domingo, 8 de março de 2009

À catanada

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Por Nuno Brederode Santos
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O CHEFE DO ESTADO-MAIOR-GENERAL das Forças Armadas da Guiné-Bissau, máxima expressão operacional do poder militar local, foi assassinado. Horas depois, o seu adversário político (!) e Presidente da República foi-o também. Na própria casa e à vista da mulher. A golpes de catana e tiros à queima-roupa. Raiava o dia e a cidade fechou-se nos medos dos seus habitantes: nos medos em que ninguém é solidário.
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De manhã, porém, nada mais aconteceu. As autoridades que restam lamentam, com litúrgica e descoroçoante rapidez, o sucedido e logo anunciam a boa nova: não houve golpe de Estado. Em Portugal, pai conflituoso de pesados ontens que os realismos da vida - CPLP incluída - foram tentativamente reaproximando, responsáveis de todos os partidos proclamaram também, por entre alívios: não houve golpe de Estado.
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No dia 10, Nino Vieira vai a soterrar, com os adereços do calculismo da sua República. Por isso, ninguém dirá que desce à campa o guerrilheiro que se foi tornando no telúrico e iracundo destruidor das melhores promessas do futuro dos sonhos de Amílcar Cabral. Entre muitos dos seus, como entre nós, leva as saudades com ele. Parece que o que agora importa é que a situação regresse à normalidade, e não repensar a normalidade da situação que regressa. Também ninguém quererá pôr a nu a evidência: se não houve golpe de Estado, não foi por falta de golpe, mas só por falta de Estado.
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Praticamente desde sempre - um sempre reportado à independência - que a Guiné-Bissau emigrou da lógica e da prática institucionais que nós por cá partilhamos. E este sangrento episódio só confirma que, por lá, o mandato político é uma autorização de desempenho de uma gestão orientada para a satisfação das reivindicações dos militares. Por isso mesmo, o mandato não é o cruzeiro entre dois sufrágios. O mandato tem por limite, entre cada dois sufrágios, a duração da paciência dos militares. O resto é menor. A catana e a pistola suprem a vitalícia gratidão do povo aos que se arrogam méritos antigos de uma libertação que já poucos podem recordar. A fatia dos lucros que as rotas atlânticas da droga deixam nos seus entrepostos é magra, não dá para todos. Custa tudo em soberania, em desenvolvimento, em saúde e em bem- estar. E só chega para dar condições de felicidade a uns quantos bravos mal fardados se entretanto eles se forem liquidando entre si.
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Passaram mais de três décadas. Não há nostalgia ou remorso coloniais que razoavelmente nos envolvam nas actuais rotinas do sangue e da pobreza. Estivemos lá quando Portugal não vinculava os portugueses e saímos de lá logo que os portugueses passaram a vincular Portugal. Não somos grande potência, militar ou económica. Não somos vizinhos geográficos, como a Guiné ou o Senegal. Temos, é certo, pessoas e interesses a defender, mas isso temo-lo também no Brasil, na Venezuela ou em França. É, por isso, positiva a recolocação de um embaixador em Bissau. Mas há que pisar com cuidado o terreno bilateral, para que não nos sejam pedidas responsabilidades a que não poderemos corresponder. A boa consciência da comunidade internacional gosta de se servir do primeiro voluntário néscio, como alguns accionistas gostam de ter um otário por gestor. É certo que não nos está na natureza ver morrer na Guiné pessoas e liberdades, com a displicência snobe com que se inauguram as corridas de Ascott. É verdade que ainda nos atrapalham os ecos de um Benfica-Sporting em Bissau. Há muito de solidariedade e cooperação por fazer - e isso deve ser feito. No político, no económico, no cultural, no social. Mas deve sê-lo usando os instrumentos multilaterais, num delicado exercício de juízo sábio e mãos treinadas na microcirurgia. Sem protagonismos que permitam à comunidade internacional isentar-se ou aos candidatos a um mau protagonismo instalarem-se. Sem as paixões que cegam (e que sobreviveram aos tempos do "amor de mãe") e sem o cinismo de esquecer que temos cá muitos filhos de quantos por lá ficaram.
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Até ver, parece ser esta a postura política do MNE e ser este o sentido da missão de João Gomes Cravinho, por via da actual presidência da CLP. Oxalá seja. Porque, se o não for, só encontraremos riscos e problemas. E porque, para além dessa fronteira, só há pasto para as saudades do império. Um investimento caro e sem retorno. Que deve ser pago por quem as tiver.
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«DN» de 8 de Março de 2009
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NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.