Por Antunes Ferreira
ALQUEBRADO, DESMIOLADO, abandonado, o velho desgraçado tentou mover a cadeira de rodas empurrando estas com as mãos vacilantes e anquilosadas. Em vão. As articulações carregadas de artrite piores estavam do que dobradiça enferrujada. Sem óleo que lhes valesse, encarquilhadas, pendentes, eram apêndices de estorvo e pouco mais. Chegavam para limpar o nariz e as beiças – sem lenço.
Conseguiu a muito custo puxar a manta esburacada até o meio do peito escanzelado, costelas marcadas, contáveis uma a uma. Pretendia leva-la até ao queixo, num intento desesperado de proteger o pescoço. Um frio infiltrava-se-lhe pelos pés, e com tantas agulhas se cozia, que, por certo, era o do fim. Que estava a chegar, insidioso, tiritando-o. É a morte, congeminou, e ele sem desejo nenhum dela.
De fora, por entre as bátegas, cordas de chuva ininterrupta, uivava um suão que escorropichava pelas frestas da porta periclitante, na hesitação de fugir dos gonzos. O pulha destilava o frio que tomava conta do resto do homem esquálido. Redemoinhos dançavam em coreografia maluca e, caso para espanto numa terra como aquela, até pequenos tornados volteavam também.
O ancião estremeceu. Tinha fome. Mas, no estado em que se encontrava, como resolver essa vontade de comer, de comer o que quer que fosse, de comer – comida? Um pão. Uma carcaça. Com presunto seria melhor, muito melhor. Porem, o minimercado da rua ficava longíssimo para ele, aí a uns, sabia lá, mas a uns trezentos metros, quiçá um pouco menos, na esquina com a avenida grande.
Voltou a tentar mover a cadeira, apoiando as mãos esqueléticas e nodosas nas rodas. Quem fora o inventor delas? Perdia-se-lhe no córtex a identidade e o tempo, mas devia ter sido alguém, possivelmente a precisar de comer um papo-seco. Não, fora na pré-história. Ou teria sido na revolução francesa? Que coisas lhe barafundeavam a cabeça…
A sede também o apertava. Um copo de água, por favor, mesmo da torneira, engarrafada e mineral seria mais sensato, andavam no ar tantas bactérias e micróbios e vírus e, depois, a gripe dos porcos e essas tretas espreitavam a cada canto, ele não tomara a vacina. Mas, o que vinha mesmo a calhar era um uísque sem mais nada. Pensando bem, c’os diabos, ainda pensava, até um chá de tília saberia a hidromel. Ora essa, por que porras lhe dera para o hidrom…
O miúdo chegou – e deu com ele acabado de morrer. Então?... Era um novo, em quem toda a gente depositava as maiores esperanças, sobretudo que fosse melhor do que, em síntese. É sempre assim, os que surgem trazem com eles o benefício das dúvidas dos que já estão. Principalmente, fartos dos anteriores, cujos vaticínios tinham sido iguais – ou quase.
Um puto vivo, esperto, inteligente, um fora de série. Abrira a porta de entrada porque tinha a chave, morava no andar do lado, e trazia um saco de plástico do minimercado com umas coisas para o velho. Assustado pelos olhos escancarados do morto, recuou, saiu a correr e entrou no apartamento aos berros pelo pai. Este só esperava por ele para abrir a garrafa de espumante. Na rua batiam latas. E ele, para o pai, para a mãe, para a irmã, até para a avó Almerinda: o velho foi-se. E todos: feliz ano novo!!!!!!!!!
ALQUEBRADO, DESMIOLADO, abandonado, o velho desgraçado tentou mover a cadeira de rodas empurrando estas com as mãos vacilantes e anquilosadas. Em vão. As articulações carregadas de artrite piores estavam do que dobradiça enferrujada. Sem óleo que lhes valesse, encarquilhadas, pendentes, eram apêndices de estorvo e pouco mais. Chegavam para limpar o nariz e as beiças – sem lenço.
Conseguiu a muito custo puxar a manta esburacada até o meio do peito escanzelado, costelas marcadas, contáveis uma a uma. Pretendia leva-la até ao queixo, num intento desesperado de proteger o pescoço. Um frio infiltrava-se-lhe pelos pés, e com tantas agulhas se cozia, que, por certo, era o do fim. Que estava a chegar, insidioso, tiritando-o. É a morte, congeminou, e ele sem desejo nenhum dela.
De fora, por entre as bátegas, cordas de chuva ininterrupta, uivava um suão que escorropichava pelas frestas da porta periclitante, na hesitação de fugir dos gonzos. O pulha destilava o frio que tomava conta do resto do homem esquálido. Redemoinhos dançavam em coreografia maluca e, caso para espanto numa terra como aquela, até pequenos tornados volteavam também.
O ancião estremeceu. Tinha fome. Mas, no estado em que se encontrava, como resolver essa vontade de comer, de comer o que quer que fosse, de comer – comida? Um pão. Uma carcaça. Com presunto seria melhor, muito melhor. Porem, o minimercado da rua ficava longíssimo para ele, aí a uns, sabia lá, mas a uns trezentos metros, quiçá um pouco menos, na esquina com a avenida grande.
Voltou a tentar mover a cadeira, apoiando as mãos esqueléticas e nodosas nas rodas. Quem fora o inventor delas? Perdia-se-lhe no córtex a identidade e o tempo, mas devia ter sido alguém, possivelmente a precisar de comer um papo-seco. Não, fora na pré-história. Ou teria sido na revolução francesa? Que coisas lhe barafundeavam a cabeça…
A sede também o apertava. Um copo de água, por favor, mesmo da torneira, engarrafada e mineral seria mais sensato, andavam no ar tantas bactérias e micróbios e vírus e, depois, a gripe dos porcos e essas tretas espreitavam a cada canto, ele não tomara a vacina. Mas, o que vinha mesmo a calhar era um uísque sem mais nada. Pensando bem, c’os diabos, ainda pensava, até um chá de tília saberia a hidromel. Ora essa, por que porras lhe dera para o hidrom…
O miúdo chegou – e deu com ele acabado de morrer. Então?... Era um novo, em quem toda a gente depositava as maiores esperanças, sobretudo que fosse melhor do que, em síntese. É sempre assim, os que surgem trazem com eles o benefício das dúvidas dos que já estão. Principalmente, fartos dos anteriores, cujos vaticínios tinham sido iguais – ou quase.
Um puto vivo, esperto, inteligente, um fora de série. Abrira a porta de entrada porque tinha a chave, morava no andar do lado, e trazia um saco de plástico do minimercado com umas coisas para o velho. Assustado pelos olhos escancarados do morto, recuou, saiu a correr e entrou no apartamento aos berros pelo pai. Este só esperava por ele para abrir a garrafa de espumante. Na rua batiam latas. E ele, para o pai, para a mãe, para a irmã, até para a avó Almerinda: o velho foi-se. E todos: feliz ano novo!!!!!!!!!