores de um grupo social, o dos cientistas, de forma a gerar “narrativas da realidade”, tão arbitrárias como quaisquer outras.
Habitualmente, as simplificações da realidade contidas nas lendas e nas estórias simplificadas que se contam sobre as descobertas científicas contêm uma parte da realidade e são instrutivas. Os profissionais da história da ciência não se podem ficar pelas lendas. Mas não há mal nenhum em conhecê-las. Por vezes, “se non è vero è ben trovato”, como dizem os italianos. Nada mais.
.
«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 4 Dez 10
EM CIÊNCIA, como em tudo, há historietas que são mitos ou simplificações da realidade e que, muitas vezes, são ditas porque estão bem apanhadas ou porque servem para enquadrar as ideias numa narrativa sedutora.
Conta-se, por exemplo, que Gauss, ainda criança, conseguiu fazer de cabeça a soma de uma sucessão de números de um a cem, deduzindo a fórmula dessa soma. A estória é curiosa e serve por vezes de intróito à discussão das progressões aritméticas, ou seja, das sucessões de números que progridem somando sempre a mesma quantidade ao número anterior. A sucessão 1, 2, 3, … é uma progressão aritmética, tal como 7, 10, 13, 16, …
Gauss teria reparado que podia somar os números de 1 a 1000 somando 1 com 1000, depois 2 com 999, depois 3 com 998, e por aí adiante. Cada uma destas somas parciais tem 1001 como resultado. Como deveria fazer 500 para esgotar todos os termos de 1 a 1000, Gauss teria simplesmente calculado 500 x 1001 = 500500. Nada mal para uma criança de sete ou oito anos!
A história é engraçada. Tem apenas um senão: é que não existe nada que prove que ela realmente tenha acontecido. Que se deve concluir daqui? Que se trata de uma lenda que deve ser banida dos livros?
Em “Tudo é Relativo e Outras Lendas da Ciência e da Tecnologia”, uma obra acabada de ser traduzida para português pela Gradiva, o físico Tony Rothman apraz-se a contar algumas destas histórias, para a seguir as questionar.
Na realidade… Na realidade, os cálculos de Leverrier que levaram à descoberta de Neptuno em 1846 acertaram na localização do planeta apenas por um acaso feliz — uns anos mais tarde ou uns anos mais cedo, a divergência entre a posição calculada pelo mesmo processo e a posição real do planeta seria demasiadamente grande para que este pudesse ser localizado. Na realidade, não foi Henry Becquerel quem descobriu a radioactividade em 1896 — o oficial de cavalaria Abel Niépce tinha já feito essa descoberta em 1857. Na realidade, não há provas documentais de que Galileu tenha atirado pesos de chumbo e de madeira do topo da Torre de Pisa e, dessa forma, contrariando Aristóteles, tenha chegado à conclusão de que os corpos caem à mesma velocidade, independentemente do seu peso. Na realidade, é questionável que as medidas dos desvios das estrelas no eclipse de 1919 tenham comprovado inequivocamente as previsões de Einstein. Na realidade…
Na sua obra, Tony Rothman, ajuda a reabilitar alguns nomes esquecidos da história da ciência e diverte-nos com muitos dos erros comuns da histórias que, por vezes com a maior boa vontade, nos são contadas. O autor, contudo, não cai no erro muito comum a alguns sociólogos e historiadores pós-modernos, que deduzem da fragilidade dessas histórias a impossibilidade de se saber o que na realidade se passou. Nem cai no erro, ainda mais grave, de dizer que a história da descoberta científica é uma história de arbitrariedades “socialmente construídas”, convencionadas entre os actores de um grupo social, o dos cientistas, de forma a gerar “narrativas da realidade”, tão arbitrárias como quaisquer outras.
Habitualmente, as simplificações da realidade contidas nas lendas e nas estórias simplificadas que se contam sobre as descobertas científicas contêm uma parte da realidade e são instrutivas. Os profissionais da história da ciência não se podem ficar pelas lendas. Mas não há mal nenhum em conhecê-las. Por vezes, “se non è vero è ben trovato”, como dizem os italianos. Nada mais.
.