sábado, 13 de fevereiro de 2010

As maravilhas de Alice

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Por Nuno Crato

SE LEWIS CARROLL não tivesse escrito as duas aventuras de Alice, não seria conhecido por esse pseudónimo, mas sim pelo seu verdadeiro nome: Charles Lutwidge Dodgson (pronunciado dód-san). E se não tivesse escrito esses dois livros e vários outros de histórias maravilhosas, não seria conhecido como escritor, mas talvez como fotógrafo — Dodgson foi um dos primeiros a encarar a fotografia como uma arte e não como um mero registo de imagens; os seus retratos ainda hoje são pungentes, em especial as suas imagens de crianças em poses melancólicas. E se não tivesse sido nem escritor nem fotógrafo seria certamente conhecido como um dos vultos da época na sua disciplina: a matemática.

Todo o humor absurdo que perpassa por Alice no País das Maravilhas e pelas suas outras obras de ficção é um humor que muitos matemáticos reconhecem como seu. Os seus trocadilhos e as suas pequenas brincadeiras revelam uma preocupação com o significado das palavras e expressões e a construção de contradições derivadas de ambiguidades. É um uso da lógica e da matemática que ainda hoje surpreende os leitores.

Quem esteja um pouco mais desperto para a leitura de temas científicos verá também deliciosas referências a tópicos eruditos de matemática, lógica e astronomia. Logo no princípio, quando Alice cai pelo buraco do coelho e pergunta a si própria quantas milhas terá caído, quando pensa que se aproxima do centro da Terra e procura recordar-se da dimensão do planeta, ela está a protagonizar uma metáfora científica muito discutida na época vitoriana — na realidade, uma metáfora que vem da antiguidade clássica.

Perto do século VIII a.C., o poeta grego Hesíodo tinha imaginado uma bigorna a cair dos céus e escrito que ela demoraria nove dias a atingir a Terra. Deixando-a cair da Terra para os infernos, ela demoraria também nove dias a cair no fundo do universo. O tema foi retomado na era romana pelo historiador e ensaísta grego Plutarco (46–120). Sabendo que a Terra é esférica, Plutarco perguntou o que aconteceria a um corpo que caísse por um buraco que levasse a uma Terra oca: pararia no centro? O problema ocupou muitos filósofos e homens de ciência. Galileu foi o primeiro a solucioná-lo correctamente. Imaginou um túnel que atravessasse a Terra de um lado ao outro, passando pelo seu centro. Um objecto largado à superfície desceria aceleradamente pelo túnel até alcançar o centro. Nessa altura, continuaria a sua viagem, mas em velocidade decrescente, até alcançar o outro extremo do planeta. Nesse momento estancaria e, deixado livremente, voltaria a cair pelo túnel, acelerando, passando pelo centro da Terra, desacelerando e voltando ao ponto de partida. Deixado a si próprio, esse corpo oscilaria indefinidamente, entre um extremo e outro do planeta.

Galileu estava certo, desprezando o atrito do ar e o movimento da Terra. O problema voltou a ser discutido por Newton e Euler, e continua a ser discutido nos dias de hoje como exercício de mecânica e de cálculo. Feitas as contas, Alice demoraria 42 minutos a atingir o centro da Terra e outro tanto a reaparecer nos antípodas — nas “antipatias”, segundo a brincadeira de Lewis Carroll.

As referências científicas atravessam todas as aventuras de Alice. Nada como lê-las, pensá-las e revisitá-las. Voltaremos a fazê-lo.

«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 12 Fev 10