quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

«A Quadratura do Circo» - Lisboa é linda e está feia

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Por Pedro Barroso

AS OBRAS são eternas. A programação é pouca, quase descuidada.
Fecha-se um pavimento e festeja-se e, aparentemente, termina-se; para afinal, depois, se descobrir já não ser assim. Aí, três meses depois, tem de se tornar a expor as tripas de fora e, num intestinal exibir de canos e tubos, esburacar de novo para fechar nunca se sabe quando. Porque, afinal, faltava o plano de pormenor, a planta do metro, o acordo com o gás. E o orçamento escorregou.
Lisboa está feia porque se alonga num Terreiro de Paço eternamente manco e sem fim à vista. Cais das colunas lindo e limpinho, mas sem sequência marginal. Calcetamento de bom gosto mas que vai dar à velha estação para Cacilhas. Vai ser difícil compor aquele puzzle.
Meu Deus, acabem Lisboa de uma vez por todas. Parece que nunca está acabada.
Componham os canos e todas as tripas obscenas da cidade. Reparem as águas, os esgotos, e o gás, e as calçadas, e os buracos das chuvas. E ponham as netcabos todas, e as fibras ópticas todas, já por conta de tudo o que há-de vir. Programem!
E mais. Mantenham vigilância, que diabo! Eu não sou funcionário da Câmara e vejo todos os dias coisinhas por fazer que eram, sei lá, uma hora de trabalho, no máximo duas. Um instante, e ficavam bem.
Será que não há piquetes de ronda a ver o mesmo que todos nós vemos? Ou não há dinheiro para executar coisas tão simples? Ou o que falta é a mera organização e coordenação dos serviços?
Lisboa está feia porque uma estúpida lei de inquilinato, ou arrendamento, ou lá o que foi, permitiu que senhorios morressem à fome antes de poderem actualizar rendas de vinte e trinta escudos. Os prédios, obviamente, caíram, estão feios, a rachar, ou ruirão com mais um próximo Inverno ou dois. E as suas fachadas feias poderão ser telegénicas, mas integram um filme triste de torpor, tristeza e pobreza colectiva de que dificilmente nos podemos orgulhar.
Lisboa está feia porque os velhos símbolos geracionais não são preservados como memória.
O velho cinema Paris, ali à Estrela, onde eu ia fingir que tinha dezassete anos e ver filmes para adultos - pedaços avulsos de nudez, passados na lente envelhecida de uma censura descuidada - é um insulto por onde não passou ainda a vergonha da cidade.
Catedral dos sentidos me foste, velho e abandonado teatro de emoções e calafrios.
Que será feito dos outros?
O Ideal, no Loreto; o Rex; o Condes, hoje Rock; o Olímpia, hoje, tanto quanto percebo, saída traseira do La Feria; o Bélgica; o Cinearte, hoje Barraca; o Jardim Cinema, hoje estúdio de televisão; o Chiado Terrasse, hoje Banco, salvo erro… o Restelo… o Cine Oriente…
E tantos outros que morreram às mãos da história transformada, por vício de up grade de economias em investimentos putativamente mais rentáveis.
Ai amigos, a idade já tem memoria demais, é o que é…
Já vi partirem o velho e inesquecível D Maria, onde vi o velho Assis Pacheco dar lições de representar. O Avenida, onde ainda lembro a Guida Maria, ainda criança, fazer o papel da sua vida. O Laura Alves, que deu em sapataria, e hoje nem sei quê. O Vasco Santana, onde cheguei a ajudar a Luzia, a Helena Feliz e o Luís Santos nas “Mãos de Abrãao Zacut”. O Monumental, onde actuei. E os velhíssimos Capitólio e Maria Vitoria e ABC, que por vezes lá renascem com umas valentes vassouradas, para logo mergulharem num vazio sem protecção, nem futuro desenhado com clareza… O Belém Clube, que está adormecido. E tantas salas e salinhas lindas velhas esfarrapadas que eram tertúlia e sonho e fantasia, mergulhadas no descalabro de uma cidade que perdeu respeito à sua história íntima.
Estão como o velho Olympia na minha terra, que, por ter os Castello Lopes entre os seus ilustres, teve direito ao privilégio de cinema a sério desde os idos de cinquenta. Hoje com sala às osgas e cadeiras às aranhas. Assuntos complicados, eu sei.
Pelo país fora encontraria motivo para aqui ficar fazendo livro e muro de lamentações. Conheci teatrinhos demais por esse Portugal afora, hoje tristes, mortos, abandonados.
Vergonha. Quando será que as verbas da Cultura, tão esbanjadas e magnânimas, por vezes em iniciativas de muito discutível utilidade, e algumas edilidades menos atentas compreendem que estes são espaços de memória colectiva, teatrinhos de bolso, testemunhos de uma época singular, mas onde se formou e germinou - discreta mas determinada - uma geração que, afinal, teve força e dessa vivência fabricou a Liberdade?
Mas regresso a Lisboa, onde fui menino.
A tal que está feia e é linda. E sendo linda, insiste em estar feia.
E não falo dos Jerónimos, Torre de Belém, Castelo, Igrejas ou Conventos. Não.
Falo de memórias de vida vivida que foram paradigma de gerações. Esses contemporâneos espaços, - incluindo o mais recente Quarteto, porque não? - são também eles arquivos de uma memória ameaçada que diz respeito a todos nós. São história recente, ainda em estado de lembrança viva. Apetece por isso perguntar.
Caramba, seria assim tão caro e difícil comprar e requalificar essas referências? Acabar as obras? Dar à cidade o descanso enriquecido de parques e jardins tratados? Oferecer-nos finalmente o usufruto benigno das prometidas esplanadas? E duma beira estuário tranquila, à maneira…grega… turca…portuguesa?
A doença prolongada dos tapumes e buracos é uma espécie de epidermólise bulhosa, que ataca as cidades incautas e distraídas, e devora a alma dos que lá queriam viver com felicidade.
Lisboa é linda, mas está feia, descuidada.
Porque a sua história era fácil de repor no sítio certo. E não está.
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Foto: Cinema Paris - in Lisboa S.O.S.