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Por Baptista-Bastos
MÁRIO SOARES ESCREVEU que temos de combater o "derrotismo". Temos. Para esse combate essencial e ingénito precisamos de motivo e de motivação. Ora, como o meu amigo Mário Soares sabe, oh!, se sabe!, domesticaram a rebeldia das nossas causas, em nome da "normalização" democrática, que não chega a ser uma farsa genial de "Governo do povo pelo povo" porque se converteu num regime declaradamente causador das maiores injustiças e das mais criminosas iniquidades.
Pertenço a uma geração animada pela "teimosia da esperança" [Bocage] e pelo obstinado sentimento de que as coisas tinham, necessariamente, de mudar. Para isso, porém, era necessário ajudar a História a abandonar o seu moroso passeio pelo tempo, e a abrir os olhos à sua cegueira. "Nunca, na crónica das tiranias, houve um povo que se batesse tão bravamente pela liberdade, como o português", escreveu o grande jornalista republicano Carlos Ferrão. São milhares e milhares de compatriotas nossos que passaram pelas masmorras do fascismo, ou foram assassinados, ou homiziados, todos eles torturados de modo atroz. A sintaxe mágica da liberdade reuniu intelectuais, operários, camponeses, comunistas, católicos, anarquistas, monárquicos, num movimento inolvidável e historicamente ímpar. O património da Resistência não é um imenso e solitário poema: é a épica de um tempo que associou o impulso de combater o salazarismo ao projecto de se construir o futuro.
Que futuro? Distanciados do confronto de ideias que percorria a Europa e o mundo, apenas entrevíamos o carácter imprescindível da liberdade. O regime novo determinaria um novo sistema, pensávamos, com a ingénua ignorância de quem se quer ver livre de algo incómodo. "Venha a maré-cheia / de uma ideia / para nos empurrar", cantava o Zeca Afonso. Estes três versos ilustram, como poucos, as nossas perplexidades. Não sabíamos muito bem o que desejávamos como sociedade, como povo, como sinal de uma política. Mas "aquilo" não queríamos. O motivo e a motivação explicativos de um particular humanismo. Eis porque o antifascismo começa por ser um movimento moral, antes mesmo de ser uma corrente ideológica. A frase de Carlos Ferrão nasce de um radical descontentamento popular, e cria um impulso generalizado que se renova com as épocas. Exceptuando esta, que nos impele ao desespero, à descrença mais sombria, ao horizonte cerrado em que nada se vislumbra de luminoso. Instalou-se em nós um cansaço indolente, uma indiferença infame. Esperar. Esperar, quê? Estamos submersos pelo desdém petulante de quem nos obrigou a aceitar uma sociedade de que não somos verdadeiramente responsáveis.
«DN» de 13 Jan 09
Por Baptista-Bastos
MÁRIO SOARES ESCREVEU que temos de combater o "derrotismo". Temos. Para esse combate essencial e ingénito precisamos de motivo e de motivação. Ora, como o meu amigo Mário Soares sabe, oh!, se sabe!, domesticaram a rebeldia das nossas causas, em nome da "normalização" democrática, que não chega a ser uma farsa genial de "Governo do povo pelo povo" porque se converteu num regime declaradamente causador das maiores injustiças e das mais criminosas iniquidades.
Pertenço a uma geração animada pela "teimosia da esperança" [Bocage] e pelo obstinado sentimento de que as coisas tinham, necessariamente, de mudar. Para isso, porém, era necessário ajudar a História a abandonar o seu moroso passeio pelo tempo, e a abrir os olhos à sua cegueira. "Nunca, na crónica das tiranias, houve um povo que se batesse tão bravamente pela liberdade, como o português", escreveu o grande jornalista republicano Carlos Ferrão. São milhares e milhares de compatriotas nossos que passaram pelas masmorras do fascismo, ou foram assassinados, ou homiziados, todos eles torturados de modo atroz. A sintaxe mágica da liberdade reuniu intelectuais, operários, camponeses, comunistas, católicos, anarquistas, monárquicos, num movimento inolvidável e historicamente ímpar. O património da Resistência não é um imenso e solitário poema: é a épica de um tempo que associou o impulso de combater o salazarismo ao projecto de se construir o futuro.
Que futuro? Distanciados do confronto de ideias que percorria a Europa e o mundo, apenas entrevíamos o carácter imprescindível da liberdade. O regime novo determinaria um novo sistema, pensávamos, com a ingénua ignorância de quem se quer ver livre de algo incómodo. "Venha a maré-cheia / de uma ideia / para nos empurrar", cantava o Zeca Afonso. Estes três versos ilustram, como poucos, as nossas perplexidades. Não sabíamos muito bem o que desejávamos como sociedade, como povo, como sinal de uma política. Mas "aquilo" não queríamos. O motivo e a motivação explicativos de um particular humanismo. Eis porque o antifascismo começa por ser um movimento moral, antes mesmo de ser uma corrente ideológica. A frase de Carlos Ferrão nasce de um radical descontentamento popular, e cria um impulso generalizado que se renova com as épocas. Exceptuando esta, que nos impele ao desespero, à descrença mais sombria, ao horizonte cerrado em que nada se vislumbra de luminoso. Instalou-se em nós um cansaço indolente, uma indiferença infame. Esperar. Esperar, quê? Estamos submersos pelo desdém petulante de quem nos obrigou a aceitar uma sociedade de que não somos verdadeiramente responsáveis.
«DN» de 13 Jan 09